quarta-feira, 6 de abril de 2011

Um Torga bem-amado

Trata-se de uma palestra sobre Torga de uma colega de curso dos meus tempos de Coimbra – a Maria da Conceição Morais Sarmento - que mo enviou em manifestação daquele apreço e amizade antigos, feitos de mútuo reconhecimento de idênticas qualidades de seriedade intelectual, não isentas do desprendimento e humor brincalhão das raparigas que fomos.

Uma palestra proferida em Abril de 2001, aquando da morte de Torga, no Instituto Superior de Estudos Teológicos de Coimbra e publicada pela respectiva Revista em 2001.

Uma bela apologia de um escritor por ela amado desde que, aos dez anos, leu o conto “Jesus” de “Bichos” e sempre consolidado numa admiração de quem lhe seguiu os passos nas tiragens dos seus livros, que uma feliz vizinhança transformaria gradualmente em laços de grande amizade, solidificada quer pela defesa empenhada da candidatura ao Prémio Nobel de 1961 por um irmão da minha colega, que naturalmente seria grata ao espírito do escritor, quer pela intervenção eficaz do médico Adolfo Rocha junto do avô amado da minha colega, e finalmente todo um progressivo estreitamento afectivo, com a participação desta como revisora de provas na publicação de obras do escritor, e como participante nas suas caminhadas de viajante transmontano…

São belas páginas de que não resisto a transcrever alguns passos, em homenagem simultânea à minha amiga, como pessoa inteira, na nobreza simples do seu “testemunho de convívio” e na lucidez das suas observações interpretativas da personalidade literária e humana de Torga, como igualmente na admiração pelo escritor, que compartilho. Uma palestra de uma serena mensagem, fruto de estudo, reflexão e funda admiração pelo escritor que na sua obra revela uma sensibilidade tão simultaneamente abrangendo o mundo espiritual, o mundo terreno, e o mundo de um estranho ego, perspicaz e de uma sensibilidade de tormento e rebeldia, estratificados no seu verbo mágico, de tanta dimensão e clareza.

Vejamos o seu intróito, síntese tão abrangente, que logo nos orienta para a riqueza e complexidade do mundo torguiano:

«Falar de Miguel Torga como Homem e Poeta não é fácil. A sua personalidade rica e complexa é multifacetada e os diferentes aspectos que a caracterizam imbricam-se tão intensamente uns nos outros que, ao falarmos do Homem, logo nos lembra o amigo, o cidadão, o rural, o médico, o viajante, o caçador, o prosador, o poeta. Ele é, bem ao contrário de Fernando Pessoa, personalidade desdobrada em várias outras, um ser reconhecidamente monolítico, sem que este adjectivo tenha qualquer conotação de fechamento e de isolamento do mundo. Bem pelo contrário. Pessoa era predominantemente um cerebral. Torga viveu a vida em toda a plenitude, a ela se doou por inteiro e sempre o que mais o preocupou foi o conhecimento de si próprio, do seu “mundo de contrastes, lírico e atormentado, de ascensões e quedas, onde a esperança, apesar de sucessivamente desiludida, deu sempre um ar da sua graça”, como afirma no prefácio ao livro “Criação do Mundo”, e também o conhecimento dos outros em íntima comunhão com a natureza que tanto amava e na qual procurava a paz depois do esforço hercúleo da composição de uma obra. Natureza que tantas vezes foi motivo de reflexão sobre o grande mistério da criação ou fonte de imagens poéticas cheias de beleza e significado que frequentemente traduziam traços relevantes da sua própria personalidade, como se pode verificar através de muitos dos seus poemas. Havia uma espécie de osmose entre o Poeta e a Mãe Terra.»

E a análise vai seguindo, segundo a perspectiva de alguém que o conheceu e amou em toda a sua sensibilidade e grandeza:

«O conjunto da obra é constituído por várias dezenas de volumes, mas publicava cada um com a mesma inquietação de quem publica o primeiro. O agudo sentido crítico, o pudor e a humildade envolveram sempre a obra criadora do escritor que cumpria a sua missão como um acto sagrado em que era preciso seguir o preceito evangélico: “Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito.”

«A exposição na montra das livrarias de um novo volume era como a violação da sua mais profunda intimidade. Já nos últimos anos da vida afirma: “Expus-me sempre nas montras timidamente, como um culpado contrito, quase a pedir desculpas aos ocasionais leitores pelo meu atrevimento” (Diário XVI). Por isso fugia para os montes à procura da paz perdida. Amava a natureza, não com a emotividade lírica dos românticos, mas como componente da força cósmica na qual cada um de nós se integra e onde se desenrola o nosso percurso pela vida.» …

«Tive o privilégio de, na primeira vez que fui ver o Douro do cimo do grande penhasco quartzítico, Torga me ter feito ir a pé: foram 20 Km para lá chegar, a corta-mato, a subir e descer montes. Mas creio que foi a melhor maneira de merecer e sentir em pleno o deslumbramento experimentado pela força e grandiosidade da paisagem. Actualmente, S. Leonardo (de Galafura),à proa de um navio de penedos, a navegar num doce mar de mosto” é ponto obrigatório no roteiro torguiano recentemente organizado.»

«O apego à Terra, os Contos e Novos Contos da Montanha, a peça de teatro Terra Firme, numerosas notas do Diário fizeram com que o adjectivo “telúrico” fosse reiteradamente atribuído ao escritor.

O Poeta já não suportava este qualificativo. Também a Carlos Reis no artigo “A Arte do Conto” (Jornal das Letras), o epíteto parece cada vez mais redutor.

A temática do conjunto da obra do escritor é muito mais vasta e variada…»

«É esta riqueza e variedade, cimentadas por um forte amor a Portugal, e a profundidade do seu humanismo que constituem a base sólida onde radica a obra torguiana. A leitura dos seus textos nunca nos confina. É sempre um caminho aberto: “o que importa é partir não é chegar” diz num poema. E cada nova leitura é partida para uma aventura do espírito que se realiza com deleite e admiração. Por vezes, também com inquietação… creio poder acrescentar.

Torga exerceu sobre a minha geração, a geração dos anos 50 e 60, uma grande influência. Era para nós um símbolo de liberdade, alguém que, sem medo, dizia frontalmente o que devia dizer, custasse o que custasse.»

Muito mais poderia transcrever deste excelente texto de Maria da Conceição de Morais Sarmento de homenagem a Miguel Torga, no seu percurso pela obra e pela vida do escritor que a minha amiga em parte compartilhou, como relata, da forma criteriosa que foi sempre traço característico da sua honestidade intelectual, segundo recordo.

Finalizo, com a transcrição de um passo sobre Torga, que eu própria escrevi, ainda em vida do Poeta, como demonstração de que compartilho integralmente a sua admiração pelo escritor, na sua genialidade literária: “Um Torga admirável e sempre admirado, na sua prosa e nos seus versos, rasgando os horizontes de um humanismo lúcido e desencantado, no seu rigor implacável. O maior vulto presente das letras pátrias, sem dúvida. Sincero, agreste como as suas fragas, livre, altivo e acutilante como as águias que nelas poisam, novo Orfeu, tornando estático o mundo, ante a essência divina do seu lirismo fluido e rico.” (“Anuário”, 1999).

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