sábado, 19 de maio de 2012

«Conte-me tudo»


Eis uma frase empolgante que uma amiga nossa, a maior parte do seu tempo  assente no Dubai, constrói para cada uma de nós, como forma de saudação quando, depois de desembarcada – o que é frequente – chega, exuberante e maternal, embora bastantes anos mais jovem, mas com a autoridade do bem-estar material e do seu saber professoral, exigente de amplos saberes a quem pouco mais tem para fornecer que as novidades da sua domesticidade diária acrescidas das observações fofoqueiras habituais, tendo como modelo as roçagantes saias de Elvira colhidas nos noticiários da imprensa diária de um país sem calças e definitivamente descalço.

Mas a pergunta megalómana explode junto de nós que rimos da pretensão de um tudo que é nada, contrariamente ao mito de Pessoa, hélas!  - “um nada que é tudo”.

O “Conte-me tudo” é, aliás, pretexto para o uso unilateral da palavra própria, com a graça esfuziante de uma dicção perfeita e a vivacidade de uma exposição plena de datas, de dados, de enigmas, de analogias, que percorrem o império das suas evocações e jorram sobre a minha mudez atenta, deixando a troca de dados a cargo da minha amiga, habitual leader na observação das referências  à  mesa do café diário.

“Conte-me tudo!” Acabo de ler a frase imperativa, ditada com ternura pelo amante à sua amada, após ausência prolongada, por doença, num velho livro que a recordação da adolescência empolgante trouxe a um desejo de fuga às penúrias das nossas actuais vivências.

“John, chauffeur russo” de Max du Veuzit, eis o livro amado, que reli com curiosidade, pensando não mais encontrar nele o encanto daqueles tempos em que se sonhava com o príncipe encantado o que, um século antes desviara a Ema Bovary, e a Luísa do “Primo Basílio” dos convencionais caminhos matrimoniais, por excesso de leituras românticas, fossem elas da Jane Austen, irmãs Bronte, George Sand e outros escritores debruçados sobre as sensibilidades das almas amantes, de Tristão e Isolda, a Paulo e Virgínia, Atala, René, La Nouvelle Héloise e tantos mais.

Não creio que as escritoras da literatura que, dos anos 40 a 60 alagaram as livrarias com a chamada leitura cor-de-rosa teriam hoje igual saída. As adolescentes de hoje são motivadas por prosas mais direccionadas para a acção, em que o mundo dos valores morais é soterrado pela violência das relações humanas.

“John, chauffeur russo”, comprado numa Feira do Livro em 2000, mantém a mesma capa azul, específica dos “livros de capa azul” daqueles tempos, deve, pois, ser, dentre os livros repudiados pela intelectualidade, um dos poucos que continuou a editar-se, o que comprova o seu mérito e o seu fascínio.

Trata-se da história de uma bonita e rica rapariga francesa – Micaela – que toma como chauffeur um belo espécime russo, a quem, por pruridos de altivez distanciadora, troca o nome sonante Alexandre pelo comum John. Toda a trama ficcional gira à volta de um enamoramento progressivo, feito de alternâncias de atracção e distanciamento, em que a arrogância despeitada da jovem, pela consciência dessa atracção gradual em si própria, provoca nela constantes atitudes de desprezo para humilhação do rapaz, o qual lhe faz sentir o seu repúdio e aparente indiferença, modo de garantir a sequência evolutiva de uma paixão intensificada ainda pelo ciúme de uma sua amiga americana, igualmente apaixonada pelo chauffeur, desinibida e destituída de idênticos pruridos de riqueza distanciadora.

Alexandre revelar-se-á um príncipe russo no exílio, com uma vasta colónia da aristocracia russa igualmente exilada, após a revolução soviética. O casamento entre ambos segundo o cerimonial ortodoxo, com desconhecimento do riquíssimo pai de Micaela, que jamais o aceitaria, adepto do casamento por conveniência e convergência de fortunas, é uma peripécia quase final da novela, retardadora do final feliz, graças a uma espécie de “mise en abîme”, pela referência involuntária de um amigo a uma prática usual de russos unidos pelo casamento a francesas, a fim de melhor lhes sacarem a fortuna, coscuvilhice que faz cair doente Micaela reconhecendo nela  a imagem da sua própria história. O final será, naturalmente, muito feliz, Micaela transformada em princesinha de conto de fadas.

Uma história encantadora que, ao invés de outras mais ou menos lamechas dessa colecção azul, contém um enredo bem urdido, com personagens salientando-se nas suas manipulações sentimentais. Foi, ao chegar a Inglaterra, onde o seu marido russo fora trabalhar como médico, que este lhe disse, em atenta preocupação pelo seu bem-estar, após a longa doença a que ele não tivera acesso, impedido pelo irascível milionário pai de Micaela: “Conte-me tudo”.

Muito teria Micaela para contar ao seu adorado Sacha sobre a odisseia vivida em França.

À nossa amiga risonhamente bombástica a resposta definitivamente trágica é: “Já só nos resta o silêncio”.

Mas os papagaios ainda se não extinguiram na nossa corte: palremos, sobre o nosso nada.


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