Eis uma
frase empolgante que uma amiga nossa, a maior parte do seu tempo assente no Dubai, constrói para cada uma de
nós, como forma de saudação quando, depois de desembarcada – o que é frequente
– chega, exuberante e maternal, embora bastantes anos mais jovem, mas com a
autoridade do bem-estar material e do seu saber professoral, exigente de amplos
saberes a quem pouco mais tem para fornecer que as novidades da sua
domesticidade diária acrescidas das observações fofoqueiras habituais, tendo
como modelo as roçagantes saias de Elvira colhidas nos noticiários da imprensa
diária de um país sem calças e definitivamente descalço.
Mas a
pergunta megalómana explode junto de nós que rimos da pretensão de um tudo que
é nada, contrariamente ao mito de Pessoa, hélas! - “um nada que é tudo”.
O “Conte-me
tudo” é, aliás, pretexto para o uso unilateral da palavra própria, com a
graça esfuziante de uma dicção perfeita e a vivacidade de uma exposição plena
de datas, de dados, de enigmas, de analogias, que percorrem o império das suas
evocações e jorram sobre a minha mudez atenta, deixando a troca de dados a
cargo da minha amiga, habitual leader na observação das referências à mesa
do café diário.
“Conte-me
tudo!” Acabo de ler
a frase imperativa, ditada com ternura pelo amante à sua amada, após ausência
prolongada, por doença, num velho livro que a recordação da adolescência
empolgante trouxe a um desejo de fuga às penúrias das nossas actuais vivências.
“John,
chauffeur russo” de
Max du Veuzit, eis o livro amado, que reli com curiosidade, pensando não mais
encontrar nele o encanto daqueles tempos em que se sonhava com o príncipe
encantado o que, um século antes desviara a Ema Bovary, e a Luísa do “Primo
Basílio” dos convencionais caminhos matrimoniais, por excesso de leituras
românticas, fossem elas da Jane Austen, irmãs Bronte, George Sand e outros
escritores debruçados sobre as sensibilidades das almas amantes, de Tristão
e Isolda, a Paulo e Virgínia, Atala, René, La Nouvelle
Héloise e tantos mais.
Não creio
que as escritoras da literatura que, dos anos 40 a 60 alagaram as livrarias com
a chamada leitura cor-de-rosa teriam hoje igual saída. As adolescentes de hoje
são motivadas por prosas mais direccionadas para a acção, em que o mundo dos
valores morais é soterrado pela violência das relações humanas.
“John,
chauffeur russo”,
comprado numa Feira do Livro em 2000, mantém a mesma capa azul, específica dos “livros
de capa azul” daqueles tempos, deve, pois, ser, dentre os livros repudiados
pela intelectualidade, um dos poucos que continuou a editar-se, o que comprova
o seu mérito e o seu fascínio.
Trata-se da
história de uma bonita e rica rapariga francesa – Micaela – que toma como
chauffeur um belo espécime russo, a quem, por pruridos de altivez distanciadora,
troca o nome sonante Alexandre pelo comum John. Toda a trama ficcional gira à
volta de um enamoramento progressivo, feito de alternâncias de atracção e distanciamento,
em que a arrogância despeitada da jovem, pela consciência dessa atracção gradual
em si própria, provoca nela constantes atitudes de desprezo para humilhação do
rapaz, o qual lhe faz sentir o seu repúdio e aparente indiferença, modo de
garantir a sequência evolutiva de uma paixão intensificada ainda pelo ciúme de
uma sua amiga americana, igualmente apaixonada pelo chauffeur, desinibida e
destituída de idênticos pruridos de riqueza distanciadora.
Alexandre
revelar-se-á um príncipe russo no exílio, com uma vasta colónia da aristocracia
russa igualmente exilada, após a revolução soviética. O casamento entre ambos segundo
o cerimonial ortodoxo, com desconhecimento do riquíssimo pai de Micaela, que
jamais o aceitaria, adepto do casamento por conveniência e convergência de
fortunas, é uma peripécia quase final da novela, retardadora do final feliz,
graças a uma espécie de “mise en abîme”, pela referência involuntária de
um amigo a uma prática usual de russos unidos pelo casamento a francesas, a fim
de melhor lhes sacarem a fortuna, coscuvilhice que faz cair doente Micaela reconhecendo
nela a imagem da sua própria história. O
final será, naturalmente, muito feliz, Micaela transformada em princesinha de
conto de fadas.
Uma
história encantadora que, ao invés de outras mais ou menos lamechas dessa
colecção azul, contém um enredo bem urdido, com personagens salientando-se nas
suas manipulações sentimentais. Foi, ao chegar a Inglaterra, onde o seu marido
russo fora trabalhar como médico, que este lhe disse, em atenta preocupação
pelo seu bem-estar, após a longa doença a que ele não tivera acesso, impedido
pelo irascível milionário pai de Micaela: “Conte-me tudo”.
Muito teria
Micaela para contar ao seu adorado Sacha sobre a odisseia vivida em França.
À nossa
amiga risonhamente bombástica a resposta definitivamente trágica é: “Já só nos
resta o silêncio”.
Mas os
papagaios ainda se não extinguiram na nossa corte: palremos, sobre o nosso
nada.
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