domingo, 27 de maio de 2012

O ser de ter


Nem sempre são animais
As personagens irreais
Dos fabulistas passados.
Com humanos e duendes
A fábula que se segue,
De La Fontaine,
Cumpre a mesma função
De lição
Que as dos animais
De maior ou menor estimação
Das fábulas normais:

«Os desejos»
«Há no Império Mogol uns duendes
Que fazem ofício de criados aplicados.
Mantêm limpa a casa, tratam do mobiliário
E por vezes da jardinagem,
Sempre com muita coragem.
Se alguém mal informado
Se mete no seu trabalho,
O caldo fica entornado.
Um deles, outrora,
Cultivava o jardim de um bom burguês,
Trabalhava sem barulho,
Com habilidade e pachorra,
Amava o senhor e a senhora
E sobretudo o jardim.
Deus sabe se os Zéfiros,
Povo amigo do demo,
Não o ajudariam na tarefa.
O duende, por seu lado,
Trabalhando sem descanso,
Cumulava de prazeres os seus amos bem-amados.
Para maiores mostras do seu zelo
Ter-se-ia mantido para sempre na mansão
Dos seus senhores,
Não obstante a ligeireza
Tão natural nos seus pares;
Mas os espíritos seus confrades
Tanto fizeram, que o chefe desta república,
Por capricho ou por política,
Mudou-o de apartamento.
Ordem lhe chegou num momento
Para, nos confins da Noruega,
Ir trabalhar e cuidar
Duma casa precisada,
De neve sempre coberta;
E de Hindu que era, virou Lapão.
Antes de partir, saudoso,
Disse o espírito aos seus hóspedes,
Melindroso:
“Obrigam-me a deixar-vos:
Não sei por quais erros meus;
Mas enfim é necessário, não posso ficar  senão
Algum tempo mais, um mês,
Uma semana talvez.
Empregai-a; três desejos formulai,
 Porque poderei
Três desejos satisfazer:
Três e nenhum mais».
Desejar não é uma pena
Estranha e nova aos humanos.
Estes, como primeiro voto, pedem a abundância;
E a abundância, às mãos cheias,
Em seus cofres lança a finança;
Nos seus celeiros o trigo, os vinhos nas suas caves;
Tudo de fartura rebenta. Como gerir tanta fartura
Sem impostura?
Quantos registos, cuidados, tempo vário
Lhes foi necessário?
Ambos ficam embaraçados de modo extraordinário.
Os ladrões contra eles conspiraram,
Os grandes senhores empréstimos lhes pediram,
O príncipe de impostos os taxou.
Ei-los que estão
Infelizes até mais não
Pelo excesso de fortuna que os esmagou.
“Tirai-nos destes bens a influência importuna -
Disseram - Felizes os indigentes
Tão pouco importantes!
A pobreza vale mais do que tal fortuna.
Retirai-vos, tesouros; fugi.
E tu, deusa do belo espírito,
Companheira da serena alegria,
Doce mediania, volta depressa.”
A estes dizeres a mediania regressa.
Com ela, eles entram em graça,
Ao fim dos dois desejos, tão desastrados que foram,
 Como são todos aqueles que sempre ambicionaram
E em quimeras perderam
O tempo que a trabalhar deviam
Ter estado,
O duende riu com eles do tempo mal empregado
No recente passado.
Para aproveitarem a sua generosidade,
Quando estava prestes a partir
Pediram, como terceiro desejo,
A sabedoria, para sua felicidade.
É um tesouro que, pela sua ligeireza
 Não embaraça
Nem permite a trapaça.»

Aqui está mais uma fábula de um saber universal
Que não tem uma aplicação geral.
Qual de nós era capaz
De desdenhar assim uma fortuna
Tão oportuna?
Até porque logo pensaríamos
Em escondê-la em qualquer paraíso fiscal
Que nos impedisse
De pagar as taxas que o Estado nos exigisse!
Que agora já não é como antigamente,
Tempo vulnerável e inclemente.
E também porque hoje em dia a sabedoria
Jamais seria suficiente a uma áurea mediania
Que não faz préstimo nem causa alegria.
Porque a maior virtude
Consiste em acumular riqueza,
Não só pela incerteza
De um futuro inseguro,
Como pelo esplendor
Que resulta do ter
Mais do que do ser.
Na safra do saber ter
A ninguém já importa o saber ser.
Embora me pareça que o ser
Se define melhor com o ter.



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