Foi um
narrador defunto que, dedicando as suas “Memórias Póstumas ao verme que
primeiro roeu as frias carnes do seu cadáver”, quis com isso
transpor à raça humana tal categoria zoomórfica, dentro da sua visão sarcástica
que tornou o livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas” de Machado de Assis
o primeiro exemplar do romance naturalista brasileiro.
Trata-se,
assim, de um romance de estrutura circular, o final remetendo para o início, já
contido na Dedicatória ao primeiro verme roedor do cadáver, e igualmente
marcado, nas suas frases finais – “Capítulo CLX – Das Negativas”
- pelo julgamento pessimista constante de um enredo marcado pelas frequentes
interrupções à linearidade descritiva das vivências de Brás Cubas, pela
constante intromissão, quer dos dados do seu amplo saber cultural, quer dos conceitos
amargamente irónicos da experiência humana do seu autor: «Somadas umas coisas
e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e
consequentemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a
este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira
negativa deste capítulo de negativas: - Não tive filhos, não transmiti a
nenhuma criatura o legado da nossa miséria».
Mas foi o
carácter fantasista contido no capítulo VII – “O Delírio” – que me
chamou a atenção para o universo de fantasmagoria ou transfiguração que já
detectáramos em obras de Flaubert – como
“La Tentation de Saint- Antoine” , “La Légende de Saint-Julien l’Hospitalier”–
as “Lendas de Santos” de Eça, posteriores, estas, às “Memórias
Póstumas de Brás Cubas”, “Segundo Fausto” de Goethe, na busca do
saber e das origens, pela infinita curiosidade da inteligência humana, a que
Brás Cubas também não é alheio, montado em veloz hipopótamo, contrariamente aos
santos congéneres, seduzidos pelo Diabo - Mefistófeles (“Segundo Fausto”), Hilarion
(“Lenda de S. Frei Gil” ), os próprios animais como o “Licorne”, da
“Tentação de Santo Antão” que se descreve dinamicamente e surrealisticamente,
em paralelismo imagístico com o hipopótamo de “Brás Cubas”: “A galope! A galope!
Eu tenho cascos de marfim, dentes de aço, a cabeça cor de púrpura, o corpo
coberto de neve, e o corno da minha testa está pintalgado com as cores do
arco-íris. Viajo na Caldeia, no deserto tártaro, nas margens do Ganges e na
Mesopotâmia. Ultrapasso as avestruzes. Corro tão depressa que arrasto o vento.
Esfrego o dorso nas palmeiras, rolo-me nos bambus. De um salto transponho os
rios...”
Mas é
especialmente a análise do mundo, do tempo na sua infinitude, que formam o
universo dos considerandos deste extenso capítulo VII, sobre o delírio de Brás
Cubas precedendo a sua morte causada por um resfriado quando se ocupava na
descoberta de um “emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa
melancólica humanidade”.
Eis alguns
passos que aproximam o capítulo fantasista, de textos colhidos nos autores citados,
pese ainda o vasto repertório de referências culturais que percorrem a obra, como
característica um tanto exibicionista, colhida nos clássicos, de entretecer
enredo e vastidão de conhecimento, que distanciam a prosa pesada de Machado de Assis da prosa luminosa de
gracilidade de Eça de Queirós:
“… Ultimamente,
restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou. Deixei-me
ir, calado, não sei se por medo ou confiança: mas dentro em pouco, a carreira
de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma
arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino.
-
Engana-se – replicou o animal – nós vamos à origem dos séculos.
… Pela
minha parte fechei os olhos e deixei-me ir à aventura. Já agora não se me dá de
confessar que sentia umas tais ou quais cócegas de curiosidade, por saber onde
ficava a origem dos séculos, se era tão misteriosa como a origem do Nilo…. Abri
os olhos e vi que o meu animal galopava numa planície branca de neve, com uma
ou outra montanha de neve, vegetação de neve e vários animais grandes e de
neve. Tudo neve; chegava a gelar-nos um sol de neve. Tentei falar, mas apenas
pude grunhir esta pergunta ansiosa:
- Onde
estamos?
- Já
passámos o Éden. …..
… Caiu
do ar? destacou-se da terra? não sei; sei que um vulto imenso, uma figura de
mulher me apareceu então, fitando-me com uns olhos rutilantes como o sol….”
Tratava-se
de Natureza ou Pandora, que lhe disse:
“- … eu
não sou somente a vida; sou também a morte, e tu estás prestes a devolver-me o
que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada.”
“… Isto
dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. … Imagina tu, leitor, uma redução
dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o
tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca
dos seres e das coisas. Tal era o espectáculo, acerbo e curioso espectáculo. A
história do homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar
nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação
mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os
tempos. Para descrevê-la, seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos
desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros,
eu via tudo o que passava diante de mim – flagelos e delícias – desde essa
coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor
multiplicando a miséria e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a
cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a
pena, húmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza,
o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um
farrapo. …
Um capítulo
poderoso, que apetece mostrar na sua íntegra. António Nobre, no seu poema “A
Vida” dá-nos uma idêntica visão moralista e crítica, Vieira transformara alegoricamente
em “Naus” – Soberba, Vingança, Cobiça, Sensualidade – os defeitos
humanos captados entre os colonos brasileiros exploradores. Machado de Assis,
levado por igual ímpeto que fez o Doutor Fausto seguir docilmente o sedutor
Mefistófeles para a descoberta das origens que desde sempre atormentam o homem, desvia-se dele, todavia,
na sua visão espacial, optando pelos valores morais que regem a humanidade.
E sempre na
mira de “uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos… a quimera da
felicidade” ….
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