Uma das consequências do 25
de Abril foi a exclusão do Grego dos estudos liceais para os alunos de Clássicas.
Quando, em 1976, a minha filha se quis matricular em Românicas, escolhendo
Latim e Grego, que no meu tempo eram disciplinas obrigatórias, juntamente com as
Literaturas Francesa e Portuguesa, o Grego foi retirado duma escola que não se
chamou mais liceu, e o curso na Faculdade passou a designar-se por Línguas e
Literaturas Modernas. Tive pena que a minha filha não vivesse os prazeres que
me foram proporcionados a mim, no meu 6º e 7º anos do liceu, com o estudo do
Grego, leccionado pelo excelente professor Francisco Maria Martins, no liceu
Salazar de Lourenço Marques. Tratava-se de uma escrita diferente, a começar
pelo alfabeto, os verbos, as declinações, e a terminar em alguns escritores de
que lembro, além de fábulas de Esopo, S. João Crisóstomo e a sua conhecida
frase “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade” que me ficou na memória (Mataiótês
mataiotêton, tá panta mataiótês, naturalmente que reconvertido toscamente, e
por graça, no alfabeto latino, a internet ainda não possibilitando, pelo menos
aos leigos, escritas simultâneas em alfabetos diferentes).
Era um prazer, a decifração
de uma escrita ligada a escritores da Grécia antiga, como faróis de um mundo de ideias e filosofias de tão
lata repercussão na Europa Ocidental primeiro, seguidamente no mundo
esclarecido que dela proveio. Na Faculdade, só os estudantes de Clássicas é que
continuaram a usufruir desses prazeres, cá, relativamente ao Grego, os
estudantes de Românicas continuando por mais três anos o estudo do Latim e
lembro, do meu tempo de estudante em Coimbra, Maria Helena da Rocha Pereira, professora
já então famosa nas lides sobretudo helénicas, mas pouco visível nos meios
mediáticos da actualidade, apesar dos seus trabalhos ensaísticos e de tradução
dos clássicos.
Felizmente, ainda há quem
prossiga nos estudos clássicos da Grécia e do Lácio e Frederico Lourenço
é um desses. Traduções fascinantes da “Odisseia” e da “Ilíada” e “Grécia
Revisitada” são os livros que dele tenho presentes. É deste último que extraio
o início do texto “A Língua Grega”, o qual reflecte bem o porquê
da mágoa que inutilmente me acompanha por não ter proporcionado à minha filha
Paula o encantamento que vivi na mesma idade em que ela poderia ter sentido
iguais deslumbramentos de uma estranha e curiosa conquista, ainda que limitada
a dois anos escolares. Ficou-lhe o Latim, de que guarda belas recordações
referentes à sua competente professora Maria Luísa Gravata da Escola de S. João
do Estoril.
Eis um excerto do texto de Frederico
Lourenço “A Língua Grega”:
«Tragicamente arredada
dos planos de estudo do ensino secundário e aprendida por uma minoria
insignificante no ensino superior, a língua de Homero, Platão e do Novo Testamento
tornou-se, em Portugal, aquilo que em três mil anos de história nunca chegou
verdadeiramente a ser: uma língua morta.
É pena. Pois não só é
um idioma mais belo e mais expressivo do que qualquer língua moderna (e se há
pessoa que ama profundamente o português, o inglês e o alemão é o autor destas
linhas…): foi em grego que os textos mais fundamentais para a nossa consciência
de europeus foram escritos.
É uma
língua difícil, sem dúvida. Para ser dominada com um mínimo de competência,
requer à vontade dez anos de estudo diário, intenso. É uma língua exigente,
porque quem não a lê todos os dias acaba rapidamente por esquecer o vocabulário,
a diabólica morfologia, a multiplicidade de fenómenos fonéticos, os mistérios
arcanos da sua acentuação. Pegar na “República” de Platão e lê-la como se fosse
o jornal? São poucos os classicistas que chegam a esse estado de beatitude.
Na
Universidade de Cambridge, tive o privilégio de conhecer alguns dos maiores helenistas
da actualidade. Qualquer um deles lia grego todos os dias – treino diário como
se fossem pianistas ou atletas – para não perder a forma. (…) Tenho consciência
aguda da necessidade de trabalhar o grego todos os dias; do risco que me
espreita sempre: deitar a perder anos de estudo. É mais fácil esquecer o grego
do que aprendê-lo. (…)
Há
dois argumentos tradicionais que são normalmente invocados quando se trata de
defender o ensino e aprendizagem das línguas clássicas. O mais patusco alega
que aprender grego ou latim torna as pessoas mais inteligentes! (…)
Sou
um pouco mais sensível ao segundo argumento tradicional: saber grego e latim
enriquece a relação do lusitano com a sua própria língua. Digo “um pouco mais”,
porque já reparei há algum tempo que, entre as camadas mais jovens da população
universitária, os estudantes de línguas clássicas falam tão mal português como
os que nunca leram duas palavras de Horácio. “É assim”: parece que o português
falado entrou em queda livre, a todos os níveis. Trata-se de um fenómeno
histórico, sociológico: irreversível, de qualquer forma – e os botas de
elástico da “correcção” podem bem arrumar de vez as botas.
Não,
o grego não torna ninguém mais inteligente; também não oferece defesa contra a
plastificação da língua portuguesa, imposta por uma televisão tão reles como a
da Itália, pátria de Horácio. Há apenas duas razões para aprender grego. Dá
prazer. Alarga. ……..»
Um texto
para meditar. Como os restantes deste livro «Grécia Revisitada”. Que alarga
e dá prazer. Mas só a quem o apetece. A gravidade do que nele se diz, quer em
relação à retirada “trágica” do Grego no Ensino Secundário, quer ao
torpedeamento da Língua Portuguesa pelas camadas estudantis do Ensino
Universitário não perturbam os governos, este último, sem outra devoção que não
seja a de pagador de promessas.
Também o
Francês e a sua literatura foram estrelas condutoras “tant bien que mal” do nosso panorama intelectual
de outrora. Eça de Queirós largamente o definiu. Levou o mesmo pontapé que o
Grego, nos anos posteriores ao de Abril. E assim a Filosofia… Mas se a própria
língua é menosprezada pelos dirigentes da Nação em Acordos Ortográficos da
nossa vileza e mediocridade sem paralelo, e não só neste espaço de uma Europa
competente, herdeira ou não do passado helénico, mas ao nível de tantos outros
países do mundo inteiro, que mais se pode augurar a não ser o soçobrar deste
pobre rectângulo, nau para sempre à deriva?
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