Foram-me
enviados por email as duas epístolas seguintes, que transcrevo. O primeiro, de Maria
Helena Mira Mateus, Professora Catedrática Jubilada da Faculdade de Letras de
Lisboa, insurgindo-se contra o texto de Teolinda Gersão “Declaração de
amor à Língua Portuguesa” em que esta tenta combater, com dados um tanto
facetos, o alucinante método actual de ensino da gramática portuguesa, de uma
tal abundância de pormenor metalinguístico, que reduz valentemente o interesse
pela simples leitura e desmontagem dos elementos semânticos descodificadores
das mensagens. Parece pura aberração tal sobrecarga linguística envolvendo a
gramática já ao nível do ensino básico, em que a aprendizagem da leitura e
ortografia são fulcrais para o estudo e compreensão de todas as mais
disciplinas.
Maria
Helena Mira Mateus insurge-se contra o texto da amiga, como participante,
segundo esta explicitará na sua resposta, da reformulação linguística no ensino
do português escolar, autêntica carnavalada dengosa e snobe, puro pretexto exibicionista
dos recentes edificadores do ensino da língua, merecedores de Inquisição, como destruidores
da limpidez e simplicidade requeríveis, na minha opinião também refractária, como
a da Teolinda Gersão, e conhecendo por experiência própria as dificuldades do
ensino do português, como disciplina tentacular.
Teolinda Gersão não precisa de ser defendida. Ao afirmar corajosamente que
“é altura de o país – se assim quiser – dizer basta. A língua
não é propriedade dos linguistas. O ensino da língua também não”, é credora da nossa imediata adesão.
É claro que
o país “não quer dizer basta”, indiferente às pinturas narrativas ou às argúcias
expositivas das pessoas que mantêm o bom senso aliado ao bom gosto que o país
perdeu há muito e que se traduz pela palavra “decência”.
Leiamos
então:
A propósito de uma Declaração de amor à
língua portuguesa
Foi publicado no jornal Público um
artigo de Teolinda Gersão – uma das nossas melhores escritoras por quem tenho
admiração e amizade – com o título Redacção
- Declaração de Amor à Língua Portuguesa.
A sua leitura desagradou-me de tal modo que cheguei a julgar tratar-se de uma
brincadeira da autora sob a forma de uma crítica sarcástica ao ensino do
português. Mas como nem todas as pessoas a entendem assim, pus-me algumas perguntas: A quem se dirige esta brincadeira?
Aos autores do programa de português na parte que diz respeito à gramática? Aos
manuais de que se servem os professores, que podem conter erros por não haver a
certificação de correção e qualidade, decidida há uns anos e não implementada?
E já que o artigo assenta nas “ideias” de um estudante, será que o que está em
causa é um professor que não conhece o que ensina?
Uma escritora do nível da Teolinda
Gersão não pode aceitar como bons todos os disparates que lhe são transmitidos
pelo seu neto estudante. Existem materiais de fácil acesso para refutar o que
considera asneira. Já conhece o Programa
de Português do Ensino Básico? Já viu os materiais que podem ser
consultados pelos professores (ou pelos pais/avós) para perceber como e porquê
se analisa uma língua, como se adequa esse ensino ao nível de escolaridade, o
que deve ser transmitido em cada ano e o que serve apenas para informação do
professor? Já pensou em como uma explicação da
construção de um texto ou frase que o aluno produz ajuda a desenvolver o seu
raciocínio e aumenta o seu domínio da oralidade e da escrita?
Os alunos não são tolos e têm
curiosidade pelo ensino de qualquer disciplina se forem estimulados a olhar
crítica e criativamente o que está por detrás das suas produções linguísticas e
artísticas e dos mistérios da natureza. É nisto que consiste a educação. Mas o
que verdadeiramente os desestimula é que alguém, que tem responsabilidade na
escrita de uma língua, diga que “vai deitar a gramática na retrete “ (as palavras
são da escritora mas “as ideias são deles”). Considera a Teolinda que não vale
a pena estudar gramática? E aprender a fazer operações de matemática ou
conhecer a física nas suas diversas forças e energias já vale a pena? Preparar
materiais para o ensino do português tem sido o trabalho criterioso e dedicado
de equipas, tal como tem sido feito para a matemática e para as ciências. Todas
estas áreas têm tido a sua atualização didática e implicam uma adaptação a
novos conhecimentos por parte dos agentes de ensino. E se um professor não sabe
como explicar a construção das frases, do texto, da entoação e sons com que se
constrói esta maravilha que é uma língua, é absurdo assacar ao ensino da língua
materna erros, dislates e desinteresse que sente um estudante que julga que
aprender português é só ter lido alguns livros (quando o faz) e não dar erros
de ortografia. Deste modo, ele nem sequer vai tomar consciência da razão por
que um texto literário é melhor do que outro, ou por que uma instrução ou uma
lei pode ser ou não ser ambígua. Uma generalização da inutilidade e dos erros
do ensino do português, apresentada a sério ou a brincar, apenas mostra uma
completa falta de respeito pelos agentes desse ensino e por todos os que têm
trabalhado nesta área. E de certeza que não se trata de uma “declaração de
amor”, visto que o amor procura e proclama os aspetos bons do objeto amado.
Não desejo discutir aqui os exemplos
dados pela autora do artigo porque eles têm tanto de errado como de ridículo.
Aconselho somente uma consulta do Programa de Português do Ensino Básico e, já
que tem uma completa falta de conhecimentos de gramática, poderia também
consultar o Dicionário Terminológico destinado aos professores (e não aos
alunos). Dessa maneira ajudaria mais um estudante do que tornando pública uma
atitude que não é, certamente, recomendável num educador.
Maria Helena Mira Mateus
Professora Catedrática
Jubilada da Faculdade de Letras de Lisboa
28 de junho de 2012
«Carta Aberta a Maria Helena (Mateus)
Querida Maria Helena:
Há 50 anos que sou tua amiga, te
admiro como pessoa e respeito o teu trabalho como professora universitária de
linguística. Sempre evitei, no entanto, discutir contigo o trabalho que tens
feito fora da universidade, nomeadamente no que respeita à influência que tens
tido no ensino do português no secundário. Sempre soube que nesse ponto não
estávamos – e nunca vamos estar de acordo.
Penso contudo que um dos problemas do
nosso país é deixarmos que as relações pessoais interfiram demasiado com nossas
posições cívicas, e com a defesa do que consideramos correcto e justo. Sei que
também assim pensas, e por isso te manifestaste tão negativamente sobre o meu
texto que, como se pode provar pela adesão que tem tido, dá voz à saudável
resistência dos alunos e ao descontentamento de milhares de pais, encarregados
de educação e professores.
Na verdade, querida Maria Helena, ao
responder ao meu artigo assumes a posição de porta-voz da defesa deste ensino.
Não me surpreende, porque de facto tens grandes responsabilidades, ao longo de
décadas, pela passagem do ensino do português no secundário a ensino da
linguística (de uma determinada perspectiva linguística) no secundário. Não és
obviamente a única responsável, mas é inegável que tens grandes
responsabilidades nisso. Por isso ao responder-te estou a responder a toda uma
“classe” de pessoas que partilham a tua visão do mundo.
O que o meu texto vem dizer é que este
ensino não nos serve, e que tem havido um enorme abuso de poder de alguns sobre
a maioria. Na verdade a tua opinião pessoal sobre esta questão não conta (nem
mesmo encarando-te como porta-voz de um colectivo). Nem é a minha opinião
individual, como cidadã, que tem qualquer interesse. Escrevi o que entendi que
não podia deixar de escrever – e obviamente não pedi licença a ninguém. Se
grande parte do país leu o meu texto e se identificou com ele, é algo que está
fora do teu controle, e do meu. Por muito que isso te desagrade (e a todos os
que te olharem como porta-voz), será o país a decidir que ensino quer – os pais,
os professores, os cidadãos, e o ministério (que será julgado por tudo o que fi
zer ou não). Vivemos há décadas no enorme equívoco de que “os linguistas é que
sabem, por isso o poder é deles”. (O que te deve parecer tão óbvio que nem dás
conta da imensa arrogância do teu artigo.)
Mas é altura de o país – se assim
quiser – dizer basta. A língua não é propriedade dos linguistas. O ensino da
língua também não.
E é tudo, Maria Helena. Pela minha
parte, gostaria que a nossa amizade resistisse a este confronto.
Teolinda»
Notas:
Eis o texto de Teolinda Gersão que Salles da Fonseca publicou
no seu blogue “A Bem da Nação” em 24/6/12
« Tempo de exames no secundário, os meus
netos pedem-me ajuda para estudar português. Divertimo-nos imenso, confesso. E
eu acabei por escrever a redacção que eles gostariam de escrever. As palavras
são minhas, mas as ideias são todas deles.Aqui ficam, e espero que vocês também
se divirtam. E depois de rirmos espero que nós, adultos, façamos alguma coisa
para libertar as crianças disto.
Redacção – Declaração de Amor à
Língua Portuguesa
Vou chumbar a Língua Portuguesa, quase
toda a turma vai chumbar, mas a gente está tão farta que já nem se importa. As
aulas de português são um massacre. A professora? Coitada, até é simpática, o
que a mandam ensinar é que não se aguenta. Por exemplo, isto: No ano passado,
quando se dizia “ele está em casa”, ”em casa” era o complemento circunstancial
de lugar. Agora é o predicativo do sujeito.”O Quim está na retrete” : “na
retrete” é o predicativo do sujeito, tal e qual como se disséssemos “ela é
bonita”. Bonita é uma característica dela, mas “na retrete” é característica
dele? Meu Deus, a setôra também acha que não, mas passou a predicativo do
sujeito, e agora o Quim que se dane, com a retrete colada ao rabo.
No ano passado havia complementos
circunstanciais de tempo, modo, lugar etc., conforme se precisava. Mas agora
desapareceram e só há o desgraçado de um “complemento oblíquo”. Julgávamos que
era o simplex a funcionar: Pronto, é tudo “complemento oblíquo”, já está.
Simples, não é? Mas qual, não há simplex nenhum, o que há é um complicómetro a
complicar tudo de uma ponta a outra: há por exemplo verbos transitivos directos
e indirectos, ou directos e indirectos ao mesmo tempo, há verbos de estado e
verbos de evento,e os verbos de evento podem ser instantâneos ou prolongados,
almoçar por exemplo é um verbo de evento prolongado (um bom almoço deve ter
aperitivos, vários pratos e muitas sobremesas). E há verbos epistémicos,
perceptivos, psicológicos e outros, há o tema e o rema, e deve haver coerência
e relevância do tema com o rema; há o determinante e o modificador, o
determinante possessivo pode ocorrer no modificador apositivo e as locuções
coordenativas podem ocorrer em locuções contínuas correlativas. Estão a ver? E
isto é só o princípio. Se eu disser: Algumas árvores secaram, ”algumas” é um
quantificativo existencial, e a progressão temática de um texto pode ocorrer
pela conversão do rema em tema do enunciado seguinte e assim sucessivamente.
No ano passado se disséssemos “O Zé
não foi ao Porto”, era uma frase declarativa negativa. Agora a predicação
apresenta um elemento de polaridade, e o enunciado é de polaridade negativa.
No ano passado, se disséssemos “A
rapariga entrou em casa. Abriu a janela”, o sujeito de “abriu a janela” era
ela, subentendido. Agora o sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que continua a ser
ela? Que aconteceu à pobre da rapariga? Evaporou-se no espaço?
A professora também anda aflita. Pelo
vistos no ano passado ensinou coisas erradas, mas não foi culpa dela se agora
mudaram tudo, embora a autora da gramática deste ano seja a mesma que fez a
gramática do ano passado. Mas quem faz as gramáticas pode dizer ou desdizer o
que quiser, quem chumba nos exames somos nós. É uma chatice. Ainda só estou no
sétimo ano, sou bom aluno em tudo excepto em português,que odeio, vou ser
cientista e astronauta, e tenho de gramar até ao 12º estas coisas que me recuso
a aprender, porque as acho demasiado parvas. Por exemplo,o que acham de
adjectivalização deverbal e deadjectival, pronomes com valor anafórico,
catafórico ou deítico, classes e subclasses do modificador, signo linguístico,
hiperonímia, hiponímia, holonímia, meronímia, modalidade epistémica,
apreciativa e deôntica, discurso e interdiscurso, texto, cotexto, intertexto,
hipotexto, metatatexto, prototexto, macroestruturas e microestruturas textuais,
implicação e implicaturas conversacionais? Pois vou ter de decorar um
dicionário inteirinho de palavrões assim. Palavrões por palavrões, eu sei dos
bons, dos que ajudam a cuspir a raiva. Mas estes palavrões só são para
esquecer. Dão um trabalhão e depois não servem para nada, é sempre a mesma
tralha, para não dizer outra palavra (a começar por t, com 6 letras e a acabar
em “ampa”, isso mesmo, claro.)
Mas eu estou farto. Farto até de dar
erros, porque me põem na frente frases cheias deles, excepto uma, para eu escolher
a que está certa. Mesmo sem querer, às vezes memorizo com os olhos o que está
errado, por exemplo: haviam duas flores no jardim. Ou : a gente vamos à rua.
Puseram-me erros desses na frente tantas vezes que já quase me parecem certos.
Deve ser por isso que os ministros também os dizem na televisão. E também já
não suporto respostas de cruzinhas, parece o totoloto. Embora às vezes até se
acerte ao calhas. Livros não se lê nenhum, só nos dão notícias de jornais e
reportagens, ou pedaços de novelas. Estou careca de saber o que é o lead, parem
de nos chatear. Nascemos curiosos e inteligentes, mas conseguem pôr-nos a
detestar ler, detestar livros, detestar tudo. As redacções também são sempre
sobre temas chatos, com um certo formato e um número certo de palavras. Só
agora é que estou a escrever o que me apetece, porque já sei que de qualquer
maneira vou ter zero.
E pronto, que se lixe, acabei a
redacção - agora parece que se escreve redação. O meu pai diz que é um
disparate, e que o Brasil não tem culpa nenhuma, não nos quer impôr a sua norma
nem tem sentimentos de superioridade em relação a nós, só porque é grande e nós
somos pequenos. A culpa é toda nossa, diz o meu pai, somos muito burros e
julgamos que se escrevermos ação e redação nos tornamos logo do tamanho do
Brasil, como se nos puséssemos em cima de sapatos altos. Mas, como os sapatos
não são nossos nem nos servem, andamos por aí aos trambolhões, a entortar os
pés e a manquejar. E é bem feita, para não sermos burros.
E agora é mesmo o fim. Vou deitar a
gramática na retrete, e quando a setôra me perguntar: Ó João, onde está a tua
gramática? Respondo: Está nula e subentendida na retrete, setôra, enfiei-a no
predicativo do sujeito.
João Abelhudo, 8º ano, turma C (c de
c…r…o, setôra, sem ofensa para si, que até é simpática).
Comentário que fiz ao texto de
Teolinda Gersão. No mesmo blogue “A bem da Nação”, em 24/7/12
Já tinha lido o texto de
Teolinda Gersão, merecedor de todo o aplauso daqueles que, amando a sua língua
e desejando elevá-la a um grau de entendimento nos jovens que gradualmente se
vão abrindo para o mundo, através das matérias das diferentes disciplinas, e
para isso considerando primordiais os antigos instrumentos gramaticais de
abertura para a compreensão das leituras nos valores do significante e do
significado, a vêem "poluída" de arabescos só indispensáveis para os
especialistas, desejosos de colher resultados espectaculares nas suas
investigações, tais como os cientistas que se debruçam sobre os infinitamente
pequenos dos seus universos de análise, para detectar e curar as doenças ou
descobrir bombas potentes. Mas parece absurdo querer levar para os anos de
formação escolar tais preciosismos de um requinte inútil, instauradores de
doença e morte e não curadores delas. A imbecilidade em marcha, nos nossos
programas educacionais. Julgava que o novo Governo traria mudanças a esse
respeito, mas se ele não elimina o A. O., como há-de ser sensível a estas
outras monstruosidades da nossa verborreia nacional? Se não sabem fazer contas,
pelo que se tem visto nos cálculos financeiros, como hão-de exigir o estudo das
tabuadas? Os erros próprios passam mais despercebidos no charco da mediocridade
generalizada, já Sá de Miranda o dizia, na sua écloga "Basto", o
Bieito contando ao solitário Gil o exemplo daquele único que se salvou do
temporal, mas que foi incitado pelos mais a molhar-se no charco como eles:
"Quantos viram, lá correram: / um que salta, outro que trota / Quantas
graças aí fizeram! / Logo todos se entenderam: / Ei-los vão numa chacota."
Estamos já no charco, colaboremos na chacota da indiferença. Porque nem o texto
de Teolinda Gersão, tão rico no seu saber e oportuno na sua indignação
subentendida, conseguirá o objectivo de mudança.
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