Eu já tinha
industriado a minha amiga de um pecadilho de gula apenso ao clã familiar da
minha infância, de gostarmos – a minha mãe, a minha irmã e eu – dos ovos estrelados
com açúcar, o que francamente a desmotivou de pegar em outros episódios da sua
crítica à mísera actualidade, repugnada que ficou, que é pessoa de comedimento
na questão das doçuras e assim mo explicitou.
A propósito,
pois, de ovos estrelados, referi-lhe o episódio de “A Capital” do Eça, em que
Artur Corvelo, saído da província, e querendo lançar-se no mundo literário da
capital, lê aos seus comensais, intelectuais da praça, angariados pelo parasita
Melchior, partes de uma sua peça de teatro, numa cena grotesca de gente
indiferente e esfomeada, que vai comentando e rosnando entre dentes contra a
maçada de uma leitura sobre ambientes e figuras de uma realidade e um enredo sediços.
A cena gaguejada do “estrelados só ovos” provocou muita gargalhada de intenção
maldosa, destruidora dos efeitos restantes da intriga, entre a gente deserta
por começar a comer. Não resisti a levar-lhe essa parte da cena do capítulo IV
(É Artur Corvelo que fala):
«- O que
lhes vou agora ler, é quando o Poeta faz, em casa da duquesa, o elogio da
poesia… E enfim, verão… É numa soirée:
«O CONDE DE
S. SALVADOR
«- Leu
os “Céus Estrelados”, marquesa?
«A MARQUESA
DE ALVARENGA (despeitada)
«- Até acho
impertinente que mo pergunte, Conde! Uma pessoa do meu nascimento e da minha
educação, não toca nem com luvas…
«O VISCONDE
de FREIXAL (gaguejando)
«- A
ma-arquesa e-em que-estões de es-es-trelados só-ó o-vos!
Todos
riram. Muito bem! Muito bem! O Meirinho afectava torcer-se…»
Uma cena
caricatural, que culmina com a longa notícia bajuladora do jornal, que tudo
refere subservientemente acerca das altas personalidades que participaram no
sarau literário, e do distinto menu, escamoteando o nome do seu patrocinador e
autor da obra lida, e mais uma vez reveladora do conhecimento humano e dos
ambientes pedantes e simultaneamente pirosos e mesquinhos da sociedade lisboeta,
e das dificuldades para se singrar no mundo da literatura, que Eça tão bem
conheceu.
Mas dias
depois, a minha amiga, que é uma alma sensível e escuta todos os programas dos
canais sensíveis aos interesses do nosso público e mesmo aqueles expressivos do
nosso bem-estar material, como sejam alguns da Sic e da TVI de muita alegria,
cujo dinheirão para os elevados cachets não mergulha na mísera bolsa dos
portugueses, ao que eu logo opus que não devemos generalizar tanto a questão
miserabilista, e ela logo arremeteu contra o “Prós e Contras”, como exemplo de
programa de muita extensão horária, e de largo dispêndio de palavras e de
pessoas, conquanto sem resultados práticos para o país, apesar dos esforços denodados
da Fátima Campos Ferreira, a não ser a tal canalização do dinheiro dos impostos
para efeitos retributivos, o que muito enerva a minha amiga, mesmo que eu ache
que às vezes se colhe esperança nele, no que ela não acredita, por entender,
como Pacheco Pereira, que o programa é de encomenda pró-governo, tão passista
agora, como antes fora socratista, por a RTP ser um canal ligado ao poder.
Ora, entre
os programas que a afectaram na sua piedade, conta-se uma entrevista a um
industrial de ovos sobre a imposição europeia de alterar as condições dos
espaços de criação dos ovos, o que, por falta da verba necessária, exigiria dos
industriais ovícolas a matança de milhões de galinhas. E, além dos preços dos
ovos aumentarem, também de exportador, Portugal passaria a ser importador de
ovos.
O
industrial estava desolado, era mais um a ter que despedir trabalhadores, ele
próprio provavelmente ficando sem trabalho, “coitadas das pessoas!”, no
que eu contestei a minha amiga, para a distrair das suas penas, que são minhas
também, fartas que estamos das notas negativas a um governo que tem construído
a sua teoria de salvação do país assente no sacrifício de alguns e que não se
resolve a cobrar dos que enriqueceram ilicitamente.
E a minha
amiga explica que “o dinheiro está todo lá. Agora mandar vir vai dar um
trabalhão. Então não está provado que está roubado até à quinta casinha?”
Falámos nas
passeatas do presidente e dos ministros pelo mundo além, ao que parece com
objectivos de desenvolvimentos comerciais, mas ponderámos que já muitas
passeatas dessas se fizeram antes, e o resultado fora, como agora iria ser, de
rombo no erário público para divertimento do pessoal governativo viajante aéreo.
E nem sequer em viagem para comercializar os ovos da hecatombe anunciada, como
mais um retalho do país a saldo.
Não. Os
ovos estarão reservados para as balas da nossa garantia de continuidade. A
ministra Assunção Cristas garante estar em cima do acontecimento, alguma
solução há-de ter na manga. Com açúcar é que não é.
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