Lemos num
breve estudo apenso ao livro da colecção “Classiques Larousse”, “Le Cousin
Pons” de Balzac, que a moda do bricabraque se iniciou, em França, no século XIX,
que já Victor Hugo corria os antiquários com a sua amada Juliette Drouet, mas que
foi Balzac que erigiu um monumento literário à arte do bibelot, com a criação
da personagem Pons, do seu romance “Le Cousin Pons”, revelador de um
conhecimento balzaquiano invulgar na arte da marcenaria, mas mais superficial
relativamente à pintura e escultura.
É o cousin
Pons, personagem ridícula, na sua fealdade, tímida delicadeza de pobre e no seu
vestuário fora de moda, primo de uns figurões de uma nobreza recente, os
Camusot de Marville, novos-ricos desdenhosos que lhe oferecem os seus finos
repastos e simultaneamente o desconsideram, a este parente pobre, vivendo da
sua música e gastando os seus magros proventos na aquisição de antiguidades, a
sua grande paixão, juntamente com a do pecado da gula, que o torna dependente
dessa família pedante, de cuja filha é professor de música. Uma ofensa destes o
faz ausentar-se por algum tempo do seu convívio, compensado com a presença do seu
grande amigo e companheiro, o alemão Schmuckre, professor de piano no teatro
onde Pons igualmente trabalha depois das suas aulas particulares, e uma alma
boa, que o aconselha a viver como ele “de pão e queijo, na sua casa, em vez
de ir comer jantares que lhe faziam pagar tão caro”, mas breve verifica que
o estômago de Pons ultrapassa, em exigência, as suas próprias delicadezas e
susceptibilidades do coração e da alma. Logo, com ternura, tenta aliciá-lo,
consolando-o nos seus desgostos e aumentando o requinte das iguarias, por
intermédio da porteira da casa onde vivem, Mme Cibot, inicialmente maternal e
prestável com os dois velhotes de alma cândida, mas, com a descoberta da
fortuna de Pons em objectos de bricabraque adquiridos ao longo de uma vida de
devaneio pelas ruas de Paris no intervalo dos seus escassos e mal remunerados
trabalhos, revelando-se tão gananciosa como o resto da trupe de familiares e outros
figurões que vão surgindo com a revelação gradual do significado financeiro dessa
colecção – um revendedor, um coleccionador, um médico, um advogado, toda a
casta de escroques ávidos que triunfarão, em maquinação poderosa, com a morte
de Pons e de Schmuckre, a quem aquele tinha deixado o usufruto da colecção,
legada ao Museu do Louvre e ao Estado francês, testamento, entretanto, sonegado
pelo advogado Fraisier. A colecção de Pons – a verdadeira heroína desta
história, segundo o seu narrador, pois despoletará as paixões e as
malfeitorias sórdidas de personagens da cena francesa escrupulosamente e
poderosamente escalpelizada por Balzac ao longo das várias obras da sua “Comédie
Humaine” – virá parar à família Camusot de Marville que tanto desprezara o
seu parente pobre.
Eça de
Queirós, na obra “Os Maias”, seguirá Balzac na referência ao interesse pelo
bricabraque de uma das suas personagens intelectualmente mais sedutoras – o
inglês Craft, fleumático mas sensível, cuja casa nos Olivais virá a desempenhar
um papel importante na trama desenrolada – local dos amores escondidos, por
falsa crença de adultério, e que se revelarão incestuosos, dos dois
protagonistas Carlos e Maria Eduarda, inconscientes do laço familiar que os
une.
Contra um cenário e um estilo minuciosos em pormenor e intenção crítica de Balzac, destacam-se as cenas leves, de caricatura e humor, ou de doçura e tristeza, de Eça, numa acção que se vai desdobrando com personagens gradualmente impostas, com o delinear de um enredo de suspense, em que o fatalismo é a chave manipuladora.
Contra um cenário e um estilo minuciosos em pormenor e intenção crítica de Balzac, destacam-se as cenas leves, de caricatura e humor, ou de doçura e tristeza, de Eça, numa acção que se vai desdobrando com personagens gradualmente impostas, com o delinear de um enredo de suspense, em que o fatalismo é a chave manipuladora.
É assim a
apresentação de Craft a Carlos feita pelo esfuziante Ega, na véspera do jantar
no Hotel Central (Cap. VI), e após a partida daquele:
« - É
das melhores coisas que tem Lisboa. Vais-te morrer por ele… E que casa que ele
tem nos Olivais, que sublime bricabraque!»
E é no dia
seguinte que tem lugar o novo encontro de Carlos com Craft, em cena
aparentemente inócua, embora cheia de graça no seu diálogo e no discurso semidirecto
definidores de caracteres – o retrato do tio Abraão salientando-se na sua subserviência
de vigarista, de repetidos salamaleques, e doce linguagem mesureira, carregada
de diminutivos - mas contendo já a ironia trágica que aparenta esta obra com a tragédia
sofocliana, pelas maquinações do destino nela contidas, em particular “O Rei
Édipo”, com a novidade da informação de que Craft se iria desfazer da sua
colecção de bricabraque, os fios da intriga trágica urdindo-se insinuantemente:
«Nessa
tarde, às seis horas, Carlos, ao descer a Rua do Alecrim para o Hotel Central,
avistou Craft dentro da loja de bricabraque do tio Abraão.
Entrou.
O velho judeu, que estava mostrando a Craft uma falsa faiança do Rato, arrancou
logo da cabeça o sujo barrete de borla, e ficou curvado em dois, diante de
Carlos, com as duas mãos sobre o coração.
Depois,
numa linguagem exótica, misturada de inglês, pediu ao seu bom senhor D. Carlos
da Maia, ao seu digno senhor, ao seu beautiful gentleman, que se dignasse examinar uma
maravilhazinha que lhe tinha reservada; e o seu muito generous gentleman tinha
só a voltar os olhos, a maravilhazinha estava ali ao lado, numa cadeira. Era o
retrato duma espanhola, apanhado a fortes brochadelas de primeira impressão, e
pondo, sobre um fundo audaz de cor-de-rosa murcho, uma face gasta de velha
garça, picada das bexigas, caiada, ressudando vício, com um sorriso bestial que
prometia tudo.
Carlos,
tranquilamente, ofereceu dez tostões. Carlos pasmou de uma tal prodigalidade, e
o bom Abraão, num riso mudo que lhe abria entre a barba grisalha uma grande
boca de um só dente, saboreou muito a chalaça dos seus ricos senhores”. Dez tostõezinhos!
Se o quadrinho tivesse por baixo o nomezinho de Fortuny, valia dez continhos de
réis. Mas não tinha esse nomezinho bendito… Ainda assim valia dez notazinhas
de vinte mil réis…
- Dez
cordas para te enforcar, hebreu sem alma!
E saíram,
deixando o velho intrujão à porta, curvado em dois, com as mãos sobre o
coração, desejando mil felicidades aos seus generosos fidalgos…
- Não
tem uma única coisa boa, este velho Abraão – disse Carlos.
- Tem a filha
- disse o Craft.
Carlos
achava-a bonita mas horrivelmente suja. Então a propósito de Abraão, falou a
Craft dessas belas colecções dos Olivais, que o Ega, apesar do desdém que
afectava pelo bibelot e pelo móvel de arte, lhe descrevera como sublimes.
Craft encolheu os ombros.
Craft encolheu os ombros.
- O Ega
não entende nada. Mesmo em Lisboa, não se pode chamar ao que eu tenho uma
colecção. É um bricabraque de acaso… De que, de resto, me vou desfazer!
Isto
surpreendeu Carlos. Compreendera pelas palavras de Ega ser essa colecção
formada com amor, no laborioso decurso dos anos, orgulho e cuidado de uma
existência de homem…
Craft
sorriu daquela legenda. A verdade era que só em 1872 ele começara a
interessar-se pelo bricabraque; chegava então da América do Sul; e o que fora
comprando, descobrindo aqui e além, acumulara-o nessa casa dos Olivais, alugada
então por fantasia, uma manhã que aquele pardieiro, com o seu bocado de quintal
em redor, lhe parecera pitoresco, sob o sol de Abril….»
É a colecção
de Craft que Carlos comprará a Craft, alugando-lhe a casa dos Olivais por um
ano, para Maria Eduarda e a filhita. (cap. XII).
No capítulo
XIII tem lugar o descritivo dos Olivais e do seu recheio artístico, na primeira
visita de Maria Eduarda, com várias figuras sinistras – os amores adúlteros, se
não incestuosos de Vénus e Marte, desmaiando na “trama de lã” de uma tapeçaria,
um “painel antigo, defumado … onde apenas se distinguia uma cabeça degolada,
lívida, gelada no seu sangue, dentro de um prato de cobre (a cabeça de S.
João Baptista).” Um armário com dois faunos discordantes dos
outros motivos cinzelados, o génio tutelar da casa “um ídolo japonês de bronze,
um deus bestial, nu, pelado, obeso, de papeira, faceto e banhado de riso….”
Descritivo
simbólico, na sua hediondez, de uma paixão tão espiritual, enquanto não é
decifrado o segredo que uma fatal carta materna trazida por um fatal agente inconsciente
do seu papel – o tio de Dâmaso, Sr.
Guimarães – provando que se trata, na realidade, de uma paixão criminosa.
Balzac
tratara o tema do bricabraque de uma forma dinâmica e realista, mostrando como
ele despoletara as paixões ambiciosas dos seres sem escrúpulos, não deixando,
todavia, de reclamar para a colecção Pons, simbolicamente, o papel de heroína
principal.
N’ “Os
Maias”, a simbologia da colecção de Craft, tão magnificamente descrita, tem a
ver antes com uma arte romanesca filiada em escolas várias – realismo,
romantismo, classicismo. Uma arte que recua no tempo. Uma arte quer avança no
tempo.
Uma arte perene
de perfeição. De um escritor português. De um livro dificilmente superado, a
nível mundial, por nenhum outro, quer em graça e ironia, quer em sentido crítico,
quer em descritivo humano, quer em descritivo
paisagístico, quer em riqueza de estilo, quer em arquitectura formal…: “OS
MAIAS” de EÇA DE QUEIRÓS.
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