«Sozinha
no bosque / Com meus pensamentos, / Calei as saudades, / Dei trégua a
tormentos.
Olhei
para a lua, / Que as sombras rasgava, / Nas trémulas águas / Seus raios
soltava.
Naquela
torrente / Que vai despedida / Encontro, assustada, / A imagem da vida.
Do
peito, em que as dores / Já iam cessar, / Revoa a tristeza / E torno a penar.»
Foi a marquesa de Alorna a autora dos versos
supracitados, versos de solidão e de
tristeza, que boas razões teve para ser triste, versos de contemplação do rio e
do conceito heraclitiano de equiparação do seu fluir com o curso efémero da
vida, e o consequente renovar subjectivo da tristeza pelo sentido da imagem
clássica, que Ricardo Reis concretizou, numa doutrina de epicurismo tristemente
céptico se não mesmo estóico: «Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como
o rio.»
Muitos usaram a imagem do rio para outros efeitos artísticos, o próprio
Júlio Dinis não deixou de o animizar na voz graciosa da Clara e do Pedro no
início dos seus amores: “Ó rio das águas
claras / que vais correndo p’r’ó mar / não rias das minhas penas / tem pena do meu
penar.…”. A Menina e Moça, muito tempo antes, na água do
rio (“daquele monte”) que perto dela fazia um “tamalavez de corrente”,
onde iria cair o rouxinol morto, depois de tanto trinar, referira o obstáculo
que causava à água um “penedo que no meio dela estava” a qual “se
partia para um e outro lado murmurando”, o que logo a fizera concluir sobre
a analogia dos entraves que se vão oferecendo aos seres, mesmo os “sem
entendimento”, em texto simbólico que vale a pena transcrever: «E estava
ali aprendendo tomar algum conforto no meu mal: que assi aquele penedo estava
ali anojando aquela água que queria ir seu caminho, como as minhas desaventuras
noutro tempo soíam fazer a tudo o que mais queria, que agora já não quero nada.
E crecia-me daquilo um pesar; porque a cabo do penedo, tornava a água a
juntar-se e ir seu caminho sem estrondo algum, mas antes parecia que corria ali
mais depressa que pela outra parte; e dizia eu que seria aquilo por se apartar mais
asinha daquele penedo, imigo de seu curso natural, que como por força ali
estava.»
Alberto
Caeiro contrapôs, com simplicidade intencional e ironia, o rio Tejo e o da sua
aldeia, em termos de dimensão e importância:
“ O
Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais
belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que
corre pela minha aldeia.
«O Tejo tem grandes navios / E
navega nele ainda, / Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está, / A
memória das naus.
«O Tejo desce de Espanha / E o Tejo
entra no mar em Portugal. / Toda a gente sabe isso. / Mas poucos sabem qual é o
rio da minha aldeia / E para onde ele vai / E donde ele vem. /E por isso, porque
pertence a menos gente, / É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o Mundo. / Para além do Tejo há a
América / E a fortuna daqueles que a encontram. / Ninguém nunca pensou no que
há para além / Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada. / Quem está ao
pé dele está só ao pé dele.»
Foi a minha mãe que motivou gratas evocações
de leituras próprias desse “rio da vida”, que tão variadas facetas toma no
seu fluir. Tem estado doente, receámos por ela, como o próprio médico. Perdeu o
canto, perdeu a referência “massacrante” aos seus tempos de rapariga, deixou de
contar histórias, persignou-se e benzeu-se e chorou com mais afinco, no terror da
partida. Há dias, estava eu sentada ao pé dela, em aproximação assustada, saiu-se
com a quadra seguinte, que pronunciou lentamente, numa autopiedade de voz trémula que captei e
logo me irmanou na partilha e compreensão do seu sofrimento, fazendo-a repetir,
para anotar pressurosamente:
«Já
não tenho pai nem mãe
Nem neste mundo parentes
Sou filha das tristes ervas
Neta das águas correntes.»
Era mais uma quadra que fora
buscar aos arcanos da sua memória a caminho do centésimo sexto aniversário,
retomando assim o fluxo das recordações, e com essas de novo a esperança na sua
continuação neste mundo, com muita pena de si, contudo, sem família,
panteisticamente achada nas coisas da natureza,
conforme os versos traduziam, e que tão em consonância estão com a nossa
condição de seres em pendência de crise, explícita no nosso fado, que já a
Menina e Moça tão sentidamente explorou.
“Neta das águas correntes”,
dizia a quadra, sem, contudo, referir nenhum penedo adverso, como aquele do “Livro
das Saudades” de Bernardim Ribeiro, que “estava ali anojando aquela água que
queria ir seu caminho”.
Mas ainda hoje, sim, os “penedos”
continuam a entravar o curso natural de uma governação que queira prosseguir
dentro do caminho justo. São muitos, os penedos. Não sei se a água continuará a
fluir.
Que flua para a minha mãe mais uns
tempos ainda, sequem, embora, as tristes ervas.
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