quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Homo sum?

A seguinte fábula de La Fontaine
Tem muito de universal,
Como é o próprio das fábulas
Que se colaram a nós,
Como rótulo imortal,
De forma paradoxal,
Pois ninguém pensa
Em sua perfeita razão
Que qualquer animal,
Ou uma pura abstracção
- Como a Fortuna do caso presente -
Sejam o nosso retrato magoado
Natural.
Poderão ser antes espelho
Velho e relho
Criado pelos fabulistas
Inteligentes
E às vezes mesmo imprudentes
Nas suas alegorias ,
Por conta dos brios
Dos mais salientes -
Dirigentes
Economistas
Patrões de bancos
Saltimbancos,
Artistas
Especialistas em conquistas,
Geralmente
Gente previdente,
Pelo menos particularmente:

"A Fortuna e o menino da escola
À beira de um fundo poço
Dormia, a todo o comprido,
Um menino, de escola aluno.
Tudo lhes serve,
Aos alunos,
De cama e colchão,
Sem qualquer ralação.
Em caso parecido,
Um qualquer homem honrado
Um salto de vinte braças teria dado
Para passar adiante.
Perto dali, felizmente,
A Fortuna passou e docemente
O menino acordou,
E logo discursou
Impaciente:
“Eu te salvo a vida,
Meu rapaz,
Mas peço-te
Que sejas mais cordato
E desperto
Da próxima vez.
Tivesses tu caído
E logo me teriam acusado,
Embora o erro
Tivesse sido
Só teu e teu e nunca meu.
Só te pergunto
Sinceramente,
Se esta tua imprudência
Se pode imputar
À minha competência.”
Tendo assim falado
Mais para ralhar,
Embora sem resultado
Que se visse,
Ela pôs-se a andar.
Quanto a mim,
Concordo com a sua argumentação.
Nada no mundo acontece,
Que a Fortuna não seja acusada,
Duma penada,
Pela sua participação
Na acção.
Ela é o garante
De todas as aventuras.
Quer se seja tolo,
Ou distraído,
Nunca temos a responsabilidade
Do acontecido.
Julgamo-nos quites
Com a nossa consciência,
Se acusarmos a Sorte.
Em suma,
É a Fortuna que tem sempre a culpa.”

Também nós por aqui
Parecemos meninos
À beira do poço
Dormindo, dormindo,
À espera do osso
Sem darmos o salto
Da passagem
Para a outra margem.
E mentindo, e iludindo,
E sempre pedindo,
- Alguns pagando -
Vamos construindo
- Melhor, destruindo –
O que já foi nosso,
Ao Fado imputando
A nossa má sorte,
- Que o Fado é
O nosso Forte
A nossa Morte
A nossa Sorte -
Sem responsabilidade,
Mas com habilidade,
Característica fatal
Do nosso mal,
Para perpetuidade
Da bandeira nacional,
O que é um bem, afinal.

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