segunda-feira, 10 de setembro de 2012

“Minha fala encobre a tua”


Foi tema de conversa a dos assassinatos de mulheres pelos respectivos maridos no nosso país, a minha amiga falava excitadamente num número acima da quarentena – “É uma por dia” considerou, com uma exuberância fora de propósito, que me fez retorquir-lhe que o ano já ia no mês de setembro e os uxoricídios nem chegavam ainda a 20% do total de dias passados, além de que as mortes provocadas pelas guerras ou pelos tsunamis são em muito maiores percentagens populacionais e devíamos mesmo orgulhar-nos da brandura conflitual das nossas relações domésticas inferiores em consequências mortais às dos sismos ou dos tornados, mas a minha amiga quando encarreira nas suas opiniões dificilmente se deixa convencer, pelo menos pelas minhas, e hoje até referiu mais uma tentativa de morte que não chegou a ser da mulher, e quase limparia o sebo ao marido, por o marido se ter atrapalhado no manejo da arma e involuntariamente descarregara o tiro em si próprio. O pior (a expressão superlativa é da minha amiga) é que ele não morreu e o tiro qualquer dia acertará mesmo na mulher, considerou ela com preocupação, pois o marido, presentemente retido no hospital, por autoferimento, quando tiver alta não irá deixar escapar a oportunidade de despachar a esposa para os anjinhos, pois nem sequer está preso por não haver no nosso país dinheiro para manter prisões, de modo que anda tudo à solta por aí, mesmo os incendiários, excepto os que podem ficar por sua conta e risco em prisão domiciliária, o que lhes dá, necessariamente, um enorme gabarito e impacto mediático de excepcional valia. “Ela que se cuide”, frisou uma vez mais a minha amiga, e chegámos mesmo a propor o seu despacho para a China, que é sítio populoso onde nem mesmo o arrependido Teodoro, após ter comido à tripa-forra os milhões do Mandarim que ele matara tocando numa sinistra campainha, para lhe herdar os bens, e decidindo procurar-lhe a família lá pela China, só para a indemnizar, conseguiu encontrá-la.
Falámos, é claro, seriamente, nas causas de tanta desordem actual, que atribuímos à crise, mas também ao acentuar de egoísmos, à maior independência económica e social da mulher, etc., etc., e resolvi mostrar à minha amiga um esboço de análise de um livro que li em tempos, “O Desprezo” de Alberto Morávia, sobre uma relação amorosa que se degradou, e que é de grande beleza narrativa e sentimental, que nada tem a ver com a desordem, grosseria e mesmo baixeza moral tantas vezes despoletadas por motivos fúteis e que uma reflexão de ponderação e respeito pelos filhos e preservação da família poderia ajudar a anular, segundo o nosso ponto de vista de esclarecido rigor.

Eis o breve estudo de “O Desprezo” de Alberto Morávia:

“Constituído por 23 capítulos, este livro, cujo narrador se identifica com o protagonista– Ricardo Molteni – relata, em estilo evocativo de 1ª pessoa, um caso de corrosão – unilateral – de uma relação amorosa, em que o afecto e a paixão da mulher – Emília – vão sendo gradualmente substituídos, devido a um equívoco, por um sentimento de desprezo inultrapassável.

E todavia, analisando-se, embora, o comportamento da mulher em função de uma acção que gira em torno do comportamento do marido, o tema principal da obra é o do Amor, do profundo carinho do Homem pela Mulher, que a esta sacrifica as suas ambições literárias modestamente remuneradas, para lhe proporcionar bem-estar, envolvendo-se com um produtor cinematográfico – Battista – num primeiro trabalho de argumentista profusamente recompensado, origem do sucesso económico indispensável às primeiras prestações da casa que compra para Emília e, paradoxalmente, causa do desamor desta pelo marido.
Com efeito, Emília interpreta a fácil cedência do marido da própria mulher como companhia no carro do italiano, como manifestação de baixeza de carácter, descobrindo vil sujeição interesseira onde apenas existiu educada delicadeza, a par, também, de estouvamento juvenil.
Eis o equívoco que, naturalmente, se vai adensando, à medida que se desenrola a relação de trabalho com o produtor e concomitante relação social, cada vez mais esfriando o sentimento de Emília, cujos gestos, atenções e arroubos dos primeiros dois anos de casados vão dando lugar a uma distanciação cada vez mais marcante, que acabará em quartos separados e numa proposta de saída de Emília para junto da mãe, não concretizada por recusa desta.
De temperamento fechado, Emília retrai-se, recalcando as suas dúvidas e ansiedades, e em contrapartida apresentando atitudes gradualmente mais estranhas para um marido perturbado e inconsciente do próprio erro.
A oportunidade de um novo argumento cinematográfico – sobre a “Odisseia” – servirá para criar a simbologia do livro, pela analogia com a própria interpretação psicanalítica da obra de Homero e da relação Ulisses-Penélope, fornecida pelo argumentista alemão Kheingold, convidado por Battista juntamente com Ricardo.
Assim, a um primeiro espaço – Roma – desta acção reconstruída num ritmo a que as frequentes análises introspectivas, os juízos de valor e as descrições minuciosas de locais e ambientes conferem lentidão mas igualmente “suspense”, vai suceder-se o segundo espaço da acção – Capri – local ideal para a acção do novo filme, segundo a perspectiva do produtor e, simultaneamente, para as suas tramas conquistadoras junto da mulher de Ricardo.
É em Capri que se atinge o clímax da acção pela descoberta da infidelidade suposta, é em Capri que o diálogo Molteni-Rheingold sobre a interpretação freudiana da “fuga” interesseira e duradoura de Ulisses e decisão final de se livrar dos pretendentes de Penélope, matando-os, para reconquistar o amor desta, assume a importância simbólica pelo paralelismo irónico com o seu próprio caso, é em Capri que o gesto de Molteni de abandonar o filme, libertando-se da dependência económica de Battista (“matando”, pois, Battista) – se revela inútil perante uma Emília decidida, é em Capri que o amor obcecante de Ricardo atinge o paroxismo nas estranhas alucinações de dois “reencontros” com uma Emília amante e sedutora e que ele “mata” sem dar por isso, ficando-lhe para sempre a dúvida se fora sonho premonitório, alucinação ou o espectro de uma Emília morta efectivamente em acidente de carro, quando regressava a Roma com Battista, a imagem final apaziguadora que dela tivera.
               A necessidade de compreender o motivo de uma tão grande paixão transformada em tristeza irredutível na Mulher, o levou a escrever este livro, que se revelou, afinal, um belo poema de amor, pela beleza do descritivo, pela seriedade da análise em torno da inquietação e angústia do protagonista e do seu amor frustrado. Poema de amor a que não faltam o realismo cru e a visão desencantada na descrição dos ambientes modernos, e paralelamente na descrição das personagens ou figurantes com eles relacionados, ou a análise fria da profissão de argumentista, necessários a uma justificação do seu comportamento a que forçadamente e só por amor impôs a necessidade material desse trabalho que repugnava ao seu espírito criativo.
Poema de amor na sua estrutura em espiral, de alternância constante entre o presente da narração e o passado evocado, geralmente introduzido por expressões temporais tais como “Naquele tempo” (etc.), que na sua repetição lhe conferem ritmo poético.
Poema de amor pela linguagem elegante e rigorosa, onde as imagens surgem com limpidez, sem a agressividade chocante do tom obsceno, hoje em dia usual, e onde se sobrepõem os valores psicológicos, de par, é certo, com a problemática da inquietação e da inadaptação social numa época essencialmente regida pela materialidade, segundo a visão crítica do narrador/Autor.
Uma obra clássica, em suma, na universalidade do tema, e na exploração deste através do mito, que lhe confere, naturalmente, uma dimensão feita de beleza mas também de novidade, na sua desmistificação – repelida, aliás, pelo narrador que, na interpretação do alemão encontra apenas grosseira especulação maculando a narrativa homérica.
Reduzido à especificidade do seu sentido abstracto, o título “O DESPREZO” não parece deixar prever a surpresa de uma leitura fluida e apaixonante sobre a eterna ambiguidade dos sentimentos humanos.
Está visto que as nossas discussões de trazer por casa não têm a ver, na sua maior incidência, com a expressão da incompreensão magoada descrita no livro de Alberto Morávia. Mas não quero deixar de as incluir numa expressão simultaneamente lírica e realista de medição de forças, como característica do nosso folclore civilizacional de expressão machista, e saliente nos versos da nossa surpresa constante que a minha mãe vai semeando em renovado stock, com uma voz forte, de quem quer afugentar visões de um mundo para onde não deseja partir, a sua fala afugentando a do pensamento incómodo:

“Cantas tu e canto eu
Qual de nós canta melhor?
Minha fala encobre a tua,
Cala-te lá, rouxinol.”

 

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