Foi tema de
conversa a dos assassinatos de mulheres pelos respectivos maridos no nosso
país, a minha amiga falava excitadamente num número acima da quarentena – “É
uma por dia” considerou, com uma exuberância fora de propósito, que me fez retorquir-lhe
que o ano já ia no mês de setembro e os uxoricídios nem chegavam ainda a 20% do
total de dias passados, além de que as mortes provocadas pelas guerras ou pelos
tsunamis são em muito maiores percentagens populacionais e devíamos mesmo orgulhar-nos
da brandura conflitual das nossas relações domésticas inferiores em
consequências mortais às dos sismos ou dos tornados, mas a minha amiga quando
encarreira nas suas opiniões dificilmente se deixa convencer, pelo menos pelas
minhas, e hoje até referiu mais uma tentativa de morte que não chegou a ser da
mulher, e quase limparia o sebo ao marido, por o marido se ter atrapalhado no
manejo da arma e involuntariamente descarregara o tiro em si próprio. O pior (a
expressão superlativa é da minha amiga) é que ele não morreu e o tiro qualquer
dia acertará mesmo na mulher, considerou ela com preocupação, pois o marido, presentemente
retido no hospital, por autoferimento, quando tiver alta não irá deixar escapar
a oportunidade de despachar a esposa para os anjinhos, pois nem sequer está
preso por não haver no nosso país dinheiro para manter prisões, de modo que
anda tudo à solta por aí, mesmo os incendiários, excepto os que podem ficar por
sua conta e risco em prisão domiciliária, o que lhes dá, necessariamente, um enorme
gabarito e impacto mediático de excepcional valia. “Ela que se cuide”, frisou
uma vez mais a minha amiga, e chegámos mesmo a propor o seu despacho para a
China, que é sítio populoso onde nem mesmo o arrependido Teodoro, após ter
comido à tripa-forra os milhões do Mandarim que ele matara tocando numa sinistra
campainha, para lhe herdar os bens, e decidindo procurar-lhe a família lá pela
China, só para a indemnizar, conseguiu encontrá-la.
Falámos, é
claro, seriamente, nas causas de tanta desordem actual, que atribuímos à crise,
mas também ao acentuar de egoísmos, à maior independência económica e social da
mulher, etc., etc., e resolvi mostrar à minha amiga um esboço de análise de um
livro que li em tempos, “O Desprezo” de Alberto Morávia, sobre uma
relação amorosa que se degradou, e que é de grande beleza narrativa e
sentimental, que nada tem a ver com a desordem, grosseria e mesmo baixeza moral
tantas vezes despoletadas por motivos fúteis e que uma reflexão de ponderação e
respeito pelos filhos e preservação da família poderia ajudar a anular, segundo
o nosso ponto de vista de esclarecido rigor.
Eis o breve
estudo de “O Desprezo” de Alberto Morávia:
“Constituído
por 23 capítulos, este livro, cujo narrador se identifica com o protagonista–
Ricardo Molteni – relata, em estilo evocativo de 1ª pessoa, um caso de corrosão
– unilateral – de uma relação amorosa, em que o afecto e a paixão da mulher –
Emília – vão sendo gradualmente substituídos, devido a um equívoco, por um
sentimento de desprezo inultrapassável.
E
todavia, analisando-se, embora, o comportamento da mulher em função de uma
acção que gira em torno do comportamento do marido, o tema principal da obra é
o do Amor, do profundo carinho do Homem pela Mulher, que a esta sacrifica as
suas ambições literárias modestamente remuneradas, para lhe proporcionar
bem-estar, envolvendo-se com um produtor cinematográfico – Battista – num
primeiro trabalho de argumentista profusamente recompensado, origem do sucesso
económico indispensável às primeiras prestações da casa que compra para Emília
e, paradoxalmente, causa do desamor desta pelo marido.
Com
efeito, Emília interpreta a fácil cedência do marido da própria mulher como
companhia no carro do italiano, como manifestação de baixeza de carácter,
descobrindo vil sujeição interesseira onde apenas existiu educada delicadeza, a
par, também, de estouvamento juvenil.
Eis o
equívoco que, naturalmente, se vai adensando, à medida que se desenrola a
relação de trabalho com o produtor e concomitante relação social, cada vez mais
esfriando o sentimento de Emília, cujos gestos, atenções e arroubos dos
primeiros dois anos de casados vão dando lugar a uma distanciação cada vez mais
marcante, que acabará em quartos separados e numa proposta de saída de Emília
para junto da mãe, não concretizada por recusa desta.
De
temperamento fechado, Emília retrai-se, recalcando as suas dúvidas e
ansiedades, e em contrapartida apresentando atitudes gradualmente mais
estranhas para um marido perturbado e inconsciente do próprio erro.
A
oportunidade de um novo argumento cinematográfico – sobre a “Odisseia” –
servirá para criar a simbologia do livro, pela analogia com a própria
interpretação psicanalítica da obra de Homero e da relação Ulisses-Penélope,
fornecida pelo argumentista alemão Kheingold, convidado por Battista juntamente
com Ricardo.
Assim, a
um primeiro espaço – Roma – desta acção reconstruída num ritmo a que as
frequentes análises introspectivas, os juízos de valor e as descrições
minuciosas de locais e ambientes conferem lentidão mas igualmente “suspense”,
vai suceder-se o segundo espaço da acção – Capri – local ideal para a acção do
novo filme, segundo a perspectiva do produtor e, simultaneamente, para as suas
tramas conquistadoras junto da mulher de Ricardo.
É em Capri que se atinge o clímax da acção pela
descoberta da infidelidade suposta, é em Capri que o diálogo Molteni-Rheingold
sobre a interpretação freudiana da “fuga” interesseira e duradoura de Ulisses e
decisão final de se livrar dos pretendentes de Penélope, matando-os, para
reconquistar o amor desta, assume a importância simbólica pelo paralelismo irónico
com o seu próprio caso, é em Capri que o gesto de Molteni de abandonar o filme,
libertando-se da dependência económica de Battista (“matando”, pois, Battista) –
se revela inútil perante uma Emília decidida, é em Capri que o amor obcecante
de Ricardo atinge o paroxismo nas estranhas alucinações de dois “reencontros”
com uma Emília amante e sedutora e que ele “mata” sem dar por isso, ficando-lhe
para sempre a dúvida se fora sonho premonitório, alucinação ou o espectro de
uma Emília morta efectivamente em acidente de carro, quando regressava a Roma
com Battista, a imagem final apaziguadora que dela tivera.
A necessidade de compreender o
motivo de uma tão grande paixão transformada em tristeza irredutível na Mulher,
o levou a escrever este livro, que se revelou, afinal, um belo poema de amor,
pela beleza do descritivo, pela seriedade da análise em torno da inquietação e
angústia do protagonista e do seu amor frustrado. Poema de amor a que não
faltam o realismo cru e a visão desencantada na descrição dos ambientes
modernos, e paralelamente na descrição das personagens ou figurantes com eles
relacionados, ou a análise fria da profissão de argumentista, necessários a uma
justificação do seu comportamento a que forçadamente e só por amor impôs a
necessidade material desse trabalho que repugnava ao seu espírito criativo.
Poema de
amor na sua estrutura em espiral, de alternância constante entre o presente da
narração e o passado evocado, geralmente introduzido por expressões temporais
tais como “Naquele tempo” (etc.), que na sua repetição lhe conferem ritmo
poético.
Poema de
amor pela linguagem elegante e rigorosa, onde as imagens surgem com limpidez,
sem a agressividade chocante do tom obsceno, hoje em dia usual, e onde se
sobrepõem os valores psicológicos, de par, é certo, com a problemática da
inquietação e da inadaptação social numa época essencialmente regida pela
materialidade, segundo a visão crítica do narrador/Autor.
Uma obra
clássica, em suma, na universalidade do tema, e na exploração deste através do mito,
que lhe confere, naturalmente, uma dimensão feita de beleza mas também de
novidade, na sua desmistificação – repelida, aliás, pelo narrador que, na
interpretação do alemão encontra apenas grosseira especulação maculando a
narrativa homérica.
Reduzido
à especificidade do seu sentido abstracto, o título “O DESPREZO” não parece
deixar prever a surpresa de uma leitura fluida e apaixonante sobre a eterna
ambiguidade dos sentimentos humanos.
Está visto
que as nossas discussões de trazer por casa não têm a ver, na sua maior incidência,
com a expressão da incompreensão magoada descrita no livro de Alberto Morávia.
Mas não quero deixar de as incluir numa expressão simultaneamente lírica e
realista de medição de forças, como característica do nosso folclore
civilizacional de expressão machista, e saliente nos versos da nossa surpresa constante
que a minha mãe vai semeando em renovado stock, com uma voz forte, de quem quer
afugentar visões de um mundo para onde não deseja partir, a sua fala
afugentando a do pensamento incómodo:
“Cantas
tu e canto eu
Qual de
nós canta melhor?
Minha
fala encobre a tua,
Cala-te
lá, rouxinol.”
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