sábado, 29 de setembro de 2012

“Isto já está muito vazio”


Foi a minha mãe que, assumindo o actual ar plangente das suas atribulações existenciais, confinadas a recordações que, no meu ponto de vista objectivo, a tornam antes muito feliz, ao evocar tão proximamente pessoas, rezas, canções, episódios, graças, sabores do seu passado jovem, como filme inesquecível de sedução a cada passo revivido, com emoção e encanto, se saiu com o dito em título, creio mais que para a contestarmos, gabando-lhe a memória de privilégio e a vida regalada, entre a cama e os percursos próximos, na sua cadeira de rodas, com a presença constante das filhas e genro em torno dela, e, menos constante, da família que nos visita, ao acaso dos afazeres, mas trazendo o bulício das suas idades mais jovens.

Isto está muito vazio”. Percebemos que se tratava da sua memória, por vezes distorcida, na confusão dos cenários, mas intimamente aplicámos a asserção à realidade das nossas bolsas actuais, verificando que a rapidez do raciocínio centenário, que nos deixa boquiabertos, pois nunca se fica sem resposta, tem uma actualidade quase profética, o “quase” subentendendo as honoráveis excepções a esse estado de atonia nacional.

Eis mais umas quadras do seu saber armazenado, proferidas ao sabor das músicas de ocasião, a da “Margarida vai à fonte”, “ Ó rio das águas claras”, “O meu menino é d’oiro”, a do “Treze de Maio” ganhando em fixação:
« - Menina que tanto sabe
Responda a esta pergunta:
Que ciência tem o mar?
Quanta água se lhe junta?»

E a menina sabedora, tal “donzela Teodora” segundo expressão de Frei Jorge, tio da sagaz Maria garrettiana, vá de responder com precisão:
«- A ciência que o mar tem
Não é coisa de pasmar:
Não há rio nem regato
Que ao mar não vá parar.»

            Por vezes são os costumes dos rapazes atiradiços que vêm à baila ao seu pensamento em ebulição, a desviar-se do receio obstinado da partida, pelas lembranças alegres da vida vivida:
Santa Maria da Serra
Santa Marta do Lorvão,
Onde eu me ia assentar
Co’ as meninas ao serão.

            E a malícia e a esperteza populares brotando no madrigal que a sua sensibilidade fixou, nos arcanos de uma memória a caminho dos 106 anos, que ainda sorri no prazer do dito picante:
Da minha janela à tua
É o salto duma cobra.
Quem me dera já chamar
À tua mãe minha sogra.

 Se fores domingo à missa
Fica em sítio que te eu veja
Não faças andar meus olhos
Aos saltinhos pela igreja.

Mas também a sátira se manifesta nos versos com que a minha mãe preenche infindavelmente o seu vazio na actividade física, reduzida que está à vida evocativa ou à magra relação social, rapidamente fatigada com o espectáculo televisivo, conquanto por vezes lhe ouça os noticiários e as missas dominicais:
À minha porta está lama,
À tua fica o lameiro.
Quando falares dos outros,
Olha para ti primeiro.

            Finalmente, a religiosidade, a ternura, a tristeza, fazem-na mergulhar em versos reveladores de estados de espírito que lhe denunciam o gosto por esta vida, que o excesso de idade lhe parece fazer galopar para o seu termo:

A Donzela é toda bela
A mais santa em seu primor,
Desde a hora em que Ela fora

Virgem mãe do Salvador.

 Calvário tem cinco fontes
Todas cinco a correr.
Quando os anjinhos têm sede
Todos eles lá vão beber.

 É de noite, é de noite.
Quer seja noite, quer não
Para mim sempre é de noite~
Dentro do meu coração.

Quem me aqui ouvir cantar
Cuidará, e tem razão,
Cuidará que eu ando alegre.
Sabe Deus, meu coração!

            O Artur faz anos hoje, tio da Maria Beatriz, que também faz, com seis vezes mais anos do que a sobrinha, festejada no texto acima pela tia e a avó. Pensei que, por ser mais velho, o Artur não tinha direito à brincadeira dos versinhos da ternura familiar, na respeitabilidade que assume agora, ele que já teve idêntica graciosidade e determinação dos meninos pequenos e que revivemos nos seus dois filhos.

Mas associo-o a este texto sobre a avó, para os parabéns da nossa ternura pela data, e os votos de uma vida como a que tem hoje, de responsabilidade, amor e encantamento, na beleza do seu quadro familiar, e sempre afastado do negrume escandaloso implícito na afirmação da avó de que “Isto está muito vazio”.

Uma vida cheia de graça para o Artur, como um metafórico “mar” onde pararão os “rios e regatos” límpidos, da expressão dos versos da avó.

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