Foi a minha
mãe que, assumindo o actual ar plangente das suas atribulações existenciais, confinadas
a recordações que, no meu ponto de vista objectivo, a tornam antes muito feliz,
ao evocar tão proximamente pessoas, rezas, canções, episódios, graças, sabores
do seu passado jovem, como filme inesquecível de sedução a cada passo revivido,
com emoção e encanto, se saiu com o dito em título, creio mais que para a contestarmos,
gabando-lhe a memória de privilégio e a vida regalada, entre a cama e os
percursos próximos, na sua cadeira de rodas, com a presença constante das
filhas e genro em torno dela, e, menos constante, da família que nos visita, ao
acaso dos afazeres, mas trazendo o bulício das suas idades mais jovens.
“Isto
está muito vazio”. Percebemos que se tratava da sua memória, por vezes
distorcida, na confusão dos cenários, mas intimamente aplicámos a asserção à
realidade das nossas bolsas actuais, verificando que a rapidez do raciocínio
centenário, que nos deixa boquiabertos, pois nunca se fica sem resposta, tem
uma actualidade quase profética, o “quase” subentendendo as honoráveis excepções
a esse estado de atonia nacional.
Eis mais
umas quadras do seu saber armazenado, proferidas ao sabor das músicas de
ocasião, a da “Margarida vai à fonte”, “ Ó rio das águas claras”,
“O meu menino é d’oiro”, a do “Treze de Maio” ganhando em fixação:
« - Menina que tanto sabe
Responda
a esta pergunta:
Que
ciência tem o mar?
Quanta
água se lhe junta?»
E a menina sabedora, tal “donzela Teodora” segundo
expressão de Frei Jorge, tio da sagaz Maria garrettiana, vá de responder
com precisão:
«- A
ciência que o mar temNão é coisa de pasmar:
Não há rio nem regato
Que ao mar não vá parar.»
Por
vezes são os costumes dos rapazes atiradiços que vêm à baila ao seu pensamento em
ebulição, a desviar-se do receio obstinado da partida, pelas lembranças alegres
da vida vivida:
Santa
Maria da SerraSanta Marta do Lorvão,
Onde eu me ia assentar
Co’ as meninas ao serão.
E
a malícia e a esperteza populares brotando no madrigal que a sua sensibilidade
fixou, nos arcanos de uma memória a caminho dos 106 anos, que ainda sorri no
prazer do dito picante:
Da minha
janela à tuaÉ o salto duma cobra.
Quem me dera já chamar
À tua mãe minha sogra.
Fica em
sítio que te eu veja
Não faças
andar meus olhosAos saltinhos pela igreja.
Mas também
a sátira se manifesta nos versos com que a minha mãe preenche infindavelmente o
seu vazio na actividade física, reduzida que está à vida evocativa ou à magra
relação social, rapidamente fatigada com o espectáculo televisivo, conquanto
por vezes lhe ouça os noticiários e as missas dominicais:
À minha
porta está lama,À tua fica o lameiro.
Quando falares dos outros,
Olha para ti primeiro.
Finalmente,
a religiosidade, a ternura, a tristeza, fazem-na mergulhar em versos reveladores
de estados de espírito que lhe denunciam o gosto por esta vida, que o excesso
de idade lhe parece fazer galopar para o seu termo:
A Donzela é toda bela
A mais santa em seu primor,
Desde a hora em que Ela fora
Virgem mãe do Salvador.
Quando os anjinhos têm sede
Todos eles lá vão beber.
Para mim sempre é de noite~
Dentro do meu coração.
Dentro do meu coração.
Quem me aqui ouvir cantar
Cuidará, e tem razão,
Cuidará que eu ando alegre.
Sabe Deus, meu coração!
O
Artur faz anos hoje, tio da Maria Beatriz, que também faz, com seis vezes mais
anos do que a sobrinha, festejada no texto acima pela tia e a avó. Pensei que,
por ser mais velho, o Artur não tinha direito à brincadeira dos versinhos da
ternura familiar, na respeitabilidade que assume agora, ele que já teve
idêntica graciosidade e determinação dos meninos pequenos e que revivemos nos
seus dois filhos.
Mas
associo-o a este texto sobre a avó, para os parabéns da nossa ternura pela data,
e os votos de uma vida como a que tem hoje, de responsabilidade, amor e
encantamento, na beleza do seu quadro familiar, e sempre afastado do negrume
escandaloso implícito na afirmação da avó de que “Isto está muito vazio”.
Uma vida cheia
de graça para o Artur, como um metafórico “mar” onde pararão os “rios
e regatos” límpidos, da expressão dos versos da avó.
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