sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Um filme à altura do dramaturgo


Falei à minha filha Paula no filme que me encheu as medidas, rodado no dia dos seus anos, no Canal Memória, e que fui vendo enquanto fazia o nosso bolo das comemorações para ela levar para a sua festa da família e amigos, numa continuidade de tradição desta casa onde ela e os seus irmãos viveram, o que me faz muito feliz por ela assumir generosamente e alegremente a pasta de uma continuidade de festejo e coesão familiares que as contingências da idade e dos tempos mal me permitem agora aflorar.

Uma grande mulher, a minha filha, com o seu ar menineiro, sem complexos de uma gordura activa, sempre pronta a ajudar e a rir, e a escrever, até mesmo as actas das suas reuniões na escola, de grande subtileza nas suas ironias dos textos que produz com arte, ao acaso das suas vivências, deixando prever que um dia, quando, igualmente reformada – “O tempus… Velox!” – porá em blogue a sua participação nos “O mores!” das catilinárias de todos os tempos, o que a ajudará a ultrapassar a inactividade profissional dessa altura, após uma vida de dedicação à causa da docência, atravessando as sucessivas enxurradas governativas na reconstrução de uma juventude que se deseja activa e hábil e feliz, num país de que se receia a extinção desse estatuto quase milenar.

“Júlio César”, eis o filme apresentado, soberbo filme sobre um soberbo drama de Shakespeare, que eu ainda não vira e só lera em tradução francesa, e onde reconheci as tiradas poderosas, de uma riqueza humanística e retórica inexcedível, de um Shakespeare inultrapassável em recriação de cenários e de personagens encontradas nas “Vidas Paralelas” de Plutarco (Alexandre / César), e que uma galeria de actores americanos geniais iria tão bem reproduzir. E neles se contaria um Marlon Brando (Marco António) ainda jovem, mas cujo discurso ao povo romano, após o assassínio de César, além de todo o seu papel caviloso, nos deixam siderados de admiração pela excelência do desempenho, tão jovem que era ainda.

Da Internet transcrevo a resenha informativa sobre o filme de Mankiewicz, dando conta acaloradamente, também, não só do contexto histórico e súmula da peça shakespeariana como do elenco do filme :

«Uma notável produção americana dos anos 50, com Joseph L. Mankiewicz a dar uma espantosa dimensão de thriller político à imortal peça de Shakespeare e a Marlon Brando um dos mais prodigiosos papéis da sua carreira.

Senhor absoluto dos destinos de Roma, Júlio César, foi vítima de um atentado no senado, em 44 A.C., chefiado por Cássio, general romano, e Marco Bruto, filho adotivo de César, com o apoio da aristocracia romana que há muito conspirava contra ele. Ao cair sob as punhaladas da traição em pleno senado, morria com ele um dos períodos mais gloriosos da História de Roma. Após a morte de César, Marco António, agitou as massas populares de Roma contra os assassinos de César que iria derrotar dois anos depois na batalha de Filipos.

Quando em 1953 Joseph L. Mankiewicz se lançou na produção do memorável "Júlio César", dos dois lados do Atlântico levantaram-se vozes discordantes, duvidosas e mesmo indignadas, apesar da reputação de Mankiewicz o colocar na posição de um dos maiores realizadores do seu tempo. O resultado foi, no mínimo, surpreendente para quem acreditava que Mankiewicz jamais seria capaz de dar forma cinematográfica digna e respeitável à peça de Shakespeare, sem adulterar a obra original ou sem, fatalmente, cair na fastidiosa peça de teatro filmada. Mankiewicz com a mestria do seu cinema torneou o dilema. Nunca em cinema se tinha sido tão fiel ao "Júlio César" de Shakespeare e, ao mesmo tempo, nunca se tinha dado a uma obra de Shakespeare forma cinematográfica tão exata e fascinante. Mankiewicz filmou intencionalmente a preto e branco, contrariando as intenções da MGM, em décors de linhas simples e em tom de thriller político, servido por um portentoso trabalho de atores, nomeadamente, James Mason, John Gielgud, Louis Calhern e Marlon Brando, este último num dos momentos mais sublimes da sua arte e da sua carreira, calando de forma magistral as vozes mais céticas.»

Em jeito de felicitações e como presente de anos que ela apreciará, embora atrasado, não resisto a traduzir, para a Paula, alguns passos da peça de Shakespeare - da colecção francesa Garnier-Flammarion (com as peças Titus Andronicus, Jules César, Antoine et Cléopatre, Coriolan) - que mostram a estatura das personagens:

É na Cena I do Acto III que tem lugar o assassínio do arrogante César, após o grupo dos conjurados lhe ter pedido clemência para o banido “Publius Cimber”, e cuja recusa irá provocar o pretexto para o seu assassínio, com o conhecido “Tu quoque…?” dirigido pelo atraiçoado César ao nobre Brutus:

… «César: Eu poderia ficar comovido, se fosse como vós. Se fosse capaz de rezar para comover, comover-me-ia com orações. Mas eu sou constante como a estrela polar, que, pela fixidez e a imobilidade, não tem parelha no firmamento. Os céus são iluminados por numerosos clarões; todos são de chama e todos brilham; mas há um apenas que mantém o seu lugar. É assim com o mundo: é povoado de homens, e esses homens são todos de carne e de sangue, todos inteligentes; mas nesse número, não conheço senão um que permanece no seu lugar; e este homem sou eu. Darei uma ligeira prova até nisto: inflexível no envio de Cimber para o exílio, sou inflexível quanto a mantê-lo lá.

Cinna (avançando): Ó César!

César: Para trás! Queres provocar o Olimpo?

Décius (avançando): Ó grande César!

César: Brutus não se terá ajoelhado em vão?

Casca (avançando, com o punhal na mão): Braços, falai por mim! (Casca fere César no pescoço. César agarra-o pelo braço; é apunhalado por vários conjurados, e enfim por Marcus Brutus.)

César: Também tu, Brutus! Cai então, César! (Morre. Os senadores e o povo retiram-se em desordem).

Da Cena II do Acto III retiro ainda o discurso de Brutus aos cidadãos romanos, de clara elegância expositiva e definidora de um carácter nobre que o filme igualmente retrata, nas falas sérias e tristes do actor James Mason, não permitindo que o povo o leve em triunfo, sem escutar, antes, a oração fúnebre de Marco António, delegada neste pela generosidade e orgulho imprudentes de Brutus. O povo, rebanho dócil e inconstante, seduzido – como em todos os tempos - por discursos, troca em breve as suas preferências e arrebatamentos pelo esperto, sedutor e manhoso Marco António – Marlon Brando genial - cujo discurso se seguirá na mesma Cena III do Acto III, de uma facúndia plena do maquiavelismo de quem luta pelo poder, jogando com uma falsa aceitação inicial dos dizeres do honrado Brutus, e destacando-lhe a honorabilidade para matreiramente o ir apunhalando, desfazendo-lhe os argumentos que acusam César de ambicioso, com a apresentação de factos comprovativos do contrário, que provocam a mudança e a revolta caricata dos cidadãos.

Brutus: “Sede pacientes até ao fim… Romanos, compatriotas e amigos, ouvi-me na minha causa; e fazei silêncio, a fim de poderdes ouvir-me. Crede na minha honra, e tende fé nela, a fim de poderdes acreditar em mim. Censurai-me, na vossa sabedoria, fazei apelo à vossa razão a fim de melhor poderdes julgar-me. Se houver nesta assembleia algum amigo caro a César, a esse eu direi que Brutus não tinha por César menos amor do que ele. Se esse amigo perguntar então porque é que Brutus se ergueu contra César, eis a minha resposta: Não é que eu amasse menos César, mas amava mais Roma. Preferiríeis vós ver César vivo e morrer todos escravos ou ver César morto e viver todos livres? César amava-me e eu choro-o; ele foi afortunado, e eu alegro-me com isso; foi valente e admiro-o nisso; mas foi ambicioso e eu matei-o! Assim, pela sua amizade, lágrimas; pela sua fortuna, alegria; pela sua valentia, admiração e pela sua ambição, a morte! Qual é aqui o homem suficientemente grosseiro para não querer ser Romano? Se houver algum, que fale! Porque foi ele que eu ofendi. Qual é aqui o homem suficientemente vil para não querer amar a sua pátria? Se houver algum, que esse fale! Porque foi a ele que ofendi… Espero uma resposta.

Todos os cidadãos – Ninguém, Brutus, ninguém!

Brutus – Assim, eu não ofendi ninguém. Eu não fiz a César senão o que vós faríeis a Brutus. Os registos do Capitólio expõem os motivos da sua morte, sem atenuar os feitos pelos quais ele foi glorioso, nem agravar as ofensas pelas quais sofreu a morte.

Entram António e outros cidadãos trazendo o corpo de César.

Brutus - Eis o seu corpo que chega, trazido com luto por Marco António, Marco António que, sem ter tomado parte na morte de César, recolherá os benefícios desta morte, um lugar na república. E quem dentre vós não colherá? Uma última palavra, e retirar-me-ei: como matei o meu melhor amigo para bem de Roma, guardo o mesmo punhal para mim próprio, se aprouver ao meu país reclamar a minha morte.

Os CidadãosViva Brutus! Viva, viva Brutus!

Primeiro CidadãoLevemo-lo a sua casa em triunfo!

Segundo Cidadão – Demos-lhe uma estátua entre os seus antepassados.

Terceiro Cidadão – Que ele seja César!

Quarto Cidadão – O melhor de César será coroado em Brutus.

Primeiro Cidadão – Levemo-lo até sua casa com aclamações e vivas.

Brutus - Meus compatriotas…

Segundo CidadãoPaz! Silêncio! Brutus vai falar.

Primeiro Cidadão – Paz! Olá!

Brutus – Meus bons compatriotas, deixai-me partir só, e, em consideração por mim, ficai aqui com Marco António. Prestai honras ao corpo de César, e honras à arenga que, para glória de César, Marco António está autorizado a pronunciar com a nossa permissão. Rogo-vos, que ninguém parta senão eu, antes que Marco António tenha falado! (Sai)

Primeiro CidadãoOlá, ficai! Escutemos Marco António.

Terceiro CidadãoQue ele suba à tribuna pública! Escutá-lo-emos! Nobre António, subi. (António sobe à tribuna).

António -Em nome de Brutus, estou-vos obrigado.

Quarto Cidadão- Que diz ele de Brutus?

Terceiro Cidadão – Diz que em nome de Brutus ele reconhece-se obrigado a todos nós.

Quarto Cidadão -  Ele fará bem em não dizer mal de Brutus aqui.

Primeiro Cidadão – Este César era um tirano.

Terceiro Cidadão – Sim, isso é certo. Nós somos muito felizes por Roma se ter desembaraçado dele.

Segundo Cidadão – Silêncio! Escutemos o que António poderá dizer.

António – Generosos Romanos…

Os Cidadãos – Paz! Olá! Escutemo-lo.

António – Amigos, Romanos, compatriotas, escutai-me. Eu venho para enterrar César, não para o louvar. O mal que fazem os homens vive após eles; o bem é muitas vezes enterrado com os seus ossos: que seja o mesmo para César! O nobre Brutus disse que César era ambicioso: se assim fosse, seria um erro grave, e César expiou-o gravemente. Aqui, com a permissão de Brutus e dos outros (porque Brutus é um homem honorável, e eles são todos homens honoráveis) eu vim para falar no funeral de César. Ele era meu amigo fiel e justo; mas Brutus diz que ele era ambicioso, e Brutus é um homem honorável. Trouxe a Roma grande número de cativos, cujos resgates encheram os cofres públicos: foi isso o que pareceu ambicioso em César? Quando o pobre gemeu, César chorou: a ambição deveria ser de um mais rude tecido. Todavia Brutus diz que ele era ambicioso; e Brutus é um homem honorável. Todos vós vistes que nas Lupercales eu lhe apresentei por três vezes uma coroa real, que ele recusou três vezes: era isso ambição? Contudo Brutus afirma que ele era ambicioso; e seguramente é um homem honorável. Eu não falo para contestar o que declarou Brutus, mas estou aqui para dizer o que sei. Vós todos o amastes sempre, e não sem motivo; que motivo vos impede pois de o chorardes? Ó julgamento, tu fugiste dos brutos animais e os homens perderam a razão!... Desculpai-me: o meu coração está no caixão, ali, com César, e eu devo interromper-me até que ele tenha voltado para mim.

Primeiro Cidadão – Parece-me que há muita razão no que ele diz.

Segundo Cidadão – Se tu consideras bem a coisa, César foi tratado muito injustamente.

Terceiro CidadãoNão é verdade, meus senhores? Receio que venha um pior em seu lugar.

Quarto Cidadão: Reparastes nas suas palavras? Ele não quis  a coroa: portanto, não era ambicioso!

Primeiro cidadãoSe isso for provado, alguns pagá-lo-ão caro.

Segundo Cidadão (designando António) – Pobre alma! Os seus olhos estão vermelhos como lume, à força de chorarem.

Terceiro CidadãoNão há em Roma homem mais nobre do que António.

Quarto CidadãoAgora, atenção! Ele volta a falar.

AntónioOntem ainda, a palavra de César prevaleceria contra o universo; agora, ei-lo jazendo, não há um miserável que se digne prestar-lhe honras! Ó meus senhores! Se eu estivesse disposto a excitar os vossos corações e os vossos espíritos para a revolta e o furor, eu lesaria Brutus e Cassius. Não quero prejudicá-los; prefiro prejudicar o morto, prejudicar-vos a vós e a mim próprio, a prejudicar homens tão honoráveis. Mas eis um pergaminho com o selo de César; encontrei-o no seu gabinete; são as suas últimas vontades. Se o povo ouvisse só este testamento (perdão! Eu não tenho a intenção de o ler), todos acorreriam para beijar as feridas de César morto, para mergulhar os seus lenços no seu sangue sagrado, para implorar mesmo, como lembrança dele, um dos seus cabelos, que mencionariam, ao morrer, nos seus testamentos, e transmitiriam, como precioso legado, à sua posteridade!

Quarto Cidadão – Nós queremos ouvir o testamento: lede-o, Marco António.

Os Cidadãos – O testamento! o testamento! Queremos ouvir o testamento de César!

António –Tende paciência, caros amigos. Não devo lê-lo. Não convém que saibais quanto César vos amava. Não sois de pau nem de pedra, sois homens; e sendo homens, por pouco que ouçais o testamento de César, inflamar-vos-eis, enfurecer-vos-eis. Não é bom que saibais que sois seus herdeiros; porque se o soubésseis, oh! Que aconteceria? …………»

E os Cidadãos enfurecidos exigem a leitura do testamento de César, que este lerá a contragosto fictício, exigindo, teatralmente, que os Cidadãos façam círculo em torno do cadáver de César, lembrando insinuantemente as punhaladas dos amigos de César, Cassius, Casca, Brutus – “o anjo de César” – levando ao rubro o desejo de vingança e os gritos de cólera dos Cidadãos contra os Conspiradores.

Uma peça em cinco actos , que termina na batalha de Filipos, entre os republicanos e os homens do segundo triunvirato António, Octávio e Lépido, por estes ganha. Brutus far-se-á matar por um ex-escravo Straton, que lhe segura a espada sobre a qual se atira, mas ser-lhe-ão prestadas cinicamente as honras fúnebres por António e Octávio, numa eterna continuidade das sequências políticas, feitas de ambições e aparências de bons sentimentos.

            Foi, pois, sobre mais uma peça de extraordinária dimensão e agudeza de Shakespeare, que Joseph L. Mankiewicz construiu um tão extraordinário filme, de homens romanos de valor, que o Canal Memória passou, e que serviu, naquele dia, para mim, como forma felicitar a Paula, que o não viu mas talvez o veja um dia, outro da nossa glória de eventos - como o de há 38 anos, em que os restos dos bolos da sua festa – 8 de setembro –serviram para levar aos soldados portugueses, que se haviam apoderado do Rádio Clube de Moçambique, alimentados pelos milhares de outros portugueses que, em frente do edifício, não arredavam pé, até lhes ser dada a ordem em contrário.

Na verdade, como já escrevera Camões, (estância 33, C. IV, Lusíadas, episódio da batalha de Aljubarrota), “… também dos Portugueses /Alguns traidores houve algumas vezes.” Esses, os da ordem contrária, há 38 anos. E os seus seguidores. Mas não foram só alguns.

Também já não há Aljubarrotas que nos safem como pátria. Muito menos, Nun’Álvares da nossa independência. Mas mesmo que houvesse… Todo o país se ergueria em protesto contra este, César arrogante a merecer ser apeado.

Que se apeie, pois, César. Porque o que resta… é silêncio. Silêncio interrompido pelas profusas e inócuas manifestações dos protestos e do gáudio e pelos discursos cavilosos arreando em César. Até à consumação.

 

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