Falei à minha filha Paula no
filme que me encheu as medidas, rodado no dia dos seus anos, no Canal Memória,
e que fui vendo enquanto fazia o nosso bolo das comemorações para ela levar
para a sua festa da família e amigos, numa continuidade de tradição desta casa
onde ela e os seus irmãos viveram, o que me faz muito feliz por ela assumir
generosamente e alegremente a pasta de uma continuidade de festejo e coesão familiares
que as contingências da idade e dos tempos mal me permitem agora aflorar.
Uma grande mulher, a minha
filha, com o seu ar menineiro, sem complexos de uma gordura activa, sempre
pronta a ajudar e a rir, e a escrever, até mesmo as actas das suas reuniões na
escola, de grande subtileza nas suas ironias dos textos que produz com arte, ao
acaso das suas vivências, deixando prever que um dia, quando, igualmente
reformada – “O tempus… Velox!” – porá em blogue a sua participação nos “O
mores!” das catilinárias de todos os tempos, o que a ajudará a ultrapassar
a inactividade profissional dessa altura, após uma vida de dedicação à causa da
docência, atravessando as sucessivas enxurradas governativas na reconstrução de
uma juventude que se deseja activa e hábil e feliz, num país de que se receia a
extinção desse estatuto quase milenar.
“Júlio César”, eis o filme
apresentado, soberbo filme sobre um soberbo drama de Shakespeare, que eu ainda
não vira e só lera em tradução francesa, e onde reconheci as tiradas poderosas,
de uma riqueza humanística e retórica inexcedível, de um Shakespeare
inultrapassável em recriação de cenários e de personagens encontradas nas “Vidas
Paralelas” de Plutarco (Alexandre / César), e que uma galeria de
actores americanos geniais iria tão bem reproduzir. E neles se contaria um Marlon
Brando (Marco António) ainda jovem, mas cujo discurso ao povo
romano, após o assassínio de César, além de todo o seu papel caviloso, nos
deixam siderados de admiração pela excelência do desempenho, tão jovem que era
ainda.
Da Internet transcrevo a
resenha informativa sobre o filme de Mankiewicz, dando conta acaloradamente,
também, não só do contexto histórico e súmula da peça shakespeariana como do
elenco do filme :
«Uma notável produção americana dos anos 50, com
Joseph L. Mankiewicz a dar uma espantosa dimensão de thriller político à
imortal peça de Shakespeare e a Marlon Brando um dos mais
prodigiosos papéis da sua carreira.
Senhor absoluto dos destinos de Roma, Júlio César, foi
vítima de um atentado no senado, em 44 A.C., chefiado por Cássio, general
romano, e Marco Bruto, filho adotivo de César, com o apoio da aristocracia
romana que há muito conspirava contra ele. Ao cair sob as punhaladas da traição
em pleno senado, morria com ele um dos períodos mais gloriosos da História de
Roma. Após a morte de César, Marco António, agitou as massas populares de Roma
contra os assassinos de César que iria derrotar dois anos depois na batalha de
Filipos.
Quando em 1953 Joseph L. Mankiewicz se lançou na
produção do memorável "Júlio César", dos dois lados do
Atlântico levantaram-se vozes discordantes, duvidosas e mesmo indignadas,
apesar da reputação de Mankiewicz o colocar na posição de um dos maiores
realizadores do seu tempo. O resultado foi, no mínimo, surpreendente para quem
acreditava que Mankiewicz jamais seria capaz de dar forma cinematográfica digna
e respeitável à peça de Shakespeare, sem adulterar a obra original ou sem,
fatalmente, cair na fastidiosa peça de teatro filmada. Mankiewicz com a mestria
do seu cinema torneou o dilema. Nunca em cinema se tinha sido tão fiel ao
"Júlio César" de Shakespeare e, ao mesmo tempo, nunca se tinha dado a
uma obra de Shakespeare forma cinematográfica tão exata e fascinante. Mankiewicz
filmou intencionalmente a preto e branco, contrariando as intenções da MGM, em
décors de linhas simples e em tom de thriller político, servido por um
portentoso trabalho de atores, nomeadamente, James Mason, John Gielgud, Louis
Calhern e Marlon Brando, este último num dos momentos mais sublimes da sua arte e da sua carreira, calando de
forma magistral as vozes mais céticas.»
Em jeito de felicitações e como presente de anos que
ela apreciará, embora atrasado, não resisto a traduzir, para a Paula, alguns
passos da peça de Shakespeare - da colecção francesa Garnier-Flammarion (com as
peças Titus Andronicus, Jules César, Antoine et Cléopatre, Coriolan) -
que mostram a estatura das personagens:
É na Cena I do Acto III que tem lugar o assassínio do
arrogante César, após o grupo dos conjurados lhe ter pedido clemência para o
banido “Publius Cimber”, e cuja recusa irá provocar o pretexto para o
seu assassínio, com o conhecido “Tu quoque…?” dirigido pelo atraiçoado César
ao nobre Brutus:
… «César: Eu
poderia ficar comovido, se fosse como vós. Se fosse capaz de rezar para
comover, comover-me-ia com orações. Mas eu sou constante como a estrela polar,
que, pela fixidez e a imobilidade, não tem parelha no firmamento. Os céus são
iluminados por numerosos clarões; todos são de chama e todos brilham; mas há um
apenas que mantém o seu lugar. É assim com o mundo: é povoado de homens, e
esses homens são todos de carne e de sangue, todos inteligentes; mas nesse número,
não conheço senão um que permanece no seu lugar; e este homem sou eu. Darei uma
ligeira prova até nisto: inflexível no envio de Cimber para o exílio, sou
inflexível quanto a mantê-lo lá.
Cinna (avançando):
Ó César!
César: Para
trás! Queres provocar o Olimpo?
Décius (avançando):
Ó grande César!
César: Brutus
não se terá ajoelhado em vão?
Casca (avançando,
com o punhal na mão): Braços, falai por mim! (Casca fere César
no pescoço. César agarra-o pelo braço; é apunhalado por vários
conjurados, e enfim por Marcus Brutus.)
César: Também
tu, Brutus! Cai então, César! (Morre. Os senadores e o povo retiram-se em
desordem).
Da Cena II do Acto III retiro ainda o discurso de Brutus
aos cidadãos romanos, de clara elegância expositiva e definidora de um
carácter nobre que o filme igualmente retrata, nas falas sérias e tristes do
actor James Mason, não permitindo que o povo o leve em triunfo, sem
escutar, antes, a oração fúnebre de Marco António, delegada neste pela
generosidade e orgulho imprudentes de Brutus. O povo, rebanho dócil e
inconstante, seduzido – como em todos os tempos - por discursos, troca em breve
as suas preferências e arrebatamentos pelo esperto, sedutor e manhoso Marco
António – Marlon Brando genial - cujo discurso se seguirá na mesma
Cena III do Acto III, de uma facúndia plena do maquiavelismo de quem luta pelo
poder, jogando com uma falsa aceitação inicial dos dizeres do honrado Brutus,
e destacando-lhe a honorabilidade para matreiramente o ir apunhalando,
desfazendo-lhe os argumentos que acusam César de ambicioso, com a
apresentação de factos comprovativos do contrário, que provocam a mudança e a
revolta caricata dos cidadãos.
Brutus:
“Sede pacientes até ao fim… Romanos, compatriotas e amigos, ouvi-me na minha
causa; e fazei silêncio, a fim de poderdes ouvir-me. Crede na minha honra, e tende
fé nela, a fim de poderdes acreditar em mim. Censurai-me, na vossa sabedoria,
fazei apelo à vossa razão a fim de melhor poderdes julgar-me. Se houver nesta
assembleia algum amigo caro a César, a esse eu direi que Brutus não tinha por
César menos amor do que ele. Se esse amigo perguntar então porque é que Brutus
se ergueu contra César, eis a minha resposta: Não é que eu amasse menos César,
mas amava mais Roma. Preferiríeis vós ver César vivo e morrer todos escravos ou
ver César morto e viver todos livres? César amava-me e eu choro-o; ele foi
afortunado, e eu alegro-me com isso; foi valente e admiro-o nisso; mas foi
ambicioso e eu matei-o! Assim, pela sua amizade, lágrimas; pela sua fortuna,
alegria; pela sua valentia, admiração e pela sua ambição, a morte! Qual é aqui
o homem suficientemente grosseiro para não querer ser Romano? Se houver algum,
que fale! Porque foi ele que eu ofendi. Qual é aqui o homem suficientemente vil
para não querer amar a sua pátria? Se houver algum, que esse fale! Porque foi a
ele que ofendi… Espero uma resposta.
Todos os cidadãos – Ninguém, Brutus, ninguém!
Brutus –
Assim, eu não ofendi ninguém. Eu não fiz a César senão o que vós faríeis a
Brutus. Os registos do Capitólio expõem os motivos da sua morte, sem atenuar os
feitos pelos quais ele foi glorioso, nem agravar as ofensas pelas quais sofreu
a morte.
Entram António e outros cidadãos trazendo o
corpo de César.
Brutus - Eis
o seu corpo que chega, trazido com luto por Marco António, Marco António que,
sem ter tomado parte na morte de César, recolherá os benefícios desta morte, um
lugar na república. E quem dentre vós não colherá? Uma última palavra, e
retirar-me-ei: como matei o meu melhor amigo para bem de Roma, guardo o mesmo
punhal para mim próprio, se aprouver ao meu país reclamar a minha morte.
Os Cidadãos
– Viva Brutus! Viva, viva Brutus!
Primeiro Cidadão – Levemo-lo a sua casa em triunfo!
Segundo Cidadão – Demos-lhe uma estátua entre os seus antepassados.
Terceiro Cidadão – Que ele seja César!
Quarto Cidadão – O melhor de César será coroado em Brutus.
Primeiro Cidadão – Levemo-lo até sua casa com aclamações e vivas.
Brutus -
Meus compatriotas…
Segundo Cidadão
– Paz! Silêncio! Brutus vai falar.
Primeiro Cidadão – Paz! Olá!
Brutus – Meus
bons compatriotas, deixai-me partir só, e, em consideração por mim, ficai aqui
com Marco António. Prestai honras ao corpo de César, e honras à arenga que,
para glória de César, Marco António está autorizado a pronunciar com a nossa
permissão. Rogo-vos, que ninguém parta senão eu, antes que Marco António tenha
falado! (Sai)
Primeiro Cidadão – Olá, ficai! Escutemos Marco António.
Terceiro Cidadão – Que ele suba à tribuna pública! Escutá-lo-emos! Nobre António,
subi. (António sobe à tribuna).
António -Em
nome de Brutus, estou-vos obrigado.
Quarto Cidadão-
Que diz ele de Brutus?
Terceiro Cidadão – Diz que em nome de Brutus ele reconhece-se obrigado a
todos nós.
Quarto Cidadão - Ele fará bem em não dizer mal de
Brutus aqui.
Primeiro Cidadão – Este César era um tirano.
Terceiro Cidadão – Sim, isso é certo. Nós somos muito felizes por Roma se
ter desembaraçado dele.
Segundo Cidadão – Silêncio! Escutemos o que António poderá dizer.
António –
Generosos Romanos…
Os Cidadãos – Paz! Olá! Escutemo-lo.
António – Amigos,
Romanos, compatriotas, escutai-me. Eu venho para enterrar César, não para o
louvar. O mal que fazem os homens vive após eles; o bem é muitas vezes
enterrado com os seus ossos: que seja o mesmo para César! O nobre Brutus disse
que César era ambicioso: se assim fosse, seria um erro grave, e César expiou-o
gravemente. Aqui, com a permissão de Brutus e dos outros (porque Brutus é um
homem honorável, e eles são todos homens honoráveis) eu vim para falar no
funeral de César. Ele era meu amigo fiel e justo; mas Brutus diz que ele era
ambicioso, e Brutus é um homem honorável. Trouxe a Roma grande número de
cativos, cujos resgates encheram os cofres públicos: foi isso o que pareceu
ambicioso em César? Quando o pobre gemeu, César chorou: a ambição deveria ser
de um mais rude tecido. Todavia Brutus diz que ele era ambicioso; e Brutus é um
homem honorável. Todos vós vistes que nas Lupercales eu lhe apresentei por três
vezes uma coroa real, que ele recusou três vezes: era isso ambição? Contudo
Brutus afirma que ele era ambicioso; e seguramente é um homem honorável. Eu não
falo para contestar o que declarou Brutus, mas estou aqui para dizer o que sei.
Vós todos o amastes sempre, e não sem motivo; que motivo vos impede pois de o
chorardes? Ó julgamento, tu fugiste dos brutos animais e os homens perderam a
razão!... Desculpai-me: o meu coração está no caixão, ali, com César, e eu devo
interromper-me até que ele tenha voltado para mim.
Primeiro Cidadão – Parece-me que há muita razão no que ele diz.
Segundo Cidadão
– Se tu consideras bem a coisa, César foi tratado muito injustamente.
Terceiro Cidadão – Não é verdade, meus senhores? Receio que venha um pior em seu
lugar.
Quarto Cidadão:
Reparastes nas suas palavras? Ele não quis
a coroa: portanto, não era ambicioso!
Primeiro cidadão –Se isso for provado, alguns pagá-lo-ão caro.
Segundo Cidadão (designando António) – Pobre alma! Os seus olhos estão vermelhos
como lume, à força de chorarem.
Terceiro Cidadão – Não há em Roma homem mais nobre do que António.
Quarto Cidadão
– Agora, atenção! Ele volta a falar.
António – Ontem
ainda, a palavra de César prevaleceria contra o universo; agora, ei-lo jazendo,
não há um miserável que se digne prestar-lhe honras! Ó meus senhores! Se eu
estivesse disposto a excitar os vossos corações e os vossos espíritos para a
revolta e o furor, eu lesaria Brutus e Cassius. Não quero prejudicá-los;
prefiro prejudicar o morto, prejudicar-vos a vós e a mim próprio, a prejudicar
homens tão honoráveis. Mas eis um pergaminho com o selo de César; encontrei-o
no seu gabinete; são as suas últimas vontades. Se o povo ouvisse só este testamento
(perdão! Eu não tenho a intenção de o ler), todos acorreriam para beijar as
feridas de César morto, para mergulhar os seus lenços no seu sangue sagrado,
para implorar mesmo, como lembrança dele, um dos seus cabelos, que mencionariam,
ao morrer, nos seus testamentos, e transmitiriam, como precioso legado, à sua
posteridade!
Quarto Cidadão – Nós queremos ouvir o testamento: lede-o, Marco António.
Os Cidadãos
– O testamento! o testamento! Queremos ouvir o testamento de César!
António –Tende
paciência, caros amigos. Não devo lê-lo. Não convém que saibais quanto César
vos amava. Não sois de pau nem de pedra, sois homens; e sendo homens, por pouco
que ouçais o testamento de César, inflamar-vos-eis, enfurecer-vos-eis. Não é bom
que saibais que sois seus herdeiros; porque se o soubésseis, oh! Que aconteceria?
…………»
E os Cidadãos enfurecidos exigem a leitura do
testamento de César, que este lerá a contragosto fictício, exigindo,
teatralmente, que os Cidadãos façam círculo em torno do cadáver de César,
lembrando insinuantemente as punhaladas dos amigos de César, Cassius, Casca,
Brutus – “o anjo de César” – levando ao rubro o desejo de vingança e
os gritos de cólera dos Cidadãos contra os Conspiradores.
Uma peça em cinco actos , que termina na batalha de
Filipos, entre os republicanos e os homens do segundo triunvirato António,
Octávio e Lépido, por estes ganha. Brutus far-se-á matar por
um ex-escravo Straton, que lhe segura a espada sobre a qual se atira, mas
ser-lhe-ão prestadas cinicamente as honras fúnebres por António e Octávio,
numa eterna continuidade das sequências políticas, feitas de ambições e
aparências de bons sentimentos.
Foi,
pois, sobre mais uma peça de extraordinária dimensão e agudeza de Shakespeare,
que Joseph L. Mankiewicz construiu um tão extraordinário filme, de homens romanos
de valor, que o Canal Memória passou, e que serviu, naquele
dia, para mim, como forma felicitar a
Paula, que o não viu mas talvez o veja um dia, outro da nossa glória de eventos
- como o de há 38 anos, em que os restos dos bolos da sua festa – 8 de setembro
–serviram para levar aos soldados portugueses, que se haviam apoderado do Rádio
Clube de Moçambique, alimentados pelos milhares de outros portugueses que, em
frente do edifício, não arredavam pé, até lhes ser dada a ordem em contrário.
Na
verdade, como já escrevera Camões, (estância 33, C. IV, Lusíadas, episódio
da batalha de Aljubarrota), “… também dos Portugueses /Alguns traidores
houve algumas vezes.” Esses, os da ordem contrária, há 38 anos. E os seus
seguidores. Mas não foram só alguns.
Também
já não há Aljubarrotas que nos safem como pátria. Muito menos, Nun’Álvares da
nossa independência. Mas mesmo que houvesse… Todo o país se ergueria em
protesto contra este, César arrogante a merecer ser apeado.
Que
se apeie, pois, César. Porque o que resta… é silêncio. Silêncio interrompido
pelas profusas e inócuas manifestações dos protestos e do gáudio e pelos
discursos cavilosos arreando em César. Até à consumação.
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