Costumo
gostar dos textos de Vasco Pulido Valente, porque neles reconheço a capacidade
de análise histórica das situações descritas além de uma certa isenção crítica,
que sempre atribuí a hombridade intelectual, apesar do tom verrinoso de que os
reveste.
Não foi
assim o de Domingo, 2 de Setembro – “A hipocrisia da necessidade” – em
que, de forma tão radical quanto reveladora de ignorância e de parti pris
contra o sentido da colonização portuguesa, destrói o significado dos
descobrimentos e seus heróis como glória portuguesa ímpar, aviltando toda a
acção ultramarina, em inesperadas afirmações de ódio: “O império português
de África foi, desde o princípio, um monumento de incúria, de miséria, de
exploração e guerra. Nada que nos permitisse o mais leve orgulho e de que não
deveríamos falar, sem alguma vergonha e humildade.”
Não, nada
de verdadeiramente gigantesco se criou nos territórios ultramarinos, apesar de
Cahora Bassa, nada de semelhante ao que se fez nos Estados Unidos, Austrália,
países da América latina, África do Sul… V. P. V. sabe da dimensão do seu
rectângulo, não poderia exigir que tivéssemos nas colónias o desenvolvimento
que os países autónomos que se iniciaram pela conquista e até destruição das
riquezas dos povos aborígenes, e seguiram independentes e ricos, com os conquistadores
brancos no comando. As colónias portuguesas serviram de manjedoira ao povo do
rectângulo, e se mais não fizeram foi porque sempre se depararam aos
empresários ultramarinos inúmeros obstáculos para a concretização dos seus
empreendimentos. Mas apesar de tudo, parece destituída de bom senso a afirmação
simplista de que a África foi monumento de incúria, miséria, exploração
e guerra. Só quem a não conheceu poderá ser assim radical, esquecendo as
guerras intestinas nos países de sucesso e as suas explorações contadas na literatura
americana do norte e do sul. Miséria e incúria chamar-lhe-á hoje se visitar as
terras onde, no tempo dos portugueses, não havia fome, como existe hoje e muita
obra civilizacional se construiu.
Quanto à
troça que faz sobre a “descolonização exemplar” com que os seus fautores
tentaram esconder o abandono e a derrota, apesar de tudo admiro este rectângulo
e as suas gentes, desprezadas na pena de V. P. V., mas que tant bien que mal
foram estendendo os braços aos ultramarinos que se fixaram aqui, abrindo concursos
para colocação de tantos de cá e de lá.
A crise
económica faz que, a troco das batatinhas, verguemos o dorso aos governantes
dessas ex-colónias, para o envio dos nossos deserdados actuais de cá, o que
Pulido Valente agradece. Mas “o que não se compreende nem se agradece, é a
retórica do “engrandecimento de Portugal”, com que a hipocrisia doméstica
resolveu cobrir uma situação de necessidade e falência. Portugal não precisa de
palavras. Precisa de realismo e modéstia.”
Somos, de
facto palavrosos e não só na exaltação pátria, com bastas excepções a esse
dado. Vasco Pulido Valente aponta a hipocrisia doméstica da senda de
reconstrução do espaçozinho rectangular, elevando patrioticamente o bom nome de
Portugal, sempre com recurso ao exterior, para compor o seu interior.
Mas Vasco
Pulido Valente, que despreza o seu país e dum modo geral os seus conterrâneos,
manifesta a sua própria hipocrisia, fingindo uma bondade para com os negros que
não faz parte dos seus talentos, reconhecendo que foram por nós tratados com
incúria, miséria, exploração e guerra, sem provavelmente jamais ter posto os
pés nas terras das navegações de outrora, para verificar “in loco” as ditas
incúrias, misérias, etc., etc.. Tal como muitos outros dos capitães de abril,
que também nunca puseram.
Completo
estas observações com um texto do meu livro “Anuário – Memórias Soltas” (Editorial
Minerva 1999) - «Colonialismo em parti pris» revelador de que
outros ilustres que eu admiro, também jogaram com os seus saberes “à vol d’oiseau”
para desfazer insensatamente no trabalho feito pelos portugueses nesse ultramar
que tanto os deprimiu.
«O “Sexto
Dia” de “A CRIAÇÃO DO MUNDO” de Miguel Torga:
«Um arrumar
da casa, um sintetizar de momentos vividos arranchados de argumentação crítica,
num verbo de uma precisão e uma limpidez inimitáveis.
Um Torga
admirável e sempre admirado, na sua prosa e nos seus versos, rasgando os
horizontes de um humanismo lúcido e desencantado, no seu rigor implacável.
O maior
vulto presente das letras pátrias, sem dúvida. Sincero, agreste como as suas
fragas, livre, altivo e acutilante como as águias que nelas poisam, novo Orfeu,
tornando estático o Mundo, ante a essência divina do seu lirismo fluido e rico.
E
todavia, embora previsto o comentário negativo sobre a colonização portuguesa
em África, parece-nos demasiado apressada e capciosa uma tal visão maniqueísta,
feita “exprès” para a sua síntese ideológica, que da vivência africana se
limitou à viagem aérea de antemão artilhada em função de uma atitude crítica
livresca e definitiva, escamoteando os condicionalismos que nela imperaram.
Assim,
do povo que, embora limitado nos homens, construiu nações alargando os espaços
da sua pátria, ignorou o esforço épico, pervertendo-lhe o sentido, e apenas
empolando a trágica condição dos negros marginalizados, indiferente ao conceito
de que, sem o branco, jamais o negro teria saído da sua condição pré-histórica,
nem tão cedo teria ascendido à conscientização que gradualmente iria obtendo.
Na
colonização só pôde ver segregação e desequilíbrio, ignorando o trabalho do
branco no Ultramar, cavando, ensinando, construindo, explorado também na sua
posição de pequeno burguês trabalhador, por uma pátria sempre mesquinha com os
seus filhos.
Da sua
viagem colheu apenas a imagem dos prédios da cidade branca, destoando das
palhotas suburbanas, para logo concluir da miséria, exploração e servilismo do
negro dominado. Referiu os baluartes do poder - a fortaleza, os quartéis, as
esquadras de polícia - e os da missionação – os templos da fé.
Ignorou
as escolas, as universidades, as aulas nocturnas para brancos e pretos
trabalhadores, omitiu o paralelo com o universo português metropolitano,
igualmente segregacionista e desequilibrado, ou até mesmo o paralelo com a
situação vilipendiosa do emigrante português em terras de cultura e de maior
civilização, omitiu casos – escassos embora – de formação universitária de
naturais africanos, unicamente interessado em sublinhar o que se não fez em
favor da valorização cultural do homem negro.
Ignorou
o esforço heróico do povo colonizador, que mau grado a desproporção numérica e
as contingências do seu posicionamento subalterno em relação a uma Metrópole
sempre ávida e sempre madrasta, e da idiossincrasia do povo negro, lento e
insubmisso, foi construindo e desenvolvendo, conquanto muito menos
expressivamente do que a vizinha África do Sul, poderosa e autónoma-.
A
colonização portuguesa assumiria assim o carácter hediondo do tráfico negreiro
do Brasil de outrora.
Escrito
já depois da Revolução de Abril, o discurso sobre tal colonização, faccioso e
redutor, bem poderia ter merecido um comentário menos orientado em função de
uma ideologia falaz, que
o mundo inteiro aceita hipocritamente, conhecendo embora quanto são falsos e
traiçoeiros os juízos humanos que defendem a terra para os seus naturais,
indiferentes às consequências bem visíveis dessas descolonizações apressadas
que, abandonando os naturais africanos ao primarismo dos seus instintos,
mergulharam as suas terras na fome, agora real, e nas convulsões internas
tribalistas, agora sim, verdadeiramente racistas e criminosas.
O “Sexto
Dia de «A CRIAÇÂO DO MUNDO»:
Mais uma
obra admirável, no seu discurso perfeito, mas que nos mostra igualmente quão limitados
são os juízos humanos, quando reduzidos à dimensão subjectiva ou tendenciosa de quem
os produz.»
Dois vultos
das letras estranhamente irmanados em míseros conceitos similares a respeito dum mundo vilipendiosamente
entendido.
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