No Público de 25 de Novembro, Vasco Pulido
Valente, no seu artigo de Opinião “A pérfida Albion” evoca os argumentos
de Eduardo Lourenço para abominar a Inglaterra, movido por enérgico
ressentimento contra os promotores da decadência da França ,“sua pátria de
eleição”, uma Inglaterra desde
sempre ávida de dominar o mundo, segundo os argumentos históricos que percorre
na sua mensagem. Pulido Valente, em todo o caso, faz depender a recusa inglesa
em abdicar da sua moeda, já não de uma velha e orgulhosa ambição dominadora,
mas da “soberania absoluta do Parlamento, como princípio constitutivo da
nação inglesa” e cujo abandono poria “em risco a sociedade e o Estado”.
Um texto de valor histórico que transcrevo
na íntegra, como retrato de um passado que também nos diz respeito, através de
uma aliança com a Inglaterra que se traduziu, é certo, em descendência real com
ascendente no mundo, nomeadamente pelo
papel do Infante D. Henrique no conhecimento da Terra, mas que, se
alguma vez nos prestou auxílio, foi por interesse próprio, como exemplo, o
combate ao expansionismo napoleónico, em posição de arrogante e desdenhosa superioridade
governativa e bélica, num tempo de carência de governo português, “a banhos” no
Brasil.
«Eduardo Lourenço é com certeza em
Portugal inteiro o intelectual mais francês. Não admira que, perante a
desagregação da “Europa” sofra hoje com a relativa imunidade da
Inglaterra, coisa que não ocorreria à nossa atávica e resignada miséria. Mas
que resolva ressuscitar o mito da “pérfida Albion”, embora na sua prosa
majestática, só se explica pela decadência da sua pátria de eleição. Eduardo
Lourenço descobriu agora que o fracasso da União – que se tornou um “monstro”,
um “Frankenstein” em que muitos países se não reconhecem – foi o
resultado de um “desígnio no seu género messiânico” da Inglaterra; e
que, enquanto ela tiver “força e poder financeiro”, nada que se pareça
com o “sonho” de Jean Monet verá a luz do dia. Era este também, segundo
parece, o “voto” da senhora Thatcher.
Thatcher ou não, Eduardo Lourenço fala
da Inglaterra que realmente existe como se ela continuasse a ser a Inglaterra
de Palmerstron e da rainha Vitória e o Império Britânico (uma criação tardia de
Disraeli) continuasse a dominar o mundo como o Império Romano que ela, em
teoria, aspirava a imitar. Pior ainda, para Eduardo Lourenço, a derrota de
Waterloo acabou com a rivalidade da França, a derrota de Hitler (e de Guilherme
II, que ele por boas razões não lembra), acabou com a rivalidade da Alemanha, e
a implosão da URSS com a da Rússia, e a Inglaterra ficou sozinha em campo,
livre de exercer a sua maléfica influência. Uma influência que se exerceu à
partida através da BBC e depois do cinema americano e de uma historiografia
moderna, que é “essencialmente de matriz anglo-saxónica” e “expressão
da sua vontade de poder”.
Se por acaso compreendi alguma coisa da
prédica confusa e, em parte, errada e arbitrária de Eduardo Lourenço, ele
detesta a distância “fria” cada vez maior que a Inglaterra estabelece (e, de
resto, sempre estabeleceu) entre si própria e a Europa. Mas não há qualquer
dúvida que ele não percebe a origem e a necessidade dessa distância. Não se
trata, como ele julga, de uma nostalgia do Império ou sequer do exercício de
uma hegemonia actual. Do que se trata, mais modestamente, é da relutância em
abdicar da soberania inglesa a favor de uma democracia não-eleita e de um bando
de políticos que nada representam. A soberania absoluta do Parlamento é o
princípio constitutivo da nação (um ponto que nenhum francês será jamais capaz
de meter na cabeça) e o menor abandono, a menor cedência põe em risco a
sociedade e o Estado. A “Europa”, em que a democracia nasceu ontem, não se
importa, por exemplo, de abandonar a sua moeda a estranhos. A Inglaterra não
consentiu, ou consentiria, essa vergonhosa demissão de uma autoridade crucial
sobre o seu destino. E, se outros consentiram, que paguem em silêncio o “Frankenstein”,
que tão pressurosamente criaram.»
Este retrato de um povo inteligente e astuto,
na sua ilha imperial e imperiosa, de que tantos apontam o cinismo de actuações
hipócritas no mundo, mascaradas sob uma falsa civilidade, eu própria já em
tempos anotei, em texto de raivas incontidas num mundo que se desagregava: Escrito
nos anos 70, pertence à III Parte (“Mais Pedras de Sal”) do III
Livro (“Lusos 74”) da obra “Cravos
Roxos – Croniquetas Verde-Rubras”, publicado em 1981 pela Santelmo:
«Ó cínica Inglaterra, ó bêbada
impudente”
«Ultimamente tenho-me lembrado muito
dos versos do Guerra Junqueiro supracitados tantas vezes referidos pelo meu
paizinho com um gosto que sempre me surpreendeu, pois acho indispensável delicadeza
em todos os nossos actos ou palavras, especialmente no caso de tratarmos com
pessoas ou com nações de um nível económico-sócio-cultural superior ao nosso e
nesse ponto não devemos ter veleidades de comparação com a Inglaterra, muito
mais no norte do que nós.
Chamar hoje em dia, como no tempo de
Guerra Junqueiro, bêbada à Inglaterra, é por outro lado uma pura descortesia,
em contradição com o decréscimo de exportações sofrido presentemente pelo nosso
vinho do Porto, facto esse notório de sobriedade e abstinência que anulam
irremediavelmente os dizeres excitados do Junqueiro, declamados pelo meu
paizinho com honrado vigor.
Quanto às minhas preferências
literárias, sempre me seduziu mais, no caso do Junqueiro, “A Moleirinha” com o
seu “toc toc toc” onomatopaico tão sugestivo do compasso de trote que não
devemos pretender ultrapassar nunca em ambições galopantes e anti socialistas,
ou mesmo os versos “Minha mãe, minha mãe, ai que saudade imensa / Do tempo em
que eu ajoelhava orando ao pé de ti” expressivos de recordações que eu própria bem
poderia ter também vivido se não houvesse malbaratado o tempo da infância em
jogos e correrias fúteis. Contudo, no capítulo das interjeições em “ai” prefiro
optar pelos versos de Pessoa “Ai que prazer / Não cumprir um dever” porque
muito cedo se me ofereceu a ocasião de averiguar a sua universalidade.
Quanto ao cinismo da Inglaterra, o
Guerra Junqueiro estava evidentemente escamado por causa da questão do mapa cor
de rosa, quando a Inglaterra nos refutou a ocupação de parte da África em cor
de rosa no mapa, mas de facto não vejo cinismo nisso e apenas um fenómeno de
atracção pela cor, comum a diversos seres.
O que me trouxe, todavia, à mente os
versos de Junqueiro foi a notícia de que a Inglaterra não apoiaria a Rodésia
nas suas pretensões ao governo unitário branco, visto que a maioria ali é preta,
e por conseguinte com mais direitos. Constatei assim um acréscimo de concepções
humanitárias em relação ao passado colonial inglês, passado sem tantos
escrúpulos puritanos, e certamente ansioso por se remir disso.
Já o abandono dos Estados Unidos no
caso de Angola (e mesmo de Moçambique) me surpreendeu, mas atribuí-o a uma
ampla generosidade para com a Rússia, que tanto tem demonstrado a sua
necessidade de se ampliar, e incluí a
questão dentro de um justificativo de ordem bíblica, digno do apreço de Cristo
e portanto do meu também, como sua afeiçoada.
Quanto à Inglaterra, sinto-me perplexa,
pois não descortino qualquer solução bíblica para justificação da sua aversão pelos
irmãos brancos da região cor de rosa no ex-mapa, e só vejo nisso repúdio actual
pela cor dantes defendida com supremacia incontestável, apesar dos versos
apostrofantes do Guerra Junqueiro.
A menos que seja um jogo, não
propriamente para inglês ver, mas sim para enganar o resto do mundo fazendo-o
crer no seu colaboracionismo com os pretos maioritários africanos, de acordo
com esse resto do mundo também hipocritamente colaboracionista, mas na
realidade ajudando à socapa os brancos minoritários de origem inglesa das
terras do sul de África.
Se assim fosse, o Guerra Junqueiro
teria toda a razão no primeiro epíteto, embora nenhuma no segundo, pelo menos,
segundo já observámos, se nos reportarmos aos tempos presentes.
Mas o cinismo é moeda tão corrente em
todo o mundo que bem podemos usá-la também, como a Inglaterra e os diversos
governos, nas nossas transacções domésticas, à falta de outra moeda. »
Finalizo com os versos de Guerra Junqueiro, que a Internet
transcreve parcialmente, do seu livro “Finis Patriae”, que o meu Pai
guardava na sua estante, alguns dos quais costumava citar, impelido na rajada
patriótica do discurso virulento, com laivos surrealistas e reminiscências
escatológicas de sabor apocalíptico, bem em sintonia com a nossa idiossincrasia
de vertente exaltadamente saudosista:
«Ó cínica Inglaterra, ó bêbeda
impudente,
Que tens levado, tu, ao negro e à escravidão?
Chitas e hipocrisia, evangelho e aguardente,
Repartindo por todo o escuro continente
A mortalha de Cristo em tangas d'algodão.
Que tens levado, tu, ao negro e à escravidão?
Chitas e hipocrisia, evangelho e aguardente,
Repartindo por todo o escuro continente
A mortalha de Cristo em tangas d'algodão.
Teus apóstolos vão, prostituta
devassa,
Com o fim de levar os negros para o céu,
Desde o Zaire ao Zambeze e desde o Cabo ao Niassa,
Baptizando a Impiedade em Jordões de cachaça,
Mostrando-lhe o teu Deus na tua hóstia - o guinéu!
Com o fim de levar os negros para o céu,
Desde o Zaire ao Zambeze e desde o Cabo ao Niassa,
Baptizando a Impiedade em Jordões de cachaça,
Mostrando-lhe o teu Deus na tua hóstia - o guinéu!
A tua bíblia! o teu Cristo!... A tua
bíblia é uma agenda
Em que a virtude heróica a cifras se reduz.
E o teu Cristo londrino é um Deus de compra e venda,
Deus que ressuscitou para abrir uma tenda
De cortiça, carvão, álcool e panos crus!
Em que a virtude heróica a cifras se reduz.
E o teu Cristo londrino é um Deus de compra e venda,
Deus que ressuscitou para abrir uma tenda
De cortiça, carvão, álcool e panos crus!
Pela estrada da história, ó milhafre
daninho,
Vai um povo seguindo o seu norte polar,
E tu és o ladrão que lhe sais ao caminho,
Com a manha do lobo e a coragem do vinho,
A roubar-lhe os anéis para o deixar passar!
Vai um povo seguindo o seu norte polar,
E tu és o ladrão que lhe sais ao caminho,
Com a manha do lobo e a coragem do vinho,
A roubar-lhe os anéis para o deixar passar!
Quando espreitas o fraco apontas a
clavina,
Quando avistas o forte envergas a libré...
A tua mão ora pede esmola ora assassina...
Teu orgulho, covarde é, meu Bayard d'esquina,
Como um tigre de rastro e um capacho de pé!
Quando avistas o forte envergas a libré...
A tua mão ora pede esmola ora assassina...
Teu orgulho, covarde é, meu Bayard d'esquina,
Como um tigre de rastro e um capacho de pé!
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Hão-de um dia as nações, como hienas
dementes,
Teu império rasgar em feroz convulsão...
E no torvo halali, dando saltos ardentes,
Com a baba da raiva esfervendo entre os dentes,
A bramir, levará cada qual o seu quinhão!
Teu império rasgar em feroz convulsão...
E no torvo halali, dando saltos ardentes,
Com a baba da raiva esfervendo entre os dentes,
A bramir, levará cada qual o seu quinhão!
E tu ficarás só na tua ilha normanda
Com teus barões feudais e teus mendigos nus:
Devorará teu peito um cancro aceso, a Irlanda,
E a tua carne hás-de vê-la, ó meretriz nefanda,
Lodo amassado em sangue, oiro amassado em pus!
Com teus barões feudais e teus mendigos nus:
Devorará teu peito um cancro aceso, a Irlanda,
E a tua carne hás-de vê-la, ó meretriz nefanda,
Lodo amassado em sangue, oiro amassado em pus!
E assim como brutais monstros de
pesadelo
No soturno porão de uma nau sem ninguém,
Entre nuvens de fogo e temporais de gelo,
De bombordo a estibordo a rolar num novelo,
Desabando e rugindo, aos montões, num vaivém,
No soturno porão de uma nau sem ninguém,
Entre nuvens de fogo e temporais de gelo,
De bombordo a estibordo a rolar num novelo,
Desabando e rugindo, aos montões, num vaivém,
Se estrangulam febris, roucos,
dilacerantes,
As pupilas a arder em brasas infernais,
Panteras contra leões, ursos contra elefantes,
Cobras em redemoinho a silvar dardejantes,
Búfalos escornando os tigres e os chacais;
As pupilas a arder em brasas infernais,
Panteras contra leões, ursos contra elefantes,
Cobras em redemoinho a silvar dardejantes,
Búfalos escornando os tigres e os chacais;
Assim vós, assim
vós, duma raça assassina,
Sobre essa nau de pedra onde o mar vai bater,
Vos estrangulareis numa carnificina
De que só ficará, sob a densa neblina,
Num pântano de sangue uma Gomorra a arder!
Sobre essa nau de pedra onde o mar vai bater,
Vos estrangulareis numa carnificina
De que só ficará, sob a densa neblina,
Num pântano de sangue uma Gomorra a arder!
Milhões, milhões,
milhões de bocas esfaimadas
Hão-de dilacerar-te o corpo com furor,
E a pedra a dinamite e a carne a punhaladas
Hão-de tombar no mesmo escombro ensanguentadas,
Em baques de hecatombe e blasfémias de dor!...
Hão-de dilacerar-te o corpo com furor,
E a pedra a dinamite e a carne a punhaladas
Hão-de tombar no mesmo escombro ensanguentadas,
Em baques de hecatombe e blasfémias de dor!...
Hão-de os lords
rolar em postas no Tamisa!
Há-de o corpo de um rei dar um banquete a um cão!
Teu solo há-de tremer como uma pitonisa,
E a canalha sem lei, sem Deus e sem camisa
Abrirá teu bandulho infecto, ó Deus Milhão!
Há-de o corpo de um rei dar um banquete a um cão!
Teu solo há-de tremer como uma pitonisa,
E a canalha sem lei, sem Deus e sem camisa
Abrirá teu bandulho infecto, ó Deus Milhão!
Bancos, docas,
prisões, arsenais, monumentos,
Tudo rebentará em cacos pelo ar!...
E ao soturno fragor de teus finais lamentos
Responderão - ladrando! as cóleras dos ventos!
Responderão - cuspindo! os vagalhões do mar!» Fevereiro de 1890
Tudo rebentará em cacos pelo ar!...
E ao soturno fragor de teus finais lamentos
Responderão - ladrando! as cóleras dos ventos!
Responderão - cuspindo! os vagalhões do mar!» Fevereiro de 1890
Não tinha razão, Guerra Junqueiro, no seu rugir impotente
de visão apocalíptica: A libra mantém o seu esplendor e a língua permanece
intacta na sua expansão universal, o Eurotúnel não fez mais que encaminhar em
novas rotas o poderio de uma nação ávida que sempre se afirmou ardilosamente nobre
e cavalheiresca, fazendo alastrar à socapa os artifícios bélicos ou hipócritas
da sua dominação superior. Não haverá cacos nem finais lamentos da impávida
Albion ante as respostas anímicas dos ventos ou dos vagalhões marítimos, segundo Junqueiro.
A menos que se esfrangalhem as nações do resto de uma
Europa a que ela preside na distância da sua posição cimeira, oculta na névoa
da sua fortaleza polida e indiferente.
Porque uma Europa
destroçada, corpo carcomido, igualmente atingirá essa cabeça cimeira
(cotovelo direito, para Pessoa), pois, sem a participação daquela, a “pérfida Albion” também ficará
exangue.