No tempo em
que a programação da Literatura Portuguesa no Ensino Secundário, abarcava o
estudo de alguns poemas do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende no seu
espírito de transição para um lirismo humanista, e bem assim o da Tragédia
Castro de António Ferreira, como obedecendo aos parâmetros de coesão,
nobreza e fatalismo da tragédia grega, constituíam as Trovas à Morte de Inês
de Castro do mesmo Garcia de Resende, e seguidamente o Acto IV da dita
Tragédia de Ferreira, pontos de partida para a análise do episódio lírico “Inês
de Castro” d’ “Os Lusíadas”, no confronto entre a singeleza do
relato no primeiro caso, a linguagem ainda arcaica em harmonia com o queixume
brando, não despido de conceito e revolta da triste donzela, e, na “Castro”,
a dignidade simples da exposição de Inês, rodeada dos filhos pequenos, ao Rei Afonso IV, quando este, dividido entre
o dever e a piedade, a procura, acompanhado dos Conselheiros, para a matar.
Servia esta última para confronto de verosimilhança relativamente ao discurso
extraordinariamente belo e comovente mas pouco verosímil da linda Inês camoniana, dirigido ao Rei (Lusíadas,
Canto III):
«126 : "Se já nas brutas feras,
cuja mente / Natura fez cruel de nascimento, / E nas aves agrestes, que somente
/ Nas rapinas aéreas têm o intento, / Com pequenas crianças viu a gente / Terem
tão piedoso sentimento, / Como coa mãe de Nino já mostraram, / E cos irmãos que
Roma edificaram;
127 : "Ó tu, que tens de humano o gesto e o
peito / (Se de humano é matar uma donzela / Fraca e sem força, só por ter sujeito / O coração a quem soube vencê-la) / A estas criancinhas tem respeito, / Pois o não tens à morte escura dela; / Mova-te a piedade sua e minha, /Pois te não
move a culpa que não tinha.
128 : "E se, vencendo a Maura resistência, / A
morte sabes dar com fogo e ferro, / Sabe também dar vida com clemência / A quem
para perdê-la não fez erro. / Mas se to assim merece esta inocência, / Põe-me
em perpétuo e mísero desterro, / Na Cítia fria, ou lá na Líbia ardente, / Onde
em lágrimas viva eternamente.»
António Ferreira constrói a sua
tragédia à maneira clássica, em cinco actos, com o Coro acompanhando em
comentários de aviso ou de sentida compaixão o evoluir de uma acção concisa na unidade
temporal, ou, no final de cada acto ele próprio alertando, em comovido
conceito, para a brutalidade humana ou para a vingança previsível, acção em que
o reduzido número de personagens (principais: Inês, Rei, Infante: secundárias:
Ama, Secretário, Conselheiros) contribui para a sua nobreza e unidade – as principais
na afirmação do seu amor ou da sua piedade em luta psicológica com o dever – Rei
– as secundárias na afirmação da sua experiência e sensatez ou da sua lealdade
para com a nação). Uma linguagem simples, num verso branco e sem retórica, mas
tantas vezes de uma argumentação lógica, deixando transparecer a formação
jurídica do dramaturgo.
Um exemplo do discurso de Inês ao
Rei, numa linguagem despojada de artifício (Cena I do Acto IV):
«Castro: Meu Senhor / Esta
é a mãe de teus netos. Estes são / Filhos daquele filho que tanto amas. / Esta
é aquela coitada mulher fraca, / Contra quem vens armado de crueza. / Aqui me
tens. Bastava teu mandado, / Para eu, segura e livre , t’esperar, / Em ti e em
minha inocência confiada. / Escusaras, Senhor, todo este estrondo / D’armas e
cavaleiros, que não foge / Nem se teme a inocência da justiça. / E quando meus
pecados me acusaram, / A ti fora buscar; a ti tomara / Por vida em minha morte;
agora vejo / Que tu me vens buscar. Beijo estas mãos / Reais tão piadosas, pois
quiseste / Por ti vir-te informar de minhas culpas. / Conhece-mas, Senhor, como
bom rei, / Como clemente e justo, e como pai / De teus vassalos todos, a quem
nunca / Negaste piedade com justiça. / Que vês em mim, Senhor? Que vês em quem
/ Em tuas mãos se mete tão segura? / Que fúria, que ira esta é, com que me
buscas? / Mais contra imigos vens, que cruelmente / T’andassem tuas terras
destruindo, / A ferro e fogo. Eu tremo, Senhor, tremo / De me ver ante ti, como
me vejo, / Mulher, moça, inocente, serva tua, / Tão só, sem por mim ter quem me
defenda, / Que a língua não s’atreve, o esprito treme / Ante tua presença; porém
possam / Estes moços, teus netos, defender-me. / Eles falem por mim, eles sós
ouve. / Mas não te falarão, Senhor, com língua. / Que inda não podem; falam-te
co as almas; / Com suas idades tenras, com seu sangue, / Que é teu, te falarão;
seu desamparo / T’está pedindo vida; não lha negues. / Teus netos são, que
nunca téqui viste; / E vê-los em tal tempo, que lhes tolhes / A glória e o
prazer qu’em seus espritos / Lhe está Deus revelando de te verem.”
Rei: Tristes foram teus fados, Dona
Inês. / Triste ventura a tua…..»
Comovido com as súplicas de Inês, o Rei cede: «Ó
mulher forte! / Venceste-me, abrandaste-me! Eu te deixo. / Vive, enquanto Deus
quer….»
Será na Cena II do mesmo Acto IV que
os Conselheiros conseguirão convencer o Rei a mandar assassinar Inês, de que
transcreverei algumas breves frases de argumentação em trocadilho sentencioso
pró e contra a morte de Inês:
«Rei: Mais quero perdoar que ser injusto.
Coelho: Injusto é quem perdoa a pena justa.
Rei: Peque antes nesse extremo que em crueza.
Coelho: Não se consente o rei pecar em nada.
Rei: Sou homem. Coelho: Porém rei. Rei: O rei
perdoa.
Pacheco: Nem sempre perdoar é piedade…….»
Por
curiosidade, neste belo tema de amor e morte, à maneira da tragédia clássica,
que Shakespeare e Racine tão extraordinariamente seguiriam, e o nosso Camilo
igualmente subscreveria em “Amor de Perdição”, escrito no espaço e no
tempo diminutos da sua cela da Cadeia da Relação do Porto, transcrevo as singelas Trovas
de Garcia de Resende, que tão vasta inspiração originaram, o próprio
drama francês da modernidade o tomando como assunto, através da pena de Henry
de Montherlant, em “La Reine Morte”, representado na Comédie
Française em 1942. Os versos em redondilha das estrofes em décimas das Trovas,
estão transpostos em estilo corrido, sem demarcação heptassilábica, facilmente
identificável:
….Fala
D. Inês:
«Qual será o coração tão cru e sem piedade, que lhe não
cause paixão uma tão grã crueldade e morte tão sem razão? Triste de mim,
inocente, que, por ter muito fervente lealdade, fé, amor ao príncipe, meu
senhor, me mataram cruamente!
A minha desaventura não contente d’acabar-me, por me dar
maior tristura me foi pôr em tant’altura, para d’alto derribar-me; que, se me
matara alguém, antes de ter tanto bem, em tais chamas não ardera, pai, filhos
não conhecera, nem me chorara ninguém.
Eu era moça, menina, por nome Dona Inês de Castro, e de tal
doutrina e virtudes, qu’era dina de meu mal ser ao revés. Vivia sem me lembrar
que paixão podia dar nem dá-la ninguém a mim: foi-m’o príncipe olhar, por seu
nojo e minha fim.
Começou-m’a desejar trabalhou por me servir; Fortuna foi
ordenar dous corações conformar a uma vontade vir. Conheceu-me, conheci-o,
quis-me bem e eu a ele, perdeu-me, também perdi-o; nunca té morte foi frio o
bem que, triste, pus nele.
Dei-lhe minha liberdade, não senti perda de fama; pus nele
minha verdade, quis fazer sua vontade, sendo mui formosa dama. Por m’estas
obras pagar nunca jamais quis casar; pelo qual, aconselhado foi el-rei qu’era
forçado, pelo seu, de me matar.
Estava mui acatada, como princesa servida, em meus paços mui
honrada, de tudo mui abastada, de meu senhor mui querida. Estando mui de vagar,
bem fora de tal cuidar, em Coimbra, d’assossego, pelos campos do Mondego
cavaleiros vi somar.
Como as cousas qu’hão de ser logo dão no coração, comecei
entristecer e comigo só dizer: “Estes homens onde irão?” E tanto que perguntei,
soube logo qu’era el-rei. Quando o vi tão apressado, meu coração trespassado
foi, que nunca mais falei.
E quando vi que descia, saí a porta da sala, devinhando o
que queria; com grão choro e cortesia lhe fiz uma triste fala. Meus filhos pus
de redor de mim com grande humildade; mui cortada de temor lhe disse: - “Havei,
senhor, desta triste piedade!
“Não possa mais a paixão que o que deveis fazer; metei nisso
bem a mão, qu’é de fraco coração sem porquê matar mulher; quanto mais a mim,
que dão culpa não sendo razão, por ser mãe dos inocentes qu’ante vós estão
presentes, os quais vossos netos são.
“E tem tão pouca idade que, se não forem criados de mim, só
com saudade e sua grande orfandade morrerão desamparados. Olhe bem quanta
crueza fará nisto Voss’Alteza, e também, senhor, olhai pois do príncipe sois
pai, não lhe deis tanta tristeza.
“Lembre-vos o grand’amor que me vosso filho tem, e que
sentirá grã dor morrer-lhe tal servidor por lhe querer grande bem. Que, s’algum
erro fizera, fora bem que padecera e qu’estes filhos ficaram orfãos tristes e
buscaram quem deles paixão houvera;
“Mas, pois eu nunca
errei e sempre mereci mais, deveis, poderoso rei, não quebrantar vossa lei,
que, se morro, quebrantais. Usai mais de piedade que de rigor nem vontade,
havei dó, senhor, de mim, não me deis tão triste fim, pois que nunca fiz
maldade!”
El-rei, vendo como estava, houve de mim compaixão e viu o
que não olhava: qu’eu a ele não errava nem fizera traição. E vendo quão de verdade
tive amor e lealdade ao príncipe, cuja são, pôde mais a piedade que a
determinação;
Que, se m’ele defendera que seu filho não amasse, e lh’eu
não obedecera, então com razão pudera dar-m’a morte qu’ordenasse; mas vendo que
nenhum’hora, dês que nasci até’gora, nunca disso me falou, quando se disto
lembrou, foi-se pela porta fora.
Com seu rosto lagrimoso, co propósito mudado, muito triste,
mui cuidoso, como rei mui piedoso, mui cristão e esforçado. Um daqueles que
trazia consigo na companhia, cavaleiro desalmado, de trás dele, mui irado,
estas palavras dizia:
“-Senhor, vossa piedade é digna de reprender, pois que, sem
necessidade, mudaram vossa vontade lágrimas duma mulher. E quereis
qu’abarregado, com filhos, como casado, estê, senhor, vosso filho? De vós mais
me maravilho que dele, qu’é namorado.
“Se a logo não matais, não sereis nunca temido nem farão o
que mandais, pois tão cedo vos mudais do conselho qu’era havido. Olhai quão
justa querela tendes, pois, por amor dela, vosso filho quer estar sem casar e
nos quer dar muita guerra com Castela.
“Com sua morte escusareis muitas mortes, muitos danos; vós,
senhor, descansareis, e a vós e a nós dareis paz para duzentos anos. O príncipe
casará filhos de benção terá, será fora de pecado; qu’agora será anojado,
amanhã lh’esquecerá.”
E ouvindo seu dizer, el-rei ficou mui torvado por em tais
estremos ver, e que havia de fazer ou um ou outro, forçado. Desejava dar-me
vida, por lhe não ter merecida a morte nem nenhum mal: sentia pena mortal por
ter feito tal partida.
E vendo que se lhe dava a ele tod’esta culpa, e que tanto o
apertava, disse àquele que bradava: “- Minha tenção me desculpa. Se o vós
quereis fazer, fazei-o sem mo dizer, qu’eu nisso não mando nada, nem vejo essa
coitada por que deva de morrer.”
Fim: Dous cavaleiros irosos, que
tais palavras lh’ouviram, mui crus e não piedosos, perversos, desamorosos,
contra mim rijo se viram; com as espadas na mão m’atravessam o coração, a confissão
me tolheram: este é o galardão que meus amores me deram. »
Henry de Montherlant explorou livremente
o mesmo assunto em “La Reine Morte”, “drama em três actos”, com as
três personagens conhecidas – O Rei (Ferrante), seu filho Pedro, Inês
de Castro – a que associou a “Infanta de Navarra”, como desejada noiva
para Pedro, figura orgulhosa de noiva repudiada, numa acção de peripécias
várias e falas conceituosas de uma filosofia moderna e intenção crítica que
naturalmente não poupa a governação do país Portugal, onde se passa a acção,
sobretudo no final do III acto, com mistura de peripécias um tanto facetas fora
do âmbito de uma acção una, que Ferrante descreve a Inês, na cena III do
Acto II do modo seguinte (La Reine Morte – Éditions Gallimard,
1947):
«Sabeis o que eles
querem? Uma política de intimidação contra Dom Pedro e contra vós. A Infanta,
ai de mim, parte amanhã. Ela deixa-me só e nestas salas bombardeadas de todos
os lados pelo seu génio, roendo-me eu intimamente por não ter podido reter este
gerifalte por vossa causa e das vossas sentimentalidades. E todavia eu não vos
detesto. A Infanta é uma moça inspirada e febril; foi embalada num berço de
bronze; vós, dir-se-ia, nascestes num sorriso…»
A Infanta de Navarra, caprichosamente,
esforça-se por salvar Inês, levando-a para Navarra, proposta a que esta não
acederá, presa ao amor de Pedro, mandado aprisionar por seu pai, e ao amor por
seu filho prestes a nascer.
A relação amigável de Ferrante com
Inês prolongar-se-á num suspense sobre a sua morte que o rei vai adiando,
cedendo no final às instâncias dos vários conselheiros, sem bem perceber o
motivo da sua ordem de execução e morrendo a seguir. Uma peça que se lê com muito interesse, pela originalidade
e riqueza psicológica das figuras principais e dos conceitos de um humor por
vezes de paradoxo, por vezes sarcástico, bem longe da seriedade e do rigor seco
da figura do Rei da peça de António Ferreira.
Mas é com o remate do episódio
narrativo da “Linda Inês” d’ Os Lusíadas que finalizo esta
breve retoma saudosista de temas de que a vida profissional possibilitou outrora
o estudo – neste caso o tema do amor jovem que a morte eternizaria, a que, como
ninguém, Camões soube dar a projecção lírica e dramática capaz de desencadear lágrimas,
pela beleza ímpar do seu conceito e da sua expressão formal (estrofe 135):
As filhas do Mondego a morte
escura
Longo tempo chorando memoraram,
E, por memória eterna, em fonte
pura
As lágrimas choradas
transformaram;
O nome lhe puseram, que inda dura,
Dos amores de Inês que ali
passaram.
Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lágrimas são a água, e o nome amores.
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