quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Paráfrase com analepse / prolepse familiar


Tempo de António Nobre
O Sono de João
O João dorme... (Ó Maria,
Diz àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João, acordar...)

Tem só um palmo de altura
E nem meio de largura:
Para o amigo orangotango
O João seria... um morango!
Podia engoli-lo um leão
Quando nasce! As pombas são
Um poucochinho maiores...
Mas os outros são menores!

O João dorme... Que regalo!
Deixá-lo dormir, deixá-lo!
Calai-vos, águas do moinho!
Ó mar! fala mais baixinho...
E tu, Mãe! e tu, Maria!
Pede àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João, acordar...

O João dorme... O inocente!
Dorme, dorme eternamente,
Teu calmo sono profundo!
Não acordes para o mundo,
Pode afogar-te a maré:
Tu mal sabes o que isto é...

Ó Mãe! canta-lhe a canção,
Os versos do teu irmão:
«Na Vida que a Dor povoa,
Há só uma coisa boa,
Que é dormir, dormir, dormir...
Tudo vai sem se sentir.»

Deixa-o dormir, até ser
Um velhinho... até morrer!

E tu vê-lo-ás crescendo
A teu lado (estou-o vendo
João! Que rapaz tão lindo!)
Mas sempre, sempre dormindo...

Depois, um dia virá
Que (dormindo) passará
Do berço, onde agora dorme,
Para outro, grande, enorme:
E as pombas que eram maiores
Que João... ficarão menores!

Mas para isso, ó Maria!
Diz àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João, acordar...

E os anos irão passando.

Depois, já velhinho, quando
(Serás velhinha também)
Perder a cor que, hoje, tem,
Perder as cores vermelhas
E for cheiinho de engelhas:
Morrerá sem o sentir,
Isto é deixa de dormir...
Acorda e regressa ao seio
De Deus, que é donde ele veio...

Mas para isso, ó Maria!
Pede àquela cotovia
Que fale mais devagar:

Não vá o João, acordar...

António Nobre, in 'Só'
 
Tempo do tio Otto
(Para o seu Livro de Grelados, finais de cinquenta. Desejando-lhe, “de profundis” as melhoras, em 2012)

O João dorme e a Maria,
Indo-lhe o sono velar
Ordena à cotovia
Que fale mais devagar
Para o João poder dormir,
Pois para sofrer e chorar
Os olhos nem deve abrir.
Este menino tão grande
Ficou tal o Joãozinho,
Pois por mais que a gente mande,
Que abra os olhos para a vida,
Como um pobre passarinho
Que procura a luz dos céus,
Ele procura guarida
E o amparo junto aos seus.
E com maternal ternura
Por este grande menino,
Que apesar da altura
Ficou sempre pequenino
Tudo diz à cotovia
Da história do Joãozinho
Que cante um pouco baixinho
Porque melhor valeria
- Mas enfim não é certeza
Deixar dormir o menino
Enquanto brilhar acesa
A vela do seu destino.

Para o tio Otto, ainda nos anos sessenta, brilhante estudante de Medicina, desejando que a Medicina o cure, em 2012:
E o João, lentamente,
Despertou.
Então
Reparou
Num mundo que aos seus pés se abria.
Era um mundo sofredor,
Que apelava a abnegação
E sacudia
Toda a incúria ou desamor.
Conscienciosamente
O João
Trabalhou.
Para aliviar a dor do mundo
Considerou
Um curso insuficiente.
Era preciso alcançar
Legar cimeiro.
E afincadamente
O João estudou
Conseguindo ser
Primeiro.
Já não vem longe a aura
Que coroará o esforço
Despendido.
Em breve o fim
Pretendido
Surgirá.
E a vida plena
Que seguirá
Dirá então
Se tal esforço
Valeu a pena.
Finalmente,
Aquele Joãozinho ensonado
Que não devia
Ser acordado pela cotovia,
Fora enterrado
Com cuidado
Por um Otto sapiente
Que em atitude sentida
Não mais queria
Os olhos
Fechados
Na vida…

Tempo do João:
 (Com muitos parabéns, em 2012. Desejando-te, “de profundis”, as bênçãos dos céus sobre o teu “porvir”).

Arreda-te daqui, Maria,
Não digas à cotovia
Que fale mais devagar:
O João deve acordar.

O João já acordou
E gosta bem de viver,
No encanto do viver
Preservando as amizades,
Os amores, as lealdades,
Os seus gostos, as liberdades,
Sem muito saber viver,
Que a vida é cheia de manhas
De buracos, de patranhas…
Mas não te direi como o “Só”:
 
“Não acordes para o mundo
Pode levar-te a maré:
Tu mal sabes o que isto é.”
 
O que é preciso é saber ver,
E remar contra a maré,
Procurando enfrentar
O mundo com força e fé.
Com sabedoria
Com alegria
Com empatia,
Sem hipocrisia…
Sem a inocência
Do “João” do “Só”
Mas sem a suficiência
Dos muitos joões
Que pululam por  cá,
Vandalizando
Impunemente
O pouco que há…

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