sexta-feira, 30 de novembro de 2012

“Avalon sem bruma”


No Público de 25 de Novembro, Vasco Pulido Valente, no seu artigo de Opinião “A pérfida Albion” evoca os argumentos de Eduardo Lourenço para abominar a Inglaterra, movido por enérgico ressentimento contra os promotores da decadência da França ,“sua pátria de eleição”,  uma Inglaterra desde sempre ávida de dominar o mundo, segundo os argumentos históricos que percorre na sua mensagem. Pulido Valente, em todo o caso, faz depender a recusa inglesa em abdicar da sua moeda, já não de uma velha e orgulhosa ambição dominadora, mas da “soberania absoluta do Parlamento, como princípio constitutivo da nação inglesa” e cujo abandono poria “em risco a sociedade e o Estado”.
Um texto de valor histórico que transcrevo na íntegra, como retrato de um passado que também nos diz respeito, através de uma aliança com a Inglaterra que se traduziu, é certo, em descendência real com ascendente no mundo, nomeadamente pelo  papel do Infante D. Henrique no conhecimento da Terra, mas que, se alguma vez nos prestou auxílio, foi por interesse próprio, como exemplo, o combate ao expansionismo napoleónico, em posição de arrogante e desdenhosa superioridade governativa e bélica, num tempo de carência de governo português, “a banhos” no Brasil.

«Eduardo Lourenço é com certeza em Portugal inteiro o intelectual mais francês. Não admira que, perante a desagregação da “Europa” sofra hoje com a relativa imunidade da Inglaterra, coisa que não ocorreria à nossa atávica e resignada miséria. Mas que resolva ressuscitar o mito da “pérfida Albion”, embora na sua prosa majestática, só se explica pela decadência da sua pátria de eleição. Eduardo Lourenço descobriu agora que o fracasso da União – que se tornou um “monstro”, um “Frankenstein” em que muitos países se não reconhecem – foi o resultado de um “desígnio no seu género messiânico” da Inglaterra; e que, enquanto ela tiver “força e poder financeiro”, nada que se pareça com o “sonho” de Jean Monet verá a luz do dia. Era este também, segundo parece, o “voto” da senhora Thatcher.
Thatcher ou não, Eduardo Lourenço fala da Inglaterra que realmente existe como se ela continuasse a ser a Inglaterra de Palmerstron e da rainha Vitória e o Império Britânico (uma criação tardia de Disraeli) continuasse a dominar o mundo como o Império Romano que ela, em teoria, aspirava a imitar. Pior ainda, para Eduardo Lourenço, a derrota de Waterloo acabou com a rivalidade da França, a derrota de Hitler (e de Guilherme II, que ele por boas razões não lembra), acabou com a rivalidade da Alemanha, e a implosão da URSS com a da Rússia, e a Inglaterra ficou sozinha em campo, livre de exercer a sua maléfica influência. Uma influência que se exerceu à partida através da BBC e depois do cinema americano e de uma historiografia moderna, que é “essencialmente de matriz anglo-saxónica” e “expressão da sua vontade de poder”.
Se por acaso compreendi alguma coisa da prédica confusa e, em parte, errada e arbitrária de Eduardo Lourenço, ele detesta a distância “fria” cada vez maior que a Inglaterra estabelece (e, de resto, sempre estabeleceu) entre si própria e a Europa. Mas não há qualquer dúvida que ele não percebe a origem e a necessidade dessa distância. Não se trata, como ele julga, de uma nostalgia do Império ou sequer do exercício de uma hegemonia actual. Do que se trata, mais modestamente, é da relutância em abdicar da soberania inglesa a favor de uma democracia não-eleita e de um bando de políticos que nada representam. A soberania absoluta do Parlamento é o princípio constitutivo da nação (um ponto que nenhum francês será jamais capaz de meter na cabeça) e o menor abandono, a menor cedência põe em risco a sociedade e o Estado. A “Europa”, em que a democracia nasceu ontem, não se importa, por exemplo, de abandonar a sua moeda a estranhos. A Inglaterra não consentiu, ou consentiria, essa vergonhosa demissão de uma autoridade crucial sobre o seu destino. E, se outros consentiram, que paguem em silêncio o “Frankenstein”, que tão pressurosamente criaram.»
Este retrato de um povo inteligente e astuto, na sua ilha imperial e imperiosa, de que tantos apontam o cinismo de actuações hipócritas no mundo, mascaradas sob uma falsa civilidade, eu própria já em tempos anotei, em texto de raivas incontidas num mundo que se desagregava: Escrito nos anos 70, pertence à III Parte (“Mais Pedras de Sal”) do III Livro  (“Lusos 74”) da obra “Cravos Roxos – Croniquetas Verde-Rubras”, publicado em 1981 pela Santelmo:

«Ó cínica Inglaterra, ó bêbada impudente”

«Ultimamente tenho-me lembrado muito dos versos do Guerra Junqueiro supracitados tantas vezes referidos pelo meu paizinho com um gosto que sempre me surpreendeu, pois acho indispensável delicadeza em todos os nossos actos ou palavras, especialmente no caso de tratarmos com pessoas ou com nações de um nível económico-sócio-cultural superior ao nosso e nesse ponto não devemos ter veleidades de comparação com a Inglaterra, muito mais no norte do que nós.
Chamar hoje em dia, como no tempo de Guerra Junqueiro, bêbada à Inglaterra, é por outro lado uma pura descortesia, em contradição com o decréscimo de exportações sofrido presentemente pelo nosso vinho do Porto, facto esse notório de sobriedade e abstinência que anulam irremediavelmente os dizeres excitados do Junqueiro, declamados pelo meu paizinho com honrado vigor.
Quanto às minhas preferências literárias, sempre me seduziu mais, no caso do Junqueiro, “A Moleirinha” com o seu “toc toc toc” onomatopaico tão sugestivo do compasso de trote que não devemos pretender ultrapassar nunca em ambições galopantes e anti socialistas, ou mesmo os versos “Minha mãe, minha mãe, ai que saudade imensa / Do tempo em que eu ajoelhava orando ao pé de ti”  expressivos de recordações que eu própria bem poderia ter também vivido se não houvesse malbaratado o tempo da infância em jogos e correrias fúteis. Contudo, no capítulo das interjeições em “ai” prefiro optar pelos versos de Pessoa “Ai que prazer / Não cumprir um dever” porque muito cedo se me ofereceu a ocasião de averiguar a sua universalidade.
Quanto ao cinismo da Inglaterra, o Guerra Junqueiro estava evidentemente escamado por causa da questão do mapa cor de rosa, quando a Inglaterra nos refutou a ocupação de parte da África em cor de rosa no mapa, mas de facto não vejo cinismo nisso e apenas um fenómeno de atracção pela cor, comum a diversos seres.
O que me trouxe, todavia, à mente os versos de Junqueiro foi a notícia de que a Inglaterra não apoiaria a Rodésia nas suas pretensões ao governo unitário branco, visto que a maioria ali é preta, e por conseguinte com mais direitos. Constatei assim um acréscimo de concepções humanitárias em relação ao passado colonial inglês, passado sem tantos escrúpulos puritanos, e certamente ansioso por se remir disso.
Já o abandono dos Estados Unidos no caso de Angola (e mesmo de Moçambique) me surpreendeu, mas atribuí-o a uma ampla generosidade para com a Rússia, que tanto tem demonstrado a sua necessidade de se ampliar, e  incluí a questão dentro de um justificativo de ordem bíblica, digno do apreço de Cristo e portanto do meu também, como sua afeiçoada.
Quanto à Inglaterra, sinto-me perplexa, pois não descortino qualquer solução bíblica para justificação da sua aversão pelos irmãos brancos da região cor de rosa no ex-mapa, e só vejo nisso repúdio actual pela cor dantes defendida com supremacia incontestável, apesar dos versos apostrofantes do Guerra Junqueiro.
A menos que seja um jogo, não propriamente para inglês ver, mas sim para enganar o resto do mundo fazendo-o crer no seu colaboracionismo com os pretos maioritários africanos, de acordo com esse resto do mundo também hipocritamente colaboracionista, mas na realidade ajudando à socapa os brancos minoritários de origem inglesa das terras do sul de África.
Se assim fosse, o Guerra Junqueiro teria toda a razão no primeiro epíteto, embora nenhuma no segundo, pelo menos, segundo já observámos, se nos reportarmos aos tempos presentes.
Mas o cinismo é moeda tão corrente em todo o mundo que bem podemos usá-la também, como a Inglaterra e os diversos governos, nas nossas transacções domésticas, à falta de outra moeda. »

Finalizo com os versos de Guerra Junqueiro, que a Internet transcreve parcialmente, do seu livro “Finis Patriae”, que o meu Pai guardava na sua estante, alguns dos quais costumava citar, impelido na rajada patriótica do discurso virulento, com laivos surrealistas e reminiscências escatológicas de sabor apocalíptico, bem em sintonia com a nossa idiossincrasia de vertente exaltadamente saudosista:

«Ó cínica Inglaterra, ó bêbeda impudente,
Que tens levado, tu, ao negro e à escravidão?
Chitas e hipocrisia, evangelho e aguardente,
Repartindo por todo o escuro continente
A mortalha de Cristo em tangas d'algodão.

Teus apóstolos vão, prostituta devassa,
Com o fim de levar os negros para o céu,
Desde o Zaire ao Zambeze e desde o Cabo ao Niassa,
Baptizando a Impiedade em Jordões de cachaça,
Mostrando-lhe o teu Deus na tua hóstia - o guinéu!

A tua bíblia! o teu Cristo!... A tua bíblia é uma agenda
Em que a virtude heróica a cifras se reduz.
E o teu Cristo londrino é um Deus de compra e venda,
Deus que ressuscitou para abrir uma tenda
De cortiça, carvão, álcool e panos crus!

Pela estrada da história, ó milhafre daninho,
Vai um povo seguindo o seu norte polar,
E tu és o ladrão que lhe sais ao caminho,
Com a manha do lobo e a coragem do vinho,
A roubar-lhe os anéis para o deixar passar!

Quando espreitas o fraco apontas a clavina,
Quando avistas o forte envergas a libré...
A tua mão ora pede esmola ora assassina...
Teu orgulho, covarde é, meu Bayard d'esquina,
Como um tigre de rastro e um capacho de pé!

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Hão-de um dia as nações, como hienas dementes,
Teu império rasgar em feroz convulsão...
E no torvo halali, dando saltos ardentes,
Com a baba da raiva esfervendo entre os dentes,
A bramir, levará cada qual o seu quinhão!

E tu ficarás só na tua ilha normanda
Com teus barões feudais e teus mendigos nus:
Devorará teu peito um cancro aceso, a Irlanda,
E a tua carne hás-de vê-la, ó meretriz nefanda,
Lodo amassado em sangue, oiro amassado em pus!

E assim como brutais monstros de pesadelo
No soturno porão de uma nau sem ninguém,
Entre nuvens de fogo e temporais de gelo,
De bombordo a estibordo a rolar num novelo,
Desabando e rugindo, aos montões, num vaivém,

Se estrangulam febris, roucos, dilacerantes,
As pupilas a arder em brasas infernais,
Panteras contra leões, ursos contra elefantes,
Cobras em redemoinho a silvar dardejantes,
Búfalos escornando os tigres e os chacais;

Assim vós, assim vós, duma raça assassina,
Sobre essa nau de pedra onde o mar vai bater,
Vos estrangulareis numa carnificina
De que só ficará, sob a densa neblina,
Num pântano de sangue uma Gomorra a arder!

Milhões, milhões, milhões de bocas esfaimadas
Hão-de dilacerar-te o corpo com furor,
E a pedra a dinamite e a carne a punhaladas
Hão-de tombar no mesmo escombro ensanguentadas,
Em baques de hecatombe e blasfémias de dor!...

Hão-de os lords rolar em postas no Tamisa!
Há-de o corpo de um rei dar um banquete a um cão!
Teu solo há-de tremer como uma pitonisa,
E a canalha sem lei, sem Deus e sem camisa
Abrirá teu bandulho infecto, ó Deus Milhão!

Bancos, docas, prisões, arsenais, monumentos,
Tudo rebentará em cacos pelo ar!...
E ao soturno fragor de teus finais lamentos
Responderão - ladrando! as cóleras dos ventos!
Responderão - cuspindo! os vagalhões do mar
      Fevereiro de 1890

Não tinha razão, Guerra Junqueiro, no seu rugir impotente de visão apocalíptica: A libra mantém o seu esplendor e a língua permanece intacta na sua expansão universal, o Eurotúnel não fez mais que encaminhar em novas rotas o poderio de uma nação ávida que sempre se afirmou ardilosamente nobre e cavalheiresca, fazendo alastrar à socapa os artifícios bélicos ou hipócritas da sua dominação superior. Não haverá cacos nem finais lamentos da impávida Albion ante as respostas anímicas dos ventos ou dos vagalhões marítimos, segundo Junqueiro.
A menos que se esfrangalhem as nações do resto de uma Europa a que ela preside na distância da sua posição cimeira, oculta na névoa da sua fortaleza polida e indiferente.
 Porque uma Europa destroçada, corpo carcomido, igualmente atingirá essa cabeça cimeira (cotovelo direito, para Pessoa), pois, sem a participação  daquela, a “pérfida Albion” também ficará exangue.

 

 

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