Dantes,
quando ainda não se faziam ecografias para se descortinar o sexo dos
nascituros, enfiava-se uma agulha, ou prendia-se a aliança de casamento a uma
linha, e conforme o movimento daquelas sobre a mão da mãe – circular ou
pendular – assim se descobria o sexo do anjinho que ia crescendo na barriga dela,
anjinho decerto indiferente ao que sobre ele já tanto se sabia, cá do exterior.
Foi assim que o Luís causou surpresa, pois o movimento da linha ou do anel era
perfeitamente circular, demonstrava que seria infalivelmente uma Ritinha.
Mas calhou
menino. Os quatro filhos anteriores constituíram incógnita absoluta, pois não
se pusera ainda o problema das certezas prévias, por meio de agulhas ou anéis
pendurados em linhas, por desconhecimento do processo de detecção do sexo, que a
Isaura posteriormente nos transmitiu. Aprender até morrer, foi sempre o meu
lema, e assim, esclarecido rudimentarmente mas com profunda convicção, e compenetração
dos filhos mais velhos, o sexo do maninho que ia nascer, fui preparando o
enxoval, de cores brancas ou amarelinhas, de preferência, não fosse o diabo
tecê-las e o cor de rosa destinado a ficar desactivado, por falhanço da previsão,
a dúvida sendo companheira habitual do bicho homem, ao que se diz, a única
certeza consistindo na morte, mas é levar muito longe o cepticismo, julgo.
Todavia, na
questão do anel, a atitude céptica levou a melhor, o movimento circular,
anunciador de menina, falhando estrondosamente, a Ritinha dando lugar a um Luís
Filipe, menino difícil, para comer, sobretudo, que, em bebé, teve direito a uma
criada só para ele – a nossa Marta – pela minha escassez de tempo de seguir os
ritmos vagarosos do bebé, na vida de trabalho que mantive, já por preceito
bíblico, já por necessidade pessoal de angariar os fundos da sobrevivência na
mediania que aos clássicos apetecera.
Luís era chorão,
menos sociável que o Artur, de uma distância de idade em relação aos mais velhos
que definitivamente o remetia para o lugar de menino isolado e retraído, na
timidez mas na ousadia também, com que foi enfrentando o mundo que construiu. Era
um bom menino, teimoso e difícil. É um homem bem formado, com alma de menino
sempre, recalcitrante na angústia de um mundo de incerteza, em que os valores
incutidos de honestidade parecem já não fazer sentido.
Faz hoje
quarenta e um anos, tinha dois, quando aqui chegou. Tem um lar de
sensibilidades e de afectos, que todos nós desejamos sempre feliz. «La vie
n’est presque jamais en rose.» Mas pode-se compará-la a um caleidoscópio,
afinal criando, por conta dos espelhos em muitos ângulos, multicoloridas e
estranhas formas de grande beleza, por virtuais que sejam. É importante o
ângulo, e o espelho serve sempre para controlarmos as rugas do tempo, enquanto
é tempo.
Ao Luís
dedico a estrofe seguinte pronunciada pelo Velho do Restelo ao Vasco da Gama,
aquando da partida das Naus do Gama para a Índia, no cais do Restelo. Ela
confirma que o Adão era mesmo insano quando nos fez precipitar da idade de Ouro
na de ferro e trabalhos, por um Jeová inclemente, por conta de uma maçã trincada
que, como castigo, lhe ficou atravessada na garganta:
«Mas, ó tu, geração daquele insano
Cujo pecado e desobediência
Não somente do Reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado mais que humano,
Da quieta e da simples inocência,
Idade d' ouro, tanto te privou,
Que na de ferro e d' armas te deitou: (LUS., C. IV, 98)
Mas, apesar de tão crítico da
ousadia humana, o Velho do Restelo acaba a sua intervenção ao ilustre
navegador, buscador da Fama, fazendo uma apologia ao Homem, ser extraordinário que
é capaz de todas as proezas, até em meio dos maiores sacrifícios:
« Nenhum cometimento alto e nefando
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana geração.
Mísera sorte! Estranha condição!» (LUS., C. IV, 104)
Não deixes tu, Luís, “intentados” os
cometimentos para que te chamam as tuas vontades. O pior mesmo é que à Idade de
Ferro sucedeu a do Vazio, a do Buraco Negro da “sem perspectiva que valha”,
pelo menos cá.
Muitos
parabéns, Luís. Que as tuas perspectivas se concretizem, em caleidoscópio de
beleza, não virtuais como naquele, que os espelhos e os ângulos favorecem.
Todavia, os
espelhos ajudam sempre. E os ângulos também. A controlar a beleza. E a
perspectiva.
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