sexta-feira, 22 de março de 2013

Caçula


Dantes, quando ainda não se faziam ecografias para se descortinar o sexo dos nascituros, enfiava-se uma agulha, ou prendia-se a aliança de casamento a uma linha, e conforme o movimento daquelas sobre a mão da mãe – circular ou pendular – assim se descobria o sexo do anjinho que ia crescendo na barriga dela, anjinho decerto indiferente ao que sobre ele já tanto se sabia, cá do exterior. Foi assim que o Luís causou surpresa, pois o movimento da linha ou do anel era perfeitamente circular, demonstrava que seria infalivelmente uma Ritinha.

Mas calhou menino. Os quatro filhos anteriores constituíram incógnita absoluta, pois não se pusera ainda o problema das certezas prévias, por meio de agulhas ou anéis pendurados em linhas, por desconhecimento do processo de detecção do sexo, que a Isaura posteriormente nos transmitiu. Aprender até morrer, foi sempre o meu lema, e assim, esclarecido rudimentarmente mas com profunda convicção, e compenetração dos filhos mais velhos, o sexo do maninho que ia nascer, fui preparando o enxoval, de cores brancas ou amarelinhas, de preferência, não fosse o diabo tecê-las e o cor de rosa destinado a ficar desactivado, por falhanço da previsão, a dúvida sendo companheira habitual do bicho homem, ao que se diz, a única certeza consistindo na morte, mas é levar muito longe o cepticismo, julgo.

Todavia, na questão do anel, a atitude céptica levou a melhor, o movimento circular, anunciador de menina, falhando estrondosamente, a Ritinha dando lugar a um Luís Filipe, menino difícil, para comer, sobretudo, que, em bebé, teve direito a uma criada só para ele – a nossa Marta – pela minha escassez de tempo de seguir os ritmos vagarosos do bebé, na vida de trabalho que mantive, já por preceito bíblico, já por necessidade pessoal de angariar os fundos da sobrevivência na mediania que aos clássicos apetecera.

Luís era chorão, menos sociável que o Artur, de uma distância de idade em relação aos mais velhos que definitivamente o remetia para o lugar de menino isolado e retraído, na timidez mas na ousadia também, com que foi enfrentando o mundo que construiu. Era um bom menino, teimoso e difícil. É um homem bem formado, com alma de menino sempre, recalcitrante na angústia de um mundo de incerteza, em que os valores incutidos de honestidade parecem já não fazer sentido.

Faz hoje quarenta e um anos, tinha dois, quando aqui chegou. Tem um lar de sensibilidades e de afectos, que todos nós desejamos sempre feliz. «La vie n’est presque jamais en rose.» Mas pode-se compará-la a um caleidoscópio, afinal criando, por conta dos espelhos em muitos ângulos, multicoloridas e estranhas formas de grande beleza, por virtuais que sejam. É importante o ângulo, e o espelho serve sempre para controlarmos as rugas do tempo, enquanto é tempo.

Ao Luís dedico a estrofe seguinte pronunciada pelo Velho do Restelo ao Vasco da Gama, aquando da partida das Naus do Gama para a Índia, no cais do Restelo. Ela confirma que o Adão era mesmo insano quando nos fez precipitar da idade de Ouro na de ferro e trabalhos, por um Jeová inclemente, por conta de uma maçã trincada que, como castigo, lhe ficou atravessada na garganta:

«Mas, ó tu, geração daquele insano
Cujo pecado e desobediência
Não somente do Reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado mais que humano,
Da quieta e da simples inocência,
Idade d' ouro, tanto te privou,
Que na de ferro e d' armas te deitou:
 (LUS., C. IV, 98)


            Mas, apesar de tão crítico da ousadia humana, o Velho do Restelo acaba a sua intervenção ao ilustre navegador, buscador da Fama, fazendo uma apologia ao Homem, ser extraordinário que é capaz de todas as proezas, até em meio dos maiores sacrifícios:

« Nenhum cometimento alto e nefando
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana geração.
Mísera sorte! Estranha condição!»
(LUS., C. IV, 104)


            Não deixes tu, Luís, “intentados” os cometimentos para que te chamam as tuas vontades. O pior mesmo é que à Idade de Ferro sucedeu a do Vazio, a do Buraco Negro da “sem perspectiva que valha”, pelo menos cá.

Muitos parabéns, Luís. Que as tuas perspectivas se concretizem, em caleidoscópio de beleza, não virtuais como naquele, que os espelhos e os ângulos favorecem.

Todavia, os espelhos ajudam sempre. E os ângulos também. A controlar a beleza. E a perspectiva.

 

 

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