Foi no dia
11, pela manhã que fomos informados da morte de uma amiga de longa data e
fiquei em dúvida se devia transmitir a notícia à minha mãe. Desde os seus 105
anos que ela tem decaído, assustada com a proximidade – assim o julga – do fim.
O obstáculo à sua agitação é obtido pelos meios artificiais de tranquilizantes
ou hipnóticos que a fazem menos lúcida e menos feliz, embora mais repousada, o
muito sono significando, para a sua lucidez, sintoma de fim próximo. De resto,
as funções vitais ainda estão firmes, e creio que é o carinho que a rodeia que
a desmotiva para o trauma do desconhecido que a todos nós aterra. Deixou de
cantar, raramente lembra os versos que ainda há tão pouco tempo recitava, já
troca os nomes ou não se lembra das pessoas. Tem sido rápido o processo de
depauperamento, mas não creio que esteja chegada a hora, pois às vezes ainda se
sai com breves sentenças que nos alegram, pela vivacidade de resposta.
Por isso, ao
recebermos a notícia da morte da nossa amiga, a Glória, que todos estimávamos,
fiquei na dúvida se lha devia ou não transmitir. Mas o desejo de a trazer à
vida, de a fazer viver e vibrar ainda com as lembranças do mundo que por ela
passou, me levaram a comunicar-lha. E, passada a primeira surpresa, teve a
seguinte saída: «Já passou o portal dela. Agora falta o nosso», revelador
do pensamento da sua obsessão.
Mas ficou
agitada e arrependi-me de lhe ter revelado a morte da nossa amiga. Pedi-lhe que
rezasse pela Glória, mas logo passou a pasta, com a vivacidade do seu egoísmo e
do seu medo: “Já está no céu. Ela que peça por nós. Ela era tão boa!”
No domingo
de Ramos, o genro deu-lhe um ramo colhido no quintal a que não faltou o
alecrim, que ela cheirou com agrado. Pusemos a missa da TVI em alta voz, mas
ela, na cama, com o ramo ao lado, passava o tempo a chamar. Perguntei-lhe se
não queria ir de cadeira de rodas para a sala, ouvir a missa pela televisão, mas escusou-se com a presteza da
sua comodidade:
- Custa muito andar “de bolanda”.
E à minha
irmã, que vem sempre fazer-lhe companhia e se esmera em volta dela, atenta ao
seu bem-estar, saiu-se com esta: “Chama lá a Palmira, que isto está pelas
costuras”, sendo que a Palmira da sua infância há muito que deixou de ser.
Ainda nos
vamos rindo, com a minha mãe e as suas saídas prontas.
Faz hoje,
27 de Março, 106 anos. Festejemos. E arredemos ainda a Palmira do nosso
apelo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário