terça-feira, 30 de julho de 2013

Mudanças

Estou a mudar de casa. E rasgo papéis, para na nova casa “do lar que sempre terei”- porque foi dos meus pais e a ela me prende tanta recordação de “como a família é verdade” - na nova casa conseguir enfiar tanto do que construí, a acrescentar aos objectos da vivência deles. “Estou só e sonho saudade” enquanto releio e rasgo, para poder caber. E reli este, escrito pelos anos oitenta que achei que caberia ainda na casa e neste nosso século, como reforço instigador do estudo da literatura em coesão interactiva com as demais disciplinas:
«REFLEXÃO SOBRE INTERDISCIPLINARIDADE E LITERATUEA»
«Ao pretender-se estabelecer coesão e afinidade entre as várias disciplinas do curriculum escolar em mira de uma mais perfeita integração do aluno na realidade da sua integração pedagógica, a linha orientadora do princípio não ignorou, certamente, quanto a literatura, como reflexo da vida, através da expressão escrita, acentua, mais sugestivamente que qualquer outra disciplina, os pontos de contacto com aquelas.
Daí que, na reforma do Ensino subsequente ao 25 de Abril, consideremos como factor positivo a imposição do estudo do Português no Curso Complementar, independentemente das opções seguidas pelos alunos.
Propusemo-nos, pois, verificar, superficialmente embora, alguns dos aspectos identificadores da literatura com as realidades social e cultural já que, como veículo depurado da palavra, ela pode, mais directamente que qualquer meio artístico ou científico, expressar o mundo exterior ou interior do homem, pela utilização sempre enriquecida de terminologia que lhe é conferida pela evolução cultural.
Como qualquer outra forma de arte, a literatura pretende concretizar uma reflexão do homem individual sobre a realidade exterior e a transcendente, daí que a sua afinidade primeira com a Filosofia, como ciência esta que melhor responde à inquietação existencial do Homem, se nos imponha, através das suas formas naturais – Lírica, Narrativa ou Dramática.
Assim, no longo percurso da Literatura Portuguesa, cada época literária embebe-se, naturalmente, de uma ideologia “sui generis” com os conceitos filosóficos em vigor.
À religiosidade medieval, de tipo teocêntrico e dogmático, apoiando-se na autoridade dos textos, segundo preceitos escolásticos, seguir-se-á, na época clássica, a exploração de um idealismo neoplatónico, de par com o criticismo reformista e posteriormente a atitude experimentalista e o racionalismo cartesiano favorecedores de uma visão objectiva e lúcida na caracterização do homem universal.
 Com o Romantismo, a inquietação religiosa, a busca do Absoluto, traduzem antes uma concepção pessimista do mundo e uma atitude polarizadora do “ego”, para se diversificarem em correntes cada vez mais variadas, que procuram essencialmente a solução para o problema social, já que o liberalismo defendido pelos filósofos da Revolução Francesa, juntamente com o progresso industrial do século XIX, conduzira, contrariamente às aspirações desses filósofos, ao desnivelamento social, pelo desenvolvimento do capitalismo e a consequente exploração do proletariado. No Realismo, não podemos alhear-nos, pois, da influência da doutrinação socialista sobre a temática dos escritores tal como, e correlativamente, da influência da doutrinação positivista bem como da importância do evolucionismo de Darwin ou do determinismo de Taine, de que os escritores naturalistas se inspiram para justificar a modificação dos comportamentos de acordo com o meio físico, a raça, as condições particulares do momento.
O século XX, ao caracterizar-se por uma cada vez maior desagregação trazida pela decomposição do átomo e da matéria, com reflexo sobre uma evolução tecnológica e científica cada vez mais alucinantes, sofrerá a influência de correntes de pensamento variadíssimas que naturalmente imprimirão a sua marca sobre a Literatura.
No início do século o Primeiro Modernismo ou da Geração da Revista “Orpheu” definir-se-á por um propósito desestabilizador de destruição dos valores tradicionais, ligados às correntes simbolista e saudosista, e de ataque ao conservadorismo burguês, aliados a um espírito inovador que, na esteira do futurista Marinetti, apregoa a máquina, o dinamismo, a velocidade, a simultaneidade, o progresso, o feio, num propósito dessacralizador da Arte.
O Surrealismo, surgido ainda no primeiro quartel do século, com André Breton, impregna-se dos conceitos da psicanálise, ao explorar literariamente o mundo fantasmagórico e incoerente do subconsciente.
O Segundo Modernismo, que vigorou em Portugal através da Geração da “Presença” , de que José Régio foi o expoente maior, além do mérito de destacar os poetas da “Orpheu”, nomeadamente Pessoa, retoma uma atitude mais tranquila de contemplação narcísica desligada do mundo exterior, e de inquietação metafísica.
Suceder-lhe-á em breve, e em consequência das graves convulsões sociais do segundo quartel do século XX, a escola neo-realista, apoiada na ideologia marxista, tendente a intervir na solução social, ao defender uma tomada de consciência das classes trabalhadoras exploradas.
A esta literatura de empenhamento social, opor-se-á um literatura de cunho existencialista, de que Vergílio Ferreira, que se iniciou como neo-realista, será talvez o escritor mais convicto, sempre maleável a novas experiências literárias, como demonstrará posteriormente com a técnica do “novo romance”, apoiado este em técnicas narrativas onde não cabem a ordem comum nem os esquemas tradicionais subentendendo acção, personagens, elementos espácio-temporais, despidos uns e outros de valor efectivo, em benefício de uma multiplicação de valores diversos que passariam despercebidos  na narrativa tradicional
Também o novo teatro ou “antiteatro”, no mesmo desígnio de subversão relativamente aos valores literários tradicionais, explorará a temática do absurdo, em que as personagens se comportam como “robots” grotescos, sem densidade psicológica, a acção inexistente ou circular, repetitiva, os elementos espaciotemporais destituídos de valor real, onde sobressaem figuras desarticuladas, sem vida interior, traduzindo, num universo de “non-sens”, o irrisório e cruel do destino humano.
A par da ideologia presidindo à expressão da obra literária, diversifica-se esta numa temática mais ou menos variada, de cariz as mais das vezes filosófico também. É por demais conhecido, por exemplo, o tema do devir, da mudança, repousando na fórmula heraclitiana – apesar da oposição dos eleatas, adeptos do estatismo, da unicidade – do homem banhando-se no rio, excluindo qualquer sentido de paragem ou repetição, e desde sempre poetas e prosadores exploraram o conceito:
- Num sentido mais objectivo, do desgaste físico que o tempo traz e a consequente instância epicurista ao gozo, formalizada no “carpe diem” horaciano, percorremo-lo desde os poetas clássicos, a Ricardo Reis, a António Gedeão…
- Num sentido mais pessimista ainda do fluir irreversível do tempo para a morte, encontramo-lo na angústia burilada e sintética dos poetas barrocos, na mais eloquente dos escritores românticos, em Cesário, António Nobre, Pessoa, que tão agudamente define o sentido do absurdo e do paradoxo, num existencialismo que reencontraremos nos escritores existencialistas do após-guerra, embebidos de Sartre, Camus e outros.
- Num sentido mais simbólico de um hegelianismo “avant la lettre”, a evolução espiritual da Alma no Auto do mesmo nome de Gil Vicente, segundo o conceito de tese, antítese e síntese, identificada a primeira com o Anjo e a segunda com o Diabo, sendo á Alma a síntese da luta antitética, síntese que inicialmente se processa num sentido descendente, de degradação materialista com a vitória do Diabo, e em seguida ascendente, de eleição espiritual, com a vitória do Anjo e o triunfo da Igreja.
O mesmo tema do devir, da mudança, que o romance português, desde a “Menina e Moça” a Garrett, aos romancistas contemporâneos, explora num sentido de inquietação espiritual ou psicológica, resultante de instabilidade temperamental, ou num sentido de continuidade temporal, apoiar-se-á, neste século XX, na corrente bergsoniana do fluir da memória e da consciência, de que é exemplo típico o romance de Agustina Bessa Luís, “A Sibila”, marco diferenciador de uma nova era literária, pela exploração alucinante de uma imagística e uma ironia riquíssimas, aliadas a um processo narrativo que, ao invés da linearidade, conjugada com frequentes analepses ou retrospectivas do romance estandardizado e pragmático do século XIX, feito para um público convencional, exigente de coerência e segurança, utiliza, pelo contrário, uma técnica exigente de constantes apelos e fugas, à maneira da rosácea gótica, em que as linhas de acção se movem num constante fluir e refluir de elementos trazidos por um processo evocativo, saltando constantemente no tempo e no espaço sem, todavia, quebrar a unidade e a progressão narrativas.
Se a Literatura se filia em correntes filosóficas, não é menos importante o contributo da Música para a compreensão do fenómeno literário, através dos recursos ligados à exploração do significante, especialmente a poesia que o Simbolismo identificará mesmo com a própria música, pela criação de uma arte de sugestão de estados de alma, mais do que expressão articulada de um pensamento coerente, através de um discurso essencialmente aliterativo, de repetição de sons.
De resto, tal como as demais Artes, também a Música sofre evolução concordante com os valores ideológicos dos períodos literários sucessivos, desde a música instrumental da Idade Média, intimamente ligada com a poesia quer profana quer religiosa, à música polifónica renascentista, à espectaculosidade da ópera e do ballet da época barroca, ao aperfeiçoamento da música instrumental e formação da orquestral com a criação sinfonia, do concerto, da música de câmara no século XVIII, em que se salientaram tantos virtuoses, à música liberta das regras clássicas e expressão de sentimentos da época romântica, à música verista concomitante com a escola realista, às variedades musicais do século xx, onde não faltam experiências no campo da música atonal, com a música concreta e a electrónica, analógicas da poesia concretista, que associa signo e forma, numa tentativa de recriar uma realidade mais próxima e mais ampla de ambiguidade.
Por esse facto, parece-nos necessária uma reestruturação pedagógica, no sentido da inclusão dessa disciplina ao longo do curriculum escolar, com vista a uma complementaridade cultural, indispensável na formação humanista do aluno, além de que é óbvio também, como nas demais disciplinas, o contributo linguístico do  campo musical, com expressões como “pôr a tónica”, “pôr o acento” ”sonante”, “tonalidade”, “timbre”, “contraponto”, ou a própria exploração imagística de que é exemplo típico, o soneto barroco “Ao cavalo do conde de Sabugal que fazia grandes curvetas”, de autor anónimo:
Galhardo bruto, teu bizarro alento
Musica é nova com que aos olhos cantas,
Pois na harmonia de cadências tantas
É clave o freio, é solfa o movimento.

Ao compasso da rédea, ao instrumento
Do chão que tocas, quando a vista encantas,
Já baixas grave, e agudo já levantas,
Onde o pisar é som e o andar concento.

Cantam teus pés, e teu meneio pronto,
Nas fugas, não nas cláusulas medido,
Mil consonâncias forma em cada ponto.

Pois em solfas airosas suspendido,
Ergues em cada quadro um contraponto,
Fazes em cada passo um sustenido.
Também o Desenho, as Artes Plásticas, são complementares do ensino da Literatura, quer através do conhecimento dos valores técnicos das escolas de pintura, escultura ou arquitectura, quer pela importância que o visualismo toma em determinadas escolas literárias, mais especificamente na realista e na escola parnasiana, com o seu vocabulário de cor, próprio da criação sensorialista, ou mesmo a identificação com a pintura, como exprime frequentemente Cesário Verde:
“Pinto quadros por letras, por sinais
Tão luminosos como os do Levante.”
            Como não reconhecer a necessidade de um estudo paralelo entre a Arte e a Literatura, quer no sentido de religiosidade do estilo gótico, ou no equilíbrio harmónico das linhas renascentistas, ou no dinamismo e angústia do transcendente dos excessos ornamentais barrocos, ou no transbordar de emoções da arte romântica, ou na luminosidade e realismo dos quadros impressionistas?
Se estas escolas dão relevo à forma, as escolas modernistas, como por exemplo o Cubismo, pretenderão recriar a ilusão do movimento e do fragmentário, tão expressivo neste século XX, pela multiplicidade de planos e ângulos nos quais as realidades dos mundos exterior e interior estão imbricados. Terão adeptos na Literatura, nomeadamente no Sensacionismo e Interseccionismo dos poetas da Orpheu, tal como o mundo dos sonhos ou do subconsciente da escola surrealista terá reflexos na pintura do mesmo nome, ou o Expressionismo se aparentará intimamente com a literatura de intervenção e revolta neo-realista. Por outro lado, também a língua se enriqueceu com o contributo das Artes Plásticas através de termos como “perfil” “caricatura”, “projecção”, “aguarela”, “escultural”, usados conotativamente.
Identidade com a Literatura e a Educação Física, vemo-la na expressão rítmica dos gestos e no desenvolvimento harmónico do corpo, dentro do conceito clássico do “corpus sanus”, além de que o estudo evolutivo das escolas de dança traria achegas valiosas ao estudo literário.
E a Matemática, e a Geometria, e a Física, com a sua terminologia de tão vasta aplicação linguística, como por exemplo “linear”, “linearidade”, “pontual”, “símbolo”, “operacional”, “hipérbole”, “limite”, “técnica circular”, “dinâmica”, “óptica”…., sem esquecer o uso poético que delas faz, por exemplo, Cesário Verde, ao definir os seus versos como “desenho de compasso e esquadro”, dado o seu carácter geométrico, rigoroso, exacto de observação e técnica analítica.
E a Geografia de Crónicas e relatos de viagens e aventuras exóticas, caso da “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto, e a Biologia, a Astronomia, etc., que inspiraram poetas como Gedeão, no uso de uma terminologia especializada de não pequeno valor poético, apesar da especificidade do termo denotativo. Aliás, tal especificidade encontramo-la ao longo da história literária, no concretismo das imagens, desde a “Fénix Renascida” a Tolentino, Cesário, Pessoa, Álvaro de Campos, Miguel Torga…
Também a História, não só transmite conhecimentos de épocas passadas, em íntima relação com os movimentos culturais, mas proporciona a identificação de mitos, contribuindo ainda para a formação de narrativas históricas com valor literário e para a criação da epopeia, onde não só a história mas um grande número de ciências perpassa.
Escusado será falarmos no contributo das línguas vivas, com o estudo comparativo no campo gramatical, linguístico e literário, ou das línguas clássicas, para o estudo aprofundado e etimológico da língua pátria, além de mergulhar no conhecimento literário dos clássicos, de tão extrema importância para a formação humanista.
Pressionados por horários inflexíveis e tarefas pesadas de realização e correcção de testes e outras actividades colaterais, isolamo-nos no nosso mundo de trabalho e premências, sem nos darmos conta de que uma interacção entre colegas de grupos diferentes poderia em parte enriquecer-nos mutuamente, suprindo dúvidas e respondendo a carências que procuramos as mais das vezes resolver isoladamente, com mais ou menos aplicação, maior ou menor interesse de actualização. Essa interacção resultaria, sem dúvida, em benefício do ensino relativamente à formação do estudante.
Este pequeno trabalho pretende apelar para uma junção de esforços num sentido, não só de enriquecimento mútuo pelo apontar de informações e soluções, como no objectivo de criar uma harmonia e unidade num ensino naturalmente diversificado pela especialização de matérias, mas que uma conjugação de valores interdisciplinares poderá ajudar a unificar e a enriquecer como meio, parcial embora, de obstar a uma progressiva degradação do nosso ensino, que originou a frequente análise do problema, subordinada ao tema do insucesso escolar no nosso país.»
 

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