Estou a
mudar de casa. E rasgo papéis, para na nova casa “do lar que sempre terei”-
porque foi dos meus pais e a ela me prende tanta recordação de “como a família
é verdade” - na nova casa conseguir enfiar tanto do que construí, a
acrescentar aos objectos da vivência deles. “Estou só e sonho saudade”
enquanto releio e rasgo, para poder caber. E reli este, escrito pelos anos oitenta que achei que caberia
ainda na casa e neste nosso século, como reforço instigador do estudo da
literatura em coesão interactiva com as demais disciplinas:
«REFLEXÃO
SOBRE INTERDISCIPLINARIDADE E LITERATUEA»
«Ao
pretender-se estabelecer coesão e afinidade entre as várias disciplinas do
curriculum escolar em mira de uma mais perfeita integração do aluno na
realidade da sua integração pedagógica, a linha orientadora do princípio não
ignorou, certamente, quanto a literatura, como reflexo da vida, através da
expressão escrita, acentua, mais sugestivamente que qualquer outra disciplina,
os pontos de contacto com aquelas.
Daí
que, na reforma do Ensino subsequente ao 25 de Abril, consideremos como factor
positivo a imposição do estudo do Português no Curso Complementar,
independentemente das opções seguidas pelos alunos.
Propusemo-nos,
pois, verificar, superficialmente embora, alguns dos aspectos identificadores
da literatura com as realidades social e cultural já que, como veículo depurado
da palavra, ela pode, mais directamente que qualquer meio artístico ou
científico, expressar o mundo exterior ou interior do homem, pela utilização
sempre enriquecida de terminologia que lhe é conferida pela evolução cultural.
Como
qualquer outra forma de arte, a literatura pretende concretizar uma reflexão do
homem individual sobre a realidade exterior e a transcendente, daí que a sua
afinidade primeira com a Filosofia, como ciência esta que melhor responde à
inquietação existencial do Homem, se nos imponha, através das suas formas
naturais – Lírica, Narrativa ou Dramática.
Assim,
no longo percurso da Literatura Portuguesa, cada época literária embebe-se,
naturalmente, de uma ideologia “sui generis” com os conceitos filosóficos em
vigor.
À
religiosidade medieval, de tipo teocêntrico e dogmático, apoiando-se na
autoridade dos textos, segundo preceitos escolásticos, seguir-se-á, na época
clássica, a exploração de um idealismo neoplatónico, de par com o criticismo
reformista e posteriormente a atitude experimentalista e o racionalismo
cartesiano favorecedores de uma visão objectiva e lúcida na caracterização do
homem universal.
Com o Romantismo, a inquietação religiosa, a
busca do Absoluto, traduzem antes uma concepção pessimista do mundo e uma
atitude polarizadora do “ego”, para se diversificarem em correntes cada vez
mais variadas, que procuram essencialmente a solução para o problema social, já
que o liberalismo defendido pelos filósofos da Revolução Francesa, juntamente
com o progresso industrial do século XIX, conduzira, contrariamente às
aspirações desses filósofos, ao desnivelamento social, pelo desenvolvimento do
capitalismo e a consequente exploração do proletariado. No Realismo, não
podemos alhear-nos, pois, da influência da doutrinação socialista sobre a
temática dos escritores tal como, e correlativamente, da influência da
doutrinação positivista bem como da importância do evolucionismo de Darwin ou
do determinismo de Taine, de que os escritores naturalistas se inspiram para
justificar a modificação dos comportamentos de acordo com o meio físico, a raça,
as condições particulares do momento.
O
século XX, ao caracterizar-se por uma cada vez maior desagregação trazida pela
decomposição do átomo e da matéria, com reflexo sobre uma evolução tecnológica
e científica cada vez mais alucinantes, sofrerá a influência de correntes de
pensamento variadíssimas que naturalmente imprimirão a sua marca sobre a
Literatura.
No
início do século o Primeiro Modernismo ou da Geração da Revista “Orpheu”
definir-se-á por um propósito desestabilizador de destruição dos valores
tradicionais, ligados às correntes simbolista e saudosista, e de ataque ao
conservadorismo burguês, aliados a um espírito inovador que, na esteira do
futurista Marinetti, apregoa a máquina, o dinamismo, a velocidade, a
simultaneidade, o progresso, o feio, num propósito dessacralizador da Arte.
O
Surrealismo, surgido ainda no primeiro quartel do século, com André Breton,
impregna-se dos conceitos da psicanálise, ao explorar literariamente o mundo
fantasmagórico e incoerente do subconsciente.
O
Segundo Modernismo, que vigorou em Portugal através da Geração da “Presença” ,
de que José Régio foi o expoente maior, além do mérito de destacar os poetas da
“Orpheu”, nomeadamente Pessoa, retoma uma atitude mais tranquila de
contemplação narcísica desligada do mundo exterior, e de inquietação
metafísica.
Suceder-lhe-á
em breve, e em consequência das graves convulsões sociais do segundo quartel do
século XX, a escola neo-realista, apoiada na ideologia marxista, tendente a
intervir na solução social, ao defender uma tomada de consciência das classes
trabalhadoras exploradas.
A
esta literatura de empenhamento social, opor-se-á um literatura de cunho
existencialista, de que Vergílio Ferreira, que se iniciou como neo-realista,
será talvez o escritor mais convicto, sempre maleável a novas experiências
literárias, como demonstrará posteriormente com a técnica do “novo romance”,
apoiado este em técnicas narrativas onde não cabem a ordem comum nem os esquemas
tradicionais subentendendo acção, personagens, elementos espácio-temporais,
despidos uns e outros de valor efectivo, em benefício de uma multiplicação de
valores diversos que passariam despercebidos na narrativa tradicional
Também
o novo teatro ou “antiteatro”, no mesmo desígnio de subversão relativamente aos
valores literários tradicionais, explorará a temática do absurdo, em que as
personagens se comportam como “robots” grotescos, sem densidade psicológica, a
acção inexistente ou circular, repetitiva, os elementos espaciotemporais
destituídos de valor real, onde sobressaem figuras desarticuladas, sem vida
interior, traduzindo, num universo de “non-sens”, o irrisório e cruel do
destino humano.
A par
da ideologia presidindo à expressão da obra literária, diversifica-se esta numa
temática mais ou menos variada, de cariz as mais das vezes filosófico também. É
por demais conhecido, por exemplo, o tema do devir, da mudança, repousando na
fórmula heraclitiana – apesar da oposição dos eleatas, adeptos do estatismo, da
unicidade – do homem banhando-se no rio, excluindo qualquer sentido de paragem
ou repetição, e desde sempre poetas e prosadores exploraram o conceito:
- Num
sentido mais objectivo, do desgaste físico que o tempo traz e a consequente
instância epicurista ao gozo, formalizada no “carpe diem” horaciano,
percorremo-lo desde os poetas clássicos, a Ricardo Reis, a António Gedeão…
- Num
sentido mais pessimista ainda do fluir irreversível do tempo para a morte,
encontramo-lo na angústia burilada e sintética dos poetas barrocos, na mais
eloquente dos escritores românticos, em Cesário, António Nobre, Pessoa, que tão
agudamente define o sentido do absurdo e do paradoxo, num existencialismo que
reencontraremos nos escritores existencialistas do após-guerra, embebidos de
Sartre, Camus e outros.
- Num
sentido mais simbólico de um hegelianismo “avant la lettre”, a evolução
espiritual da Alma no Auto do mesmo nome de Gil Vicente, segundo o conceito de
tese, antítese e síntese, identificada a primeira com o Anjo e a segunda com o
Diabo, sendo á Alma a síntese da luta antitética, síntese que inicialmente se
processa num sentido descendente, de degradação materialista com a vitória do
Diabo, e em seguida ascendente, de eleição espiritual, com a vitória do Anjo e
o triunfo da Igreja.
O
mesmo tema do devir, da mudança, que o romance português, desde a “Menina e
Moça” a Garrett, aos romancistas contemporâneos, explora num sentido de
inquietação espiritual ou psicológica, resultante de instabilidade
temperamental, ou num sentido de continuidade temporal, apoiar-se-á, neste
século XX, na corrente bergsoniana do fluir da memória e da consciência, de que
é exemplo típico o romance de Agustina Bessa Luís, “A Sibila”, marco
diferenciador de uma nova era literária, pela exploração alucinante de uma
imagística e uma ironia riquíssimas, aliadas a um processo narrativo que, ao
invés da linearidade, conjugada com frequentes analepses ou retrospectivas do
romance estandardizado e pragmático do século XIX, feito para um público
convencional, exigente de coerência e segurança, utiliza, pelo contrário, uma
técnica exigente de constantes apelos e fugas, à maneira da rosácea gótica, em
que as linhas de acção se movem num constante fluir e refluir de elementos
trazidos por um processo evocativo, saltando constantemente no tempo e no
espaço sem, todavia, quebrar a unidade e a progressão narrativas.
Se a Literatura
se filia em correntes filosóficas, não é menos importante o contributo da Música
para a compreensão do fenómeno literário, através dos recursos ligados à
exploração do significante, especialmente a poesia que o Simbolismo
identificará mesmo com a própria música, pela criação de uma arte de sugestão
de estados de alma, mais do que expressão articulada de um pensamento coerente,
através de um discurso essencialmente aliterativo, de repetição de sons.
De
resto, tal como as demais Artes, também a Música sofre evolução concordante com
os valores ideológicos dos períodos literários sucessivos, desde a música
instrumental da Idade Média, intimamente ligada com a poesia quer profana quer
religiosa, à música polifónica renascentista, à espectaculosidade da ópera e do
ballet da época barroca, ao aperfeiçoamento da música instrumental e formação
da orquestral com a criação sinfonia, do concerto, da música de câmara no
século XVIII, em que se salientaram tantos virtuoses, à música liberta das
regras clássicas e expressão de sentimentos da época romântica, à música
verista concomitante com a escola realista, às variedades musicais do século
xx, onde não faltam experiências no campo da música atonal, com a música
concreta e a electrónica, analógicas da poesia concretista, que associa signo e
forma, numa tentativa de recriar uma realidade mais próxima e mais ampla de
ambiguidade.
Por
esse facto, parece-nos necessária uma reestruturação pedagógica, no sentido da
inclusão dessa disciplina ao longo do curriculum escolar, com vista a uma
complementaridade cultural, indispensável na formação humanista do aluno, além
de que é óbvio também, como nas demais disciplinas, o contributo linguístico
do campo musical, com expressões como
“pôr a tónica”, “pôr o acento” ”sonante”, “tonalidade”, “timbre”,
“contraponto”, ou a própria exploração imagística de que é exemplo típico, o
soneto barroco “Ao cavalo do conde de Sabugal que fazia grandes curvetas”, de
autor anónimo:
Galhardo bruto, teu bizarro alento
Musica é nova com que aos olhos cantas,
Pois na harmonia de cadências tantas
É clave o freio, é solfa o movimento.
Ao compasso da rédea, ao instrumento
Do chão que tocas, quando a vista encantas,
Já baixas grave, e agudo já levantas,
Onde o pisar é som e o andar concento.
Cantam teus pés, e teu meneio pronto,
Nas fugas, não nas cláusulas medido,
Mil consonâncias forma em cada ponto.
Pois em solfas airosas suspendido,
Ergues em cada quadro um contraponto,
Fazes em cada passo um sustenido.
Musica é nova com que aos olhos cantas,
Pois na harmonia de cadências tantas
É clave o freio, é solfa o movimento.
Ao compasso da rédea, ao instrumento
Do chão que tocas, quando a vista encantas,
Já baixas grave, e agudo já levantas,
Onde o pisar é som e o andar concento.
Cantam teus pés, e teu meneio pronto,
Nas fugas, não nas cláusulas medido,
Mil consonâncias forma em cada ponto.
Pois em solfas airosas suspendido,
Ergues em cada quadro um contraponto,
Fazes em cada passo um sustenido.
Também
o Desenho, as Artes Plásticas, são complementares do ensino da Literatura, quer
através do conhecimento dos valores técnicos das escolas de pintura, escultura
ou arquitectura, quer pela importância que o visualismo toma em determinadas
escolas literárias, mais especificamente na realista e na escola parnasiana,
com o seu vocabulário de cor, próprio da criação sensorialista, ou mesmo a
identificação com a pintura, como exprime frequentemente Cesário Verde:
“Pinto quadros por
letras, por sinais
Tão
luminosos como os do Levante.”
Como
não reconhecer a necessidade de um estudo paralelo entre a Arte e a Literatura,
quer no sentido de religiosidade do estilo gótico, ou no equilíbrio harmónico
das linhas renascentistas, ou no dinamismo e angústia do transcendente dos
excessos ornamentais barrocos, ou no transbordar de emoções da arte romântica,
ou na luminosidade e realismo dos quadros impressionistas?
Se
estas escolas dão relevo à forma, as escolas modernistas, como por exemplo o Cubismo,
pretenderão recriar a ilusão do movimento e do fragmentário, tão expressivo
neste século XX, pela multiplicidade de planos e ângulos nos quais as
realidades dos mundos exterior e interior estão imbricados. Terão adeptos na
Literatura, nomeadamente no Sensacionismo e Interseccionismo dos poetas da
Orpheu, tal como o mundo dos sonhos ou do subconsciente da escola surrealista
terá reflexos na pintura do mesmo nome, ou o Expressionismo se aparentará
intimamente com a literatura de intervenção e revolta neo-realista. Por outro
lado, também a língua se enriqueceu com o contributo das Artes Plásticas
através de termos como “perfil” “caricatura”, “projecção”, “aguarela”,
“escultural”, usados conotativamente.
Identidade
com a Literatura e a Educação Física, vemo-la na expressão rítmica dos gestos e
no desenvolvimento harmónico do corpo, dentro do conceito clássico do “corpus
sanus”, além de que o estudo evolutivo das escolas de dança traria achegas
valiosas ao estudo literário.
E a Matemática, e a
Geometria, e a Física, com a sua terminologia de tão vasta aplicação linguística,
como por exemplo “linear”, “linearidade”, “pontual”, “símbolo”, “operacional”,
“hipérbole”, “limite”, “técnica circular”, “dinâmica”, “óptica”…., sem esquecer
o uso poético que delas faz, por exemplo, Cesário Verde, ao definir os seus
versos como “desenho de compasso e esquadro”, dado o seu carácter
geométrico, rigoroso, exacto de observação e técnica analítica.
E a Geografia de Crónicas
e relatos de viagens e aventuras exóticas, caso da “Peregrinação” de Fernão
Mendes Pinto, e a Biologia, a Astronomia, etc., que inspiraram poetas como
Gedeão, no uso de uma terminologia especializada de não pequeno valor poético,
apesar da especificidade do termo denotativo. Aliás, tal especificidade
encontramo-la ao longo da história literária, no concretismo das imagens, desde
a “Fénix Renascida” a Tolentino, Cesário, Pessoa, Álvaro de Campos, Miguel
Torga…
Também a História, não só
transmite conhecimentos de épocas passadas, em íntima relação com os movimentos
culturais, mas proporciona a identificação de mitos, contribuindo ainda para a
formação de narrativas históricas com valor literário e para a criação da
epopeia, onde não só a história mas um grande número de ciências perpassa.
Escusado será falarmos no
contributo das línguas vivas, com o estudo comparativo no campo gramatical,
linguístico e literário, ou das línguas clássicas, para o estudo aprofundado e
etimológico da língua pátria, além de mergulhar no conhecimento literário dos
clássicos, de tão extrema importância para a formação humanista.
Pressionados por horários
inflexíveis e tarefas pesadas de realização e correcção de testes e outras
actividades colaterais, isolamo-nos no nosso mundo de trabalho e premências,
sem nos darmos conta de que uma interacção entre colegas de grupos diferentes
poderia em parte enriquecer-nos mutuamente, suprindo dúvidas e respondendo a
carências que procuramos as mais das vezes resolver isoladamente, com mais ou
menos aplicação, maior ou menor interesse de actualização. Essa interacção resultaria,
sem dúvida, em benefício do ensino relativamente à formação do estudante.
Este pequeno trabalho pretende
apelar para uma junção de esforços num sentido, não só de enriquecimento mútuo
pelo apontar de informações e soluções, como no objectivo de criar uma harmonia
e unidade num ensino naturalmente diversificado pela especialização de
matérias, mas que uma conjugação de valores interdisciplinares poderá ajudar a
unificar e a enriquecer como meio, parcial embora, de obstar a uma progressiva
degradação do nosso ensino, que originou a frequente análise do problema,
subordinada ao tema do insucesso escolar no nosso país.»
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