terça-feira, 2 de julho de 2013

Dosear ou não, eis a questão


É sobre uma questão de inundação
A fábula seguinte de Florian
Com pessoas que até eram das boas
A trabalhar,
E a procriar,
E por isso viviam felizes
Sem muitas chatices
A propiciar cicatrizes,
Amigas dos seus amigos,
Perdoando aos seus inimigos
Como manda a lei cristã.
Mas o sol criador,
Deixou a certa altura de o ser,
Secando os campos sem permitir
Que a chuva viesse acudir,
O que, naturalmente,
Criou a fome e gerou disputas aceradas
Sobre os problemas das desigualdades disparatadas
E outras reivindicações parecidas,
Sempre apetecidas
Pelas populações obstinadas.
Esses cidadãos formaram sindicato,
Ou antes, parlamento,
Para chegar a qualquer decisão de tento.
Como isso não fosse possível,
Uns velhotes meteram o bedelho
E ensinaram a forma de tornar viável
A solução da crise lastimável.
Mas é preferível conhecer o seu conselho
Traduzindo primeiro,
A fábula por inteiro
Pondo ponto final neste adiantamento
Na acção de uma fábula que nada tem de inédita,
E retirando-lhe todo o suspense que nada tem de idílico:

 «A inundação»

«Uns lavradores viviam pacíficos e contentes
Numa rica e numerosa aldeia:
Desde o alvorecer partiam para os campos a trabalhar
À noite regressavam a cantar
Ao seio dos seus tranquilos lares;
E a natureza boa e sábia,
Como prémio dos seus trabalhos
Dava-lhes todos os anos
Belos trigos e belos filhos.
Mas todos temos que sofrer, é nosso destino.
Ora aconteceu que num ano,
Num mês em que o louro Febo
Foi a escaldante Sírio visitar,
A Terra, de suco esgotada,
Abrindo por todo o lado o seu seio,
Sob um céu de bronze arquejava sem parar.
Nada de chuva nem de orvalho.
Sobre um solo rachado o grão escurece,
As espigas estão queimadas, as cabeças penduradas
Caem sobre os seus caules, secas.
Tremeu-se com medo à fome
Que nunca apetece;
A comuna reúne-se. À pressa delibera-se;
E cada um, como de ordinário,
Fala muito e não diz nada.
Enfim, alguns velhos, gente de senso e de espírito,
Meteram o bedelho
Propondo sábio conselho:
“Meus amigos, disseram, daqui podereis avistar
Aquele monte pouco distante da aldeia;
Ali se encontra um grande lago, imenso reservatório
Das águas subterrâneas que para ali fazem passagem.
Vão sangrar esse lago; mas saibam dosear
As sangrias em pequena quantidade,
A fim de que, à vossa vontade,
Possais dirigir as águas benfazejas
Às terras assim banhadas
Para serem com proveito trabalhadas.
E quando for preciso, as deteremos,
Tomai bem atenção, ao menos…” “Sim, sim, corramos,
Exclama logo a assembleia
Da aldeia.
E eis mil jovens carregados
De enxadas, picaretas, e outros instrumentos
Que voam para o lago: À volta das margens
A terra é trabalhada.
Ao mesmo tempo são cavados
Cem fundos buracos
Cada operário se encarrega duma porção do terreno:
Coragem! Vamos! Nada de descanso!
A abertura nunca pode ser bastante larga.
Depressa foi feito. Antes da noite as águas,
Caindo com todo o seu peso sobre o dique enfraquecido,
De todo o lado rolam em alterosas ondas.
Êxtases e manifestações da turba pasmada,
Que se admira nos seus trabalhos.
No dia seguinte de manhã não foi a mesma coisa:
Vêem-se flutuar os trigos num oceano de água;
Para sair da aldeia foi preciso um barco;
Tudo está perdido, afogado. A dor é extrema.
Atiram-se contra os velhos: “foram vocês, assim disseram,
Que a nossa seara destruíram;
O vosso maldito conselho…” “Era salutar,
Respondeu um deles, mas o que acabam de fazer
Está muito longe do conselho e da razão.
Nós queríamos um pouco de água, vocês abrem as comportas;
O excesso de um grande bem torna-se num mal maior;
O sensato rega docemente,
O insensato inunda imediatamente”.»

 Desde o 25 de Abril também nós
Andamos de comportas soltas a alagar
Que não há quem as venha segurar
Para deter
Tanta inundação de abismar.
E toda a gente a opinar, a opinar,
Sem a nenhum resultado chegar
E pelo contrário a contribuir
Para mais inundar,
Mas com todos a querer
Tomar nas mãos o leme da barcaça
Que mesmo desconjuntada não há quem a não apeteça
E logo substituir
Os que se esforçam por a bom porto a conduzir…
Razão tinha o António Nobre
Para aconselhar
O seu João a dormir:

“Não acordes para o mundo
Pode afogar-te a maré:
Tu mal sabes o que isto é…
Na Vida que a Dor povoa
Há só uma coisa boa,
Que é dormir, dormir, dormir…
Tudo vai sem se sentir…”

 Muita é a nossa aflição todavia:
Com a saída do ministro Gaspar
Que tem razão em não querer aturar
Tanta provocação,
Veremos se a rebentação vai aumentar
Com tanta cainçada a ladrar, a ganir, a estoirar
De alegria…

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