quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

A alma do negócio

 

Os já antigos tabus a respeito das ocupações que portugueses e espanhóis tinham realizado outrora, em empreendimentos de que se deverão sempre orgulhar, como heróis de uma epopeia marítima de extrema coragem e interesse histórico pelo alargamento dos espaços da visão do mundo – tabus ao que parece protagonizados pelos povos que, viu-se bem, os pretendiam e continuam a pretender, embora em acção de aparência nobremente auxiliar, de repente esses tais suaves tabus parecem esvair-se, em novas arremetidas de ocupação sem esforço, para nossa surpresa jamais esmorecida – então como agora - e que não embarcou no cinismo desses conceitos de amistosidade que fez época, mas que os que a expunham nobremente, digo, a tal amistosidade protectora dos africanos – (sobretudo, mas não só, está visto) – recebeu, de repente, esta proposta de “compra” de um território passível de “venda”, negócio referido no texto que segue – de Madalena Moreira, e comentado com pertinência por alguns comentadores cépticos. O império das massas, é a proposta dos nossos tempos, está visto, provam-no as negociatas desses actuais negociantes de fraudulenta astúcia sem pejo dos Trumps da nossa era.

Donald Trump quer comprar a Gronelândia. Como se compraram países ao longo da História?

Mais de metade dos Estados Unidos foram comprados a outros países. Bélgica comprou o Congo, Alemanha parte de Angola. Mas o Direito Internacional do século XX matou a compra de territórios soberanos.

MADALENA MOREIRA: Texto

OBSERVADOR, 08 jan. 2025, 16:204

Índice

Reis, diplomatas e escravos. Quem já comprou e (arrendou) territórios a nações soberanas?

Estados Unidos. Do “negócio imobiliário da História” à compra das Filipinas

A “propriedade” do século XIX  vs.  a “soberania” e “autodeterminação” do século XXI

A “impressão” do passado e o “modelo de imobiliário” que Trump quer impor na Gronelândia

O que têm em comum Alasca, Flórida, Louisiana, Arizona e Novo México? Todos foram comprados pelos Estados Unidos a outros países. Na verdade, mais de metade do território norte-americano foi adquirido através de transações monetárias com outros países. Porém, a última vez que isso aconteceu foi em 1917, quando Washington comprou as Ilhas Virgens à Dinamarca, em plena I Guerra Mundial.

Mais de cem anos depois, o Presidente-eleito Donald Trump quer fazer um novo negócio com Copenhaga: a compra da Gronelândia. O republicano já pôs o tema em cima da mesa uma e outra vez — durante o seu primeiro mandato, após a sua eleição e novamente esta terça-feira, dias antes tomar posse — e classifica-o como um negócio proveitoso. A História dos Estados Unidos mostra que há longos precedentes para a compra de territórios.

Mas os Estados Unidos não foram os únicos a construir um império através destes negócios — vários países europeus também compraram e venderam territórios. Porém, há uma diferença crucial. Os negócios levados a cabo pela Europa aconteciam nas suas suas províncias ultramarinas, nas colónias. O fim do colonialismo, no século XX, é, portanto, o grande responsável pela compra e venda de territórios soberanos ter caído em desuso.

O mundo de 1917 não é o mundo de 2024, mas rejeitar a compra da Gronelândia como uma ideia absurda é ahistórico [desprovido de contexto histórico]”, argumentou o historiador Steven Press num artigo publicado no dia 1 de janeiro deste ano. Seguindo o conselho de Press, é preciso olhar para o passado para perceber onde surgiu a ideia de “comprar um país” e qual a sua exequibilidade no futuro.

Reis, diplomatas e escravos. Quem já comprou e (arrendou) territórios a nações soberanas?

A compra de territórios soberanos repete-se ao longo da História, do Império Romano, à Idade Média, até ao século passado. Contudo, em milhares de anos não há um único exemplo de um país inteiro ter sido comprado. “A questão chave não é a compra de territórios soberanos, mas a compra de territórios a nações soberanas. Disto, há muitos exemplos”, explica ao Observador Richard Drayton, professor de História Imperial e Global na King’s College.

Apesar da quantidade, os exemplos mais famosos estão concentrados na passagem do século XIX para o século XX. O primeiro é o caso do Estado Livre do Congo, que existiu entre 1885 e 1908. Ao contrário dos restantes países africanos, que eram administrados como colónias europeias, o Congo era “uma posse privada” do Rei Leopoldo II da Bélgica. Isto quer dizer que o monarca era o único beneficiário de tudo o que era produzido no Congo. A administração directa do território era feita por um grupo de investidores europeus.

Popular caricatura do início do século XX que mostra um Rei Leopoldo II como uma serpente a sufocar um congolês Universal Images Group via Getty

O Estado Livre do Congo ficou marcado pelos abusos, exploração e violações flagrantes de Direitos Humanos que eram impostas pelos colonos às populações congolesas, obrigadas a trabalhar nos campos de borracha e nas minas de metas preciosos. Os historiadores olham para o Congo como a primeira crise humanitária que o Ocidente se propôs a resolver. A solução foi uma “compra forçada”, classificam os especialistas em Direito, Joseph Blocher e Mitu Gulati. A administração do Congo passou para o governo da Bélgica, depois de um pagamento de 50 milhões de francos ao Rei, como “gratidão pelos seus grandes sacrifícios feitos pelo Congo”.

Outro caso, anterior a este, é o da independência do Haiti, uma antiga colónia francesa. Depois de uma revolução de escravos contra os colonos, o país da América Central tornou-se, em 1804, o primeiro país do mundo a ser libertado e liderado por pessoas que tinham sido escravizadas. Contudo, o país enfrentou um bloqueio internacional, levado a cabo pelos aliados de França. Como forma de levantar o bloqueio, os novos líderes haitianos tiveram de “comprar a independência” do país, pagando uma “indemnização” de 150 milhões de francos aos franceses que os tinham escravizado. “Foi o maior roubo da História”, considerou a historiadora Marlene Daut.

Portugal não é alheio a estes negócios. Em 1889, Portugal assinou um acordo com a Alemanha e Inglaterra sobre a posse de territórios em Angola e Moçambique, respectivamente. As duas potências tinham territórios ultramarinos próximos das colónias portuguesas e, portanto, interesse em expandir a sua influência na região. Na prática, Berlim e Londres fizeram um empréstimo a Portugal, em troca da abertura de “esferas de influência” nos dois países africanos. O pagamento também lhes garantia que, caso Lisboa não conseguisse governar os territórios, Alemanha e Inglaterra podiam “assumir responsabilidades”.

Hong Kong esteve "arrendado" ao Reino Unido durante 99 anos, um dos casos mais famosos JEROME FAVRE/EPA

Do outro lado do mundo, também há registos de negócios com territórios soberanos que envolvem, principalmente, a China. Entre 1897 e 1914, a China “arrendou” a baía de Kiaochow à Alemanha, que funcionava, na prática, como uma colónia do chanceler Bismarck. No ano seguinte, Pequim assinou um novo contrato de “arrendamento”, desta vez com o Reino Unido, sobre Hong Kong. O contrato formalizava a ocupação britânica na província por um período de 99 anos — que terminou em 1997. Contudo, não são conhecidos os valores para nenhuma destas duas transações.

Estados Unidos. Do “negócio imobiliário da História” à compra das Filipinas

Tal como o professor Richard Drayton notou, “há muitos exemplos”. “Em particular na história de expansão dos Estados Unidos”, acrescenta o especialista. Falar sobre a compra de territórios sem falar sobre os Estados Unidos é impossível, até porque o país esteve envolvido em alguns dos negócios mais famosos da História.

Um destes casos é a Louisiana Purchase, em 1803. Os arquivos nacionais norte-americanos descrevem esta compra como “o maior negócio imobiliário da História“, uma vez que incluiu todo o território entre o rio Mississippi e as montanhas Rochosas, por 15 milhões de dólares. Hoje, este valor chega aos 340 milhões e estende-se por 15 estados diferentes. O território foi comprado a França, liderada à altura por Napoleão Bonaparte.

Mapa de 1803, que mostra os limites da Louisiana Purchase HUM Images/Universal Images Grou

Nos anos seguintes, os negócios repetiram-se com outros países. A Flórida foi comprada a Espanha por 5 milhões, o Novo México e o Arizona ao México por 10 milhões e o Alasca à Rússia por 7,2 milhões. Em 1898, os Estados Unidos realizaram outro dos negócios mais famosos da História, ao comprar as Filipinas, Guam e Porto Rico a Espanha por 20 milhões de dólares.

Enquanto Guam e Porto Rico se mantêm, até hoje, como territórios dos Estados Unidos, as Filipinas não reconheceram a legitimidade da transação, revoltaram-se contra as forças norte-americanas e desencadearam uma guerra pela independência que durou três anos. Contudo, Washington só reconheceu a independência das Filipinas muitos anos depois, em 1946.

Foi já no século XX que os Estados Unidos compraram um território estrangeiro pela última vez, quando adquiriram as Ilhas Virgens por 25 milhões de dólares (o que hoje corresponderia a mais de 500 milhões). Desde aí, mudanças nas fronteiras e nos territórios foram feitos através de acordos políticos e não de transações monetárias.

"A compra de soberania foi um veículo primário para a expansão norte-americana."

Historiador norte-americano Steven Press, em 2017

Joseph Blocher, professor na Duke Law School, sublinha ao Observador que o “tanto o poder de adquirir novos territórios como de criar novos estados” pertence ao Congresso. Para além das questões políticas, de aumento do território dos Estados Unidos, muitas destas transações tiveram motivações financeiras, principalmente para os países que os venderam.

Napoleão utilizou os fundos da venda do Louisiana para financiar as suas campanhas expansionistas na Europa. O México tinha acabado de sair de uma guerra com os Estados Unidos e encontrava-se em crise económica. A Rússia tinha estado igualmente envolvida em conflitos, em particular na guerra da Crimeia.

Os Estados Unidos souberam aproveitar estas motivações para comprar territórios.

“A compra de soberania foi um veículo primário para a expansão norte-americana”, resumiu o historiador Steven Press em 2017. Então, porque é que isto deixou de acontecer? A resposta está na palavra “soberania”, utilizada por Press. E nas diferenças entre este termo e “propriedade”.

A “propriedade” do século XIX vs. a “soberania” e “autodeterminação” do século XXI

No verão de 2012, a Forbes publicou um artigo sobre “os países que os milionários podem comprar”. A revista norte-americana utilizava como preço de venda de um país o seu Produto Interno Bruto (PIB) e como orçamento de cada comprador a sua riqueza: se um indivíduo tivesse uma fortuna maior que o PIB de um país, podia comprá-lo.

Este exercício hipotético choca de frente com a diferenças legais entre propriedade e soberania. Propriedade pertence ao Direito civil ou privado”, “soberania é um conceito do Direito político ou público”, definiu em 1927 o jurista norte-americano Morris Cohen, utilizado até hoje como referência para este debate. Propriedade remete para a esfera privada, para a capacidade de cada indivíduo adquirir um terreno — ou uma ilha inteira se tiver fundos para tal e como é possível fazer hoje em dia. Todos os exemplos históricos da compra de território a nações soberanas punham em prática este princípio.

"A ideia de um 'mercado' explícito para territórios soberanos caiu em desgraça há muito tempo. Parte da razão para isto é um aumento da apreciação pela 'autodeterminação' ou o direito de um povo decidir o seu destino independentemente daquilo que os seus líderes políticos possam escolher para eles." Joseph Blocher, professor de Direito na Duke Law School

A “impressão” do passado e o “modelo de imobiliário” que Trump quer impor na Gronelândia

Com a evolução do Direito, desenhou-se um novo enquadramento para olhar para as relações internacionais e o desenho de fronteiras, que privilegia a soberania. “A ideia de um ‘mercado’ explícito para territórios soberanos caiu em desgraça há muito tempo”, declara o professor Joseph Blocher ao Observador. “Parte da razão para isto é um aumento da apreciação pela ‘autodeterminação’ ou o direito de um povo decidir o seu destino independentemente daquilo que os seus líderes políticos possam escolher para eles”, acrescenta o especialista em Direito.

O princípio da autodeterminação opõe-se, portanto, à colonização que marca muitos dos exemplos históricos. Os congoleses não foram consultados sobre a sua venda do Rei ao governo da Bélgica, os filipinos opuseram-se de tal forma à sua venda de Espanha aos Estados Unidos que começaram uma revolução pela independência e os haitianos pagaram pelo seu país, porque era o preço da sua liberdade económica e sobrevivência.”Os habitantes das terras compradas [eram tratados] como peões. Estes acordos eram feitos sem o consentimento popular e por vezes envolviam coacção“, resumiu Steven Press no seu artigo deste ano.

Os especialistas sublinham a crescente preocupação com Direitos Humanos no século XX para o fim dos "negócios" Getty Images

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Reis, diplomatas e escravos. Quem já comprou e (arrendou) territórios a nações soberanas?

Estados Unidos. Do “negócio imobiliário da História” à compra das Filipinas

A “propriedade” do século XIX  vs. a “soberania” e “autodeterminação” do século XXI

A “impressão” do passado e o “modelo de imobiliário” que Trump quer impor na Gronelândia

O historiador norte-americano Daniel Immerwahr aponta como ponto de viragem o início do século XX e a ideia de que as fronteiras estavam acabadas — ou seja, o mapa estava estático.Isso era outra forma de dizer que a expansão territorial devia ser feita à custa de outros impérios e não à custa dos povos indígenas”, considerou o professor na Northwestern University , ouvido pelo New York Times.

Ao Observador, Joseph Blocher argumenta que as fronteiras continuam a mudar, mas a forma como isto acontece é que mudou. Ou seja, há territórios que, até hoje, são contestados, o que desencadeia confrontos, referendos e acordos políticos. Mas o Direito Internacional dita que se priorize a vontade dos povos que aí vivem e não os limites das fronteiras. E que não se recorra a negócios para resolver estas disputas territoriais.

A “impressão” do passado e o “modelo de imobiliário” que Trump quer impor na Gronelândia

Aplicando os precedentes históricos e os princípios históricos ao caso da Gronelândia é possível tirar duas conclusões: os Estados Unidos não podem comprar o território da Dinamarca. Mas isso não quer dizer que a hipótese da Gronelândia ficar sob administração norte-americana seja impossível.

A principal crítica que os especialistas fazem às declarações sucessivas de Donald Trump não é ao seu interesse pela Gronelândia, mas sim à narrativa comercial que tem promovido. “Trump parece estar sob a impressão de que as compras soberanas funcionam como funcionavam nos anos de 1800“, escreveram Blocher e Gulati em 2019, justificando a mentalidade antiquada do Presidente eleito com o seu currículo como empresário do ramo imobiliário.

"Sob as regras antigas, as nações podiam essencialmente tratar o seu território soberano como uma propriedade; o modelo imobiliário de Trump teria sido bastante apropriado." Joseph Blocher e Mita Gulati, professores de Direito, em 2019

 “Sob as regras antigas, as nações podiam essencialmente tratar o seu território soberano como uma propriedade; o modelo imobiliário de Trump teria sido bastante apropriado”, argumentam.

Ainda assim, consideram que é possível aplicar o princípio moderno da autodeterminação ao caso. Como? Através de um referendo na Gronelândia para a sua independência. Se os gronelandeses escolhessem tornar-se totalmente independentes da Dinamarca também podiam decidir, posteriormente, integrar-se em acordos políticos ou comerciais com os Estados Unidos e escolher até onde desejam aprofundar essa relação.

O professor Richard Drayton coloca em cima da mesa uma outra possibilidade, que põe em acção actores não-estatais. “Não temos tido muitos exemplos recentes de Estados que compram território uns aos outros. Mas temos muitos exemplos de actores não-estatais, como empresas, que compram enclaves de terra“, elabora ao Observador. Em paralelo, empresas norte-americanas podem deslocar-se para a Gronelândia para perseguir os interesses que Washington tem na região.

Contudo, o exemplo que Drayton apresenta — de uma empresa sul-coreana em Madagáscar— nunca avançou e foi profundamente criticado pelos habitantes locais, pelos traços “neocolonialistas” do negócio. Tal como resumiram Blocher e Gulati: “Se a conversa sobre a venda de territórios soberanos vai recomeçar alguma vez, temos de começar por nos focar nos vendedores relevantes — o povo”.

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COMENTÁRIOS:
André Ondine: Pergunto-me o que dirão as pessoas que por aqui diziam que o Trump era bem-vindo de novo. O Canal do Panamá, o Canadá, a Gronelândia. Já não bastava o alucinado Putin com o revivalismo imperialismo, agora temos a dupla maluca Trump / Musk que quer a América a comprar / conquistar territórios / países autónomos. É uma loucura voltarmos a estes tempos sombrios desta gente com a mania que é ditador ou imperador com manias de grandeza. E também julgo que o Trump enviar aquele filho sinistro à Gronelândia em missão de reconhecimento é um sinal da loucura do senhor. Quer ser Czar, não? Agora também vamos ter que levar com a família Trump... Os novos tempos são preocupantes. Trump, Putin....e por aqui temos a nossa versão caseira, ora Ventura, ora Mortágua, ora Tavares, ora "Pedro Nuno", tudo extremistas que meto no mesmo saco pois estão todos a olhar para o umbigo, todos um poço de irrazoabilidade e nunca a pensar no país e nos cidadãos. Os novos tempos parecem demover estadistas e promover narcisistas irresponsáveis. Nós por cá temos muitos. Na política e no comentário político. É a tal bolha a mandar nisto tudo. Por mim, era chamar às Berlengas a Bolha Berlengas, mandar para lá a mata da bolha, capitaneados pelo mestre Marques Lopes e deixá-los lá uns anos a peixe, pão e água enquanto nós refazíamos o mal que eles nos têm feito...         Novo Assinante: Já enviei email ao senhor presidente do Júlio de Matos a pedir quer internem lá o Trampa. Aguardo resposta.                        Nuno Borges: O Canadá e a Gronelândia não passam dumas jeiras de terra gelada. Valem pouco.                    Nuno Borges: Já o PS está-se kagando para o direito internacional.

 

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