”Perdoai-nos as nossas ofensas,
assim como nós perdoamos a quem nos tenha ofendido…” é prova de que
o dom do perdão humano é oferecido em troca do perdão de Deus, o que nos
superioriza mesmo, em relação a Deus, na comparação estabelecida. Nada se faz
de graça, é o que é. Mas o esquecimento da ofensa é outro dom precioso, que só
o Tempo vem a banalizar. (Quem pode perdoar a monstruosidade da guerra
putiniana, tal como a hitleriana, no cinismo estrondoso dos seus perpetradores? Só o tempo, que traz o esquecimento, o poderá fazer, a séculos de distância,
desaparecidos os efeitos e as vítimas disso). O pedido de perdão é, geralmente,
automático, por vezes mesmo após um arroto involuntário, e não carece de resposta.
Arrotos, arrotos, perdões à parte. A astúcia do “roseau pensant” é obra.
As mãos e as sombras do perdão
O perdão não é um dever, mas um dom e, como tal, é oferecido e
pedido em troca de coisa nenhuma. Oferecemo-lo e pedimo-lo precisamente porque
sabemos que nada poderá compensar o mal, a ofensa.
OBSERVADOR, 05 jan. 2025, 00:1910
Moby Dick é
uma das mais importantes narrativas modernas. O título enfatiza a baleia
branca e poderia até parecer que o seu verdadeiro ponto focal – Ahab, o capitão
do Pequod, obcecado por vingança – se encontra na penumbra quando, na verdade, a obra de Melville é uma meditação sobre o perdão impossível, sobre a
incapacidade de perdoar. O
que nos poderia levar a concluir que um corpo é vulnerável não apenas por poder
ferir e ser ferido, mas também por não conseguir esquecer a ferida que, de tão
intensa, exige ser vingada, encontrar o responsável para marcá-lo na sua pele,
destruí-lo e exterminá-lo. Mas será
realmente assim?
A sombra do capitão Ahab é muito
longa e todos nós já a sentimos nalgum momento: o facto de, atravessando a última
noite do ano, à
terna recordação de 365 dias que nos foram oferecidos, preferirmos petulantes
resoluções de Ano Novo, melancolicamente cuspidas contra o rosto do tempo,
confirma que cada um de nós persegue, na sua vida, a sua própria Moby Dick.
Curiosamente, a filosofia
concentrou-se muito mais vezes no perdão do que no seu reverso, o seu malévolo
e terrível duplo – a vingança. As cicatrizes são por vezes tão profundas
que apenas o perdão poderia evitar um novo sangramento. No entanto,
o perdão nem
sempre consegue fazer com que as cicatrizes permaneçam fechadas. Por
vezes, elas voltam a abrir, supuram e lá surge a vingança com o seu infernal
rosto. É justamente porque é
vulnerável que um corpo tem de perdoar.
Talvez até precise de fazê-lo para desfazer aquilo que fez, para
desfazer tudo quanto as suas palavras e acções provocaram.
O perdão, contudo, não é um dever,
mas um dom e, como tal, é oferecido e pedido em troca de coisa nenhuma. Oferecemo-lo
e pedimo-lo precisamente porque sabemos que nada, absolutamente nada, poderá compensar o
mal, a ofensa. Sabemos que as cicatrizes daquela ferida jamais
desaparecerão e, não
obstante tudo quanto perdoamos, queremos perdoar, e apesar de tudo por que
pedimos perdão, queremos que nos perdoem. Porquê?
Talvez não exista uma resposta. Talvez o façamos para podermos continuar
a viver. Talvez perdoemos por nós mesmos e não pelo outro. Por vezes
pensamos que não, que não há razão para perdoar, que o perdão não tem razão de
ser, que é uma contradição. Pode até dizer-se que é um absurdo.
Como destacou Jacques
Derrida, é esse precisamente o grande
paradoxo do perdão: faz sentido
porque existe qualquer coisa de imperdoável, porque apenas um acto imperdoável
pode ser objecto de perdão. Se se perdoa algo que é perdoável, o perdão
desaparece, dilui-se como açúcar em água quente. O
paradoxo do perdão é este: o único espaço
onde ele pode surgir é precisamente aquele onde o perdão é absurdo, onde ele
não faz sentido absolutamente nenhum.
Há um momento absolutamente
único, fundamental e irrepetível – aquele em que uma criança descobre a sua
própria sombra: descobre um outro eu, alguém que em segredo para sempre a
acompanhará. Esse alguém habitará os seus pensamentos e os seus
desejos mais íntimos, é o seu oculto duplo, a sua dimensão proscrita. Em Peter
Pan, o
romance de J. M. Barrie, o
rapaz voador regressa a Londres em busca da sombra que tinha perdido, porque é
ela que o vincula à ilha de onde vem; e, por intermédio dela, à infância, com
todas as suas fantasias e loucuras. Nessa sombra reside a sua vitalidade, mas também tudo quanto de
caótico e destrutivo existe. Freud, Nietzsche e Jung exploraram imenso esse eterno conflito por apaziguar entre sombra e razão, e
concluíram que jamais seria possível
um desenvolvimento completo da personalidade sem uma harmonização entre ambas.
Adelbert von Chamisso escreveu no
início do século XIX A Maravilhosa História de Peter Schlemihl. Nela,
um homem, para ficar rico, vende ao medo uma parte da sua humanidade: a sua sombra. Poderia ser uma alegoria destes nossos
tempos, em que também por medo (medo do que somos, do nosso verdadeiro ser, das suas eternas
questões e do seu poder criativo) evitamos tudo quanto nos perturba
ou inquieta, para nos refugiarmos no cálido ninho das nossas comodidades. O
romance de Chamisso conheceu um
sucesso extraordinário e muitos outros autores recriaram depois dele essa
estranha história. Hoffman
transformou a sombra na imagem reflectida num espelho, e Théophile
Gautier conta a
história de um jovem romântico que enlouquece quando perde essa imagem.
Em A Sombra, de H. C. Andersen, e O Pescador e a sua Alma, de Oscar Wilde, são as sombras que acabam por escravizar e
transformar os seus atribulados donos em reflexos. Também Drácula fala dessa primazia da sombra sobre a razão,
pois, se é perigoso alguém perder a sua sombra, não menos perigoso é ela
adquirir um tal poder sobre ele que acaba por sujeitá-lo à obscura lei dos seus
caprichos. A sombra concretiza, em todas estas histórias, a parte
primitiva e instintiva do homem.
É o seu duplo negativo, mas também a fonte de vitalidade e, de certa
forma, da sua saúde intelectual. É ela que
nos ensina a tolerar ambiguidades e nos afasta dos perigos que acossam o homem
integrado: a rigidez de pensamento, o
dogmatismo, o fundamentalismo, os preconceitos ou a banalidade.
Yasunari Kawabata tem um conto chamado A Mãe que Sabia Ler. Os seus protagonistas são uma mãe e um
filho. O filho é louco e passa
os seus dias trancado num quarto rodeado de resmas e resmas de papel,
escrevendo incansavelmente. Mas apenas imagina que o faz, porque as páginas
continuam sempre em branco. Quando a sua mãe chega ao final do dia, ele
pede-lhe que leia o que escreveu, e ela, comovida com a alienação do filho,
começa a inventar. Conta-lhe
então as memórias da sua infância, as histórias da sua juventude, levando o
filho a pensar ter sido ele a escrevê-las. A mãe recorda coisas que havia esquecido, e o seu amor fá-lo pensar
que é ele, o seu filho, quem a faz dizê-las, e deste modo as almas de ambos se
fundem numa só. Mas não será o amor essa doce batalha entre
nós e as nossas próprias sombras?
Octavio Paz gostava de
recordar uma visita que fizera a uma
pequena escola de uma aldeia asturiana. As crianças, que andariam pelos seis anos, tinham lido uma história
chamada O Pacto da Floresta, na qual uma loba, depois de ser salva
por alguns coelhos, lhes promete que nunca mais, naquela floresta, os lobos os
atacarão. A professora, depois de explicar pacientemente às crianças o
significado da palavra pacto, pediu-lhes que fizessem um
desenho explicando com quem ou com quê fariam um pacto. As respostas foram, no
geral, tão previsíveis quanto costumam ser as de crianças que desejam obter a
aprovação do adulto: uma criança desenhou e descreveu um pacto para que os
animais não tivessem de morrer; uma outra, um pacto com a natureza que os
homens estavam a destruir; outra ainda, um pacto para que as crianças pobres
pudessem ir à escola. Mas havia, naquele grupo, uma menina que nascera
sem os dedos de uma das mãos e cujo desenho respondia a uma lógica muito mais
pessoal. No seu desenho, podiam ver-se as duas mãos, a boa e a imperfeita, em
ambos os lados de um caderno aberto. Por cima, ela escrevera: “O pacto que as
minhas duas mãos fizeram”. E no caderno, entre as mãos, podia-se ler: “Amo-te”.
Duas mãozitas que fazem um pacto: uma
boa – com os seus cinco dedos – e outra estranha – a sua sombra. Talvez seja isso o amor e o perdão:
tropeçarmos em alguém que desde sempre transporta em si algo que apenas nós
podemos escutar.
Afinal, caro Ahab, um corpo vulnerável
(de vulnus, ferida) não
pode existir, não pode reinventar-se, senão na compaixão e no consolo, na
contingência, na vergonha e no perdão.
COMENTÁRIOS:
Meio Vazio: Sempre
bom. Desta vez ao domingo. Guterres o chocado PCdoZ: Somos humanos não somos
Deuses. O perdão é para os Deuses ou deuses se preferirem.
Paulo Matta: Caro Professor Um texto excelente, desafiante,
pedagógico, culto! Como escrevi há pouco num outro comentário a um grande texto
de outro autor neste Observador de hoje, cada vez mais as “páginas” do
Observador são um bálsamo raro num universo de comunicação social absolutamente
latrinária… as únicas em que pode encontrar-se textos escritos em português
escorreito, com temas fundamentais para a reflexão do Humano contemporâneo!
Parabéns e muito obrigado carlos
coelho: Obrigado Francisco Almeida: Belíssimo texto. Carminda Damiao: Muito bom. Por aqui: Excelente texto João Dias: Uma sábia e excelente reflexão para entrar num
novo ano. Obrigado
José Carvalho: Um excelente texto que expõe parte das nossas contradições humanas que
mesmo sendo características contraditórias são importantes na constituição do
nosso ser. Sombra e Luz sempre juntas e apoiando-se uma na outra. Como diz o
texto: A sombra concretiza, em todas estas
histórias, a parte primitiva e instintiva do homem. É o seu duplo negativo, mas
também a fonte de vitalidade e, de certa forma, da sua saúde intelectual. Um
bom ano de 2025 ao Dr Paulo Ramos e que continue a iluminarmos com os seus
textos de reflexão. Pobre
Portugal: "estes nossos tempos, em que também por medo (medo do que somos, do
nosso verdadeiro ser, das suas eternas questões e do seu poder criativo)
evitamos tudo quanto nos perturba ou inquieta" Subscrevo. Maria Paula Silva: Somos todos feitos de Luz e
sombra e é a sombra que nos lixa e não o contrário. O homem integrado é aquele
onde a Luz / Consciência domina a sombra e as emoções mais sombrias. Não
acredito que daí advenha a rigidez de pensamento, o dogmatismo, o
fundamentalismo, os preconceitos ou a banalidade, antes pelo contrário. É no
homem integrado que podemos encontrar a mente sobrepondo-se às emoções mais
básicas dominando-as ou transformando-as, um entendimento mais abrangente da
realidade, uma consciência mais desprendida e virada para o colectivo e o bem
comum, o desapego, a compaixão e, por conseguinte, a capacidade genuinamente
altruísta do Perdão. O homem básico, consciencialmente ainda pre-histórico (a
maioria) é incapaz de perdoar. E sim, o
Perdão é um dom, pois se for feito apenas por dever e não vier do coração e com
a consciência do que deve ser perdoado, não é perdão. O Perdão também nos transforma.
Um BOM 2025!
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