segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

O ponto a que se chegou


De indigência espiritual, na desvalorização dos cursos universitários, como o texto de  MIGUEL TAMEN demonstra, as faculdades superiores distintas na especificidade do seu próprio conteúdo profissional – medicina, direito e teologia - todas as demais banalizadas, como faculdades inferiores, pela desvalorização dos seus conteúdos específicos, no seu intuito docente generalizado. Julgo que a Engenharia, todavia, também pertence aos cursos superiores valorizáveis, embora, por vezes os engenheiros se limitem à docência em Matemática, as profissões livres exigindo um capital próprio, nem sempre compatível com a situação pecuniária, necessitada, a maioria dos formados, do apoio estatal e ingressando na via do ensino, menos sujeito ao escrutínio público, e dependente, a sua realização, da consciência e responsabilidade pessoais.

O Mistério da Educação (XX)

 A profissão de investigador mostra que a diferença entre faculdades que Kant tinha notado já quase não existe.

MIGUEL TAMEN, Colunista do OBSERVADOR, Professor (e director do Programa em Teoria da Literatura) na Universidade de Lisboa

OBSERVADOR, 26 jan. 2025, 00:154

O filósofo prussiano Immanuel Kant (1724-1804) reparou que na sua universidade havia duas espécies de faculdades: as várias em que se ensinava uma profissão (como direito, medicina e teologia) e uma outra em que se ensinavam coisas independentes do exercício de uma profissão (a que chamava faculdade de filosofia, e onde havia geografia, história, literatura, matemática, filosofia, física, linguística, e as ciências da natureza).  Com malícia bávara deu ao primeiro tipo de faculdades o nome de ‘faculdades superiores’; ao segundo, de ‘faculdade inferior.’

Por motivos prussianos, no entanto, Kant achava que o Estado tinha deveres para com as faculdades superiores; e que, no melhor interesse do público, devia regulamentar o modo como um médico ou um advogado ou padre fazem o que devem fazer. Mas defendia também que ter aprendido filosofia ou biologia não é uma profissão; que não há vantagens em regulamentar a faculdade inferior; que o dano público do mau exercício da biologia ou da filosofia é negligenciável; e que pelo menos os filósofos conseguem sempre detectar os falsos filósofos, os não-juristas, ou os pseudo-biólogos.

As coisas mudaram muito desde essa altura. A maior parte das universidades continua a ter escolas de medicina e de direito, mas deixou de ter escolas de teologia; e passou a ter escolas de gestão, de arquitectura, de educação, e de engenharia. São elas as actuais faculdades superiores. A novidade maior é porém que na faculdade inferior quase toda a gente passou também a reclamar a sua relação com profissões. Deplora-se os estudantes de biologia que entregam flores ou compram criptomoedas, e os alunos de filosofia que criam vacas ou tocam bateria, porque se acha que quem aprende biologia ou filosofia já tem por natureza uma profissão, e não precisa de arranjar outra.

À profissão natural a quem passou por uma faculdade inferior chama-se em Portugal investigação. Como a investigação é uma profissão, todas as discussões sobre investigação são discussões sobre o modo como o Estado deve regulamentar, sustentar, e premiar as pessoas que aprenderam coisas na faculdade inferior, e que resistem à vida fácil de quem entrega flores ou cria vacas. A profissão de investigador mostra que a diferença entre faculdades que Kant tinha notado já quase não existe. Com efeito, chama-se hoje crescentemente profissão ao resultado de se ter passado por uma universidade, seja qual for a faculdade.

A grande ambição dos investigadores, porque acham que são profissionais, é a de terem as suas profissões regulamentadas pelo Estado; e a grande ambição das universidades, porque acham que servem para formar profissionais, incluindo investigadores, é a de que o Estado regulamente as universidades. Investigadores e universidades têm em comum a esperança, que as ordens profissionais aplaudem com facúndia característica, de que o estado os possa ajudar na tarefa desesperadamente pública de distinguir um biólogo, um jurista, um médico ou um filósofo de um aldrabão de feira.

 

Nenhum comentário: