De indigência espiritual, na desvalorização dos cursos universitários,
como o texto de MIGUEL TAMEN
demonstra, as faculdades superiores distintas na
especificidade do seu próprio conteúdo profissional – medicina,
direito e teologia - todas as demais banalizadas, como faculdades inferiores, pela desvalorização
dos seus conteúdos específicos, no seu intuito docente generalizado. Julgo que
a Engenharia, todavia, também
pertence aos cursos superiores valorizáveis, embora, por vezes os engenheiros
se limitem à docência em Matemática, as profissões livres exigindo um capital
próprio, nem sempre compatível com a situação pecuniária, necessitada, a
maioria dos formados, do apoio estatal e ingressando na via do ensino, menos
sujeito ao escrutínio público, e dependente, a sua realização, da consciência e
responsabilidade pessoais.
O Mistério da Educação (XX)
A profissão de investigador mostra que a
diferença entre faculdades que Kant tinha notado já quase não existe.
MIGUEL TAMEN, Colunista do
OBSERVADOR, Professor (e director do Programa em Teoria da Literatura) na
Universidade de Lisboa
OBSERVADOR, 26 jan. 2025, 00:154
O filósofo prussiano Immanuel Kant (1724-1804) reparou que na sua
universidade havia duas espécies de faculdades: as várias
em que se ensinava uma profissão (como direito, medicina e teologia) e uma outra em que se ensinavam coisas
independentes do exercício de uma profissão (a que
chamava faculdade de filosofia, e onde havia geografia, história, literatura, matemática,
filosofia, física, linguística, e as ciências da natureza). Com malícia bávara deu ao
primeiro tipo de faculdades o nome de ‘faculdades superiores’; ao segundo, de
‘faculdade inferior.’
Por motivos prussianos, no
entanto, Kant achava que o Estado tinha deveres para com as faculdades
superiores; e que, no melhor interesse do público, devia
regulamentar o modo como um médico ou um advogado ou padre fazem o que devem
fazer. Mas
defendia também que ter aprendido filosofia ou biologia não é uma profissão;
que não há vantagens em regulamentar a faculdade inferior; que o dano público
do mau exercício da biologia ou da filosofia é negligenciável; e que pelo menos
os filósofos conseguem sempre detectar os falsos filósofos, os não-juristas, ou
os pseudo-biólogos.
As coisas mudaram muito desde
essa altura. A maior parte das universidades continua a ter escolas
de medicina e de direito, mas deixou de ter escolas de teologia; e passou a ter
escolas de gestão, de arquitectura, de educação, e de engenharia. São elas as actuais faculdades superiores. A
novidade maior é porém que na faculdade inferior quase toda a gente passou
também a reclamar a sua relação com profissões. Deplora-se os estudantes de biologia que
entregam flores ou compram criptomoedas, e os alunos de filosofia que criam
vacas ou tocam bateria, porque se acha que quem aprende biologia ou filosofia
já tem por natureza uma profissão, e não precisa de arranjar outra.
À profissão natural a quem passou por
uma faculdade inferior chama-se em Portugal investigação. Como a investigação é uma profissão,
todas as discussões sobre investigação são discussões sobre o modo como o
Estado deve regulamentar, sustentar, e premiar as pessoas que aprenderam coisas
na faculdade inferior, e que resistem à vida fácil de quem entrega flores ou
cria vacas. A profissão de investigador mostra que a diferença
entre faculdades que Kant tinha notado já quase não existe. Com efeito,
chama-se hoje crescentemente profissão ao resultado de se ter passado por uma
universidade, seja qual for a faculdade.
A
grande ambição dos investigadores, porque acham que são profissionais, é a de
terem as suas profissões regulamentadas pelo Estado; e a grande ambição das
universidades, porque acham que servem para formar profissionais, incluindo
investigadores, é a de que o Estado regulamente as universidades. Investigadores
e universidades têm em comum a esperança, que as
ordens profissionais aplaudem com facúndia característica, de que o estado os
possa ajudar na tarefa desesperadamente pública de distinguir um biólogo, um
jurista, um médico ou um filósofo de um aldrabão de feira.
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