quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Reflexões


De MARIA JOÃO AVILLEZ, sobre o meio século precedente, impregnadas talvez de saudosismo, talvez de preocupação. Na sua prosa expressiva e elegante de sempre, fruto de vivências e argúcias próprias, lidas com interesse e prazer, e provocando comentários evocativos enriquecedores.

Há mais vida para além dos candidatos a candidatos

Subitamente, um “a missa do dia seguinte na Capela  do Rato seria presidida pelo Cardeal Tolentino”. A passagem do ano transformou-se automaticamente, na antecipação de um inesperadíssimo reencontro.

MARIA JOÃO AVILLEZ, Jornalista, colunista do Observador

OBSERVADOR, 15 jan. 2025, 00:2318

1Vida era o que mais havia num texto do suplemento P2 de domingo 22 de Dezembro último: uma bem estruturada, vivíssima e muito interessante prosa de Cristina Ferreira onde se recordava, nos agora 50 anos da Confederação da Indústria Portuguesa, os seus extraordinários inícios. Se não conhecesse um bocadinho a matéria, diria, ao ler, que “fora impossível”, não podia “ser verdade”. Mas foi. Um texto onde, entre outros, António Vasco de Mello, Pedro Ferraz da Costa, José Morais Cabral nos levam pela mão, conduzidos pela Cristina, aos primeiros andamentos de vida da CIP. Uma saga: os tempos eram escaldantes, vivia-se com vertigem e perigo, o futuro era incerto. A cascada ritmada dos episódios recordadosa gestação da CIP, os seus fundadores-protagonistas, as facções militares, a criação do Jornal Novo, o embaixador Carlucci – oscilam entre o dramático e as tintas de um quase burlesco no que também é uma fina estampa da nossa invulgar forma de ser. Alguém que fizesse uma série de televisão tinha sucesso garantido.

E no entanto… é permitido algum amargo de boca: que é feito daquela capacidade de iniciativa, daquela tenacidade na dificuldade, daquela persistente indiferença perante os velhos do Restelo e os novíssimos revolucionários? Falar em “patrões” naquele tumulto? Arregimentá-los naquela agitação? Entregar-lhes um destino em plena revolução? Assim foi e por isso não se fica indiferente: amando o país, não tendo rancor ao dinheiro e não confundindo criadores de riqueza com “fascistas”, tomar-se-á boa nota daquela capacidade de resistência. Exactamente como nos orgulhamos dessa mesma fibra com outros actores, em outras difíceis marés.

Ao mesmo tempo que – segundo amargo de boca – se recorda ainda hoje e ainda com incredulidade, a pulverização do tecido industrial português, que nunca recuperou desde a fervura exacerbada de 1975.

Foi-me aliás constrangedor ler há tempos numa separata do Expresso que, das 1000 maiores empresas, as maiores justamente eram estrangeiras, ou comerciais, ou de serviços! A indústria? Não sei quantos degraus abaixo… Quase tudo – ou muito – arrasado com as nacionalizações de 1975, facto hoje ou negado ou esquecido: passou o tempo, não houve responsabilidades, ninguém aparentemente se importou muito.

Eu bem sei que a criação da CIP não é separável nem dos tempos, nem das circunstâncias do seu parto: nada iguala a adrenalina das revoluções, nem o ímpeto dos contra-revolucionários.

Mas se hoje não há revolução e felizmente há democracia, a ambição infelizmente esmorece: onde estão os grupos económicos de nível europeu com que o país contava em 1974?

2Foi no último dia do ano, ao cair da tarde. Subitamente, um aviso generoso do Padre António Martins, pároco da Capela do Rato: “a missa do dia seguinte seria presidida pelo Cardeal Tolentino.” A passagem do ano transformou-se, automaticamente e só, na antecipação de um inesperadíssimo reencontro, não (me) foi preciso mais.

Na manhã seguinte, houve vida: espiritual, intensa, profunda, fértil, partilhada. O assombroso verbo de Tolentino chegava-nos com a familiaridade de sempre vindo daquele altar onde ele oficiara durante anos e do qual revia agora amigos. Reencontrava a “SUA” comunidade, falava para uma das suas “famílias” mais próximas, propunha-lhe o desafio de um recomeço e não só o do ano. Para além do privilégio em estar naquela celebração, tornou-se muito clara a responsabilidade da “convocatória” para lá estar. E “lá” estar era fazer o maior caso da inspiradíssima dissertação de Tolentino sobre a mensagem do Papa para o dia primeiro de 2025, Dia Mundial da Paz. Acreditar não é de borla, é um caminho. Apesar de talvez “utópico”. Ou talvez por isso mesmo.

3Um derby revisto pela conjugalidade é uma experiência, digo-lhes eu que sei do que falo. Começou logo mal com o Benfica a jogar melhor e a caríssima cara-metade a irritar-se com o Sporting e ainda mais comigo. E acabou pior, com a vitória dos encarnados. No meio houve alguma paz alimentada pelo equilíbrio entre as duas equipas e aquele bocado de vida fervilhante (inigualável) fornecida por um grande jogo de futebol. O final, uma desgraça: “queres que eu me interesse por uma vitória por penalties…?”

Além de que não havia vivalma em casa: nem ao menos um filho que se tivesse condoído com tão periclitante situação, uma nora que passasse, um neto que tivesse aparecido para ver a bola, uma visita inesperada… Apenas dois seres humanos, a olhar com expectativas opostas e assanhadas para o mesmo écran de televisão, mas unidos, para o bem e para mal, pela conjugalidade.

Acabei sozinha na sala.

Viva o Benfica.

4Tanta vida em Eça. Um génio a declinar vidas e a pintar a natureza humana com palavras.

José Maria Eça de Queiroz foi agora em boa hora muito bem relembrado. A hora tardou, tardou demais, e até porventura não fora a determinação persistente, exigente e insistente de Afonso Reis Cabral – magnífico discurso! – e o país talvez jamais viesse a assistir à cerimónia de há dias no Panteão Nacional. Onde tudo esteve certo porque tudo foi belo e justo e sóbrio e solene. Portugal, é verdade, de vez em quando consola-nos.

5Quando era muito, muito pequena, a minha mãe levava-me ao andar de cima da nossa casa do Campo Grande. “Íamos visitar a avó Sofia”. Depois de ficar viúva de Thomas de Mello Breyner, Conde de Mafra, Sofia mudara-se para casa de uma das suas filhas, Teresa, minha avó. Onde ficou até morrer. Foi muito naturalmente que as minhas irmãs e eu crescemos a conhecer a vida – invulgar – e a história, talvez ímpar no seu tempo, do nosso bisavô Thomaz. Monárquico convicto – embora nunca hesitando na crítica aguda ou desapiedada a alguns monárquicos; médico pessoal do Rei D. Carlos de quem fora companheiro de infância e foi amigo íntimo pela vida fora; grande clínico dos hospitais civis (e percursor em doenças venéreas). Professor prestigiado de Ciências Médicas, era acima de tudo – se eu tivesse de resumir – um cidadão respeitadíssimo, um homem de carácter, um servidor. Inseparável de uma pena e cadernos de papel, escreveu incansavelmente, registando o que via e vivia, em diversos ”Diários” e “Memórias”. Fê-lo com minúcia, verve, ironia, retratando o seu Portugal muito amado a partir de postos de observação tão reais quanto a Monarquia, a República, os alvores do Estado Novo.

Há alguns anos a historiadora Margarida Magalhães Ramalho escreveu-lhe uma formidável biografia (“Thomaz Mello Breyner – Relatos de uma Época”, Imprensa Nacional).

Um livro onde a vida palpita e a história de Portugal transpira de cada página, numa felicíssima interligação entre vida e pátria, ciência e cultura, família e mundo, guerra e paz. Tudo isto veio agora a “desaguar” na RTP 2, através da adaptação para televisão – em três episódios – feita muito talentosamente pela própria Margarida, a partir da biografia que escreveu. Um feito… feito por uma grande equipa.

Mais interessante porém do que esta pequena nota que pode a um distraído parecer uma mera “coisa de família”, é que o que acima ficou pode ser fonte de inspiração, estímulo, exemplo. Vale sempre a pena escrever, vale sempre a pena deixar registo. É quase um serviço. Em Portugal não há o culto da memória nem costuma haver a vontade de deixar uma impressão em alguma coisa. É pena.

O “vivido” com assinatura não tem preço.

PS: Falei acima da Capela do Rato, volto a ela, merece mais notícia. Não é novidade: habituou-nos há muito ao seu modo sério, interventivo, presente, de estar e ser Igreja hoje, respondendo e correspondendo à chamada cristã. Volta agora a ser o caso: o curso “Filosofia, Literatura, e Espiritualidade”, (direcção científica da Professora Luísa Ribeiro Ferreira), começará em breve (2ªfeira, dia 20) online ou presencialmente, no espaço da Capela e será dedicado à “Amizade”. O tema – notável – viajará por alguns livros que o trataram em reflexão filosófica, ficção narrativa, poesia, reflexão teológica, espiritualidade. Não é dizer pouco mas é esperar muito. (O mesmo devem ter pensado D. Manuel Clemente, e o novo Bispo Alexandre Palma que aceitaram encerrar este curso.) Amizade? “Queremos agradecer as amizades entre participantes, conferencistas, autores e obras” explica o pároco da Capela, António Martins: “Celebrar a nossa amizade com os livros que nos ajudam a resistir interiormente, a libertarmos o pensamento e a interioridade da violência verbal do tempo presente.” A seguir absolutamente. Vida também é isto. Ou sobretudo isto.

COMENTÁRIOS (de 18)

Luis Silva: Bom artigo para adormecer ao fim de poucos parágrafos.                  Carlos Chaves: Cinjo-me só ao inicio da crónica, é espantoso a Maria João Avillez, vir falar sobre as dores do nascimento da CIP e do estado calamitoso da nossa indústria com origem nas criminosas nacionalizações e ocupações, durante o famigerado período revolucionário, quando um dos grandes responsáveis por tal situação foi o secretário geral do PS na altura, Mário Soares, que ela tanto endeusa! Interessante postura!                           Ruço Cascais > João Floriano: A MJA sofre de uma coisa chamada saudade de outras idades. Aqui em Cascais muita gente "velhos Conservadores", passe a redundância, tem saudades do antigo e demolido edifício Estoril Sol. Dizem: Velhos Conservadores: - aquele sim, era um edifício glamoroso. Fui lá a muitas festas e jantares. O ambiente era fantástico. A piscina com prancha de saltos era inigualável. A pala exterior de entrada era um monumento ao modernismo. Os carros, agora clássicos de luxo, cruzavam a entrada em exibições apenas comparáveis a Monte Carlo. Velhos tempos nada comparáveis ao que se passa hoje em dia, incluindo o novo edifico que parece um armazém de contentores empilhados uns nos outros. Existe uma tradução rápida, concisa e muito sumária para estes elogios aos tempos passados; ai que saudades que tenho de quando era nova/o. A Dona Maria João dizia no outro dia num Contracorrente (deve ter uma avença com o programa) que a política no século passado tinha outra honra, que os políticos tinham outra honra. Este saudosismo pelos políticos do século passado corresponde a dizer que tem saudades daqueles tempos quando era mais nova, porque, senão, vejamos: houve as FP's 25 em que andavam a assassinar; Mário Soares fez a vida negra a Cavaco Silva enquanto este era primeiro-ministro. Levaram o país 2x à bancarrota; desenharam as pensões vitalícias para os próprios; um presidente da república quis continuar na política após terminar o mandato e criou um partido político; etc, etc. A conclusão era que nem eram melhores nem mais honrados do que os de agora, era tudo a mesma coisa, para não dizer outra coisa. MJA sofre de um desenquadramento ou distúrbio social provocado pelas saudades de quando era mais nova; antigamente é que era bom! Daí, talvez se compreenda aquele exercício à Marques Mendes de nem ser peixe nem carne e continuar a ver socialistas e sociais democratas como um mesmo grupo com duas facções que divergem num ou noutro ponto.                   Francisco Almeida: Das nacionalizações de 1975, destaco a da Banca, tão "bem" conduzida por Cravinho que abrangeu desde pequenas pensões a barbearias (temporariamente na posse dos bancos por execução de dívidas). Mais importante - em termos de pessoas envolvidas e consequências políticas - do que a CIP, foi a formação da CAP. Extinta a Associação Central da Agricultura Portuguesa, qualquer reunião era denunciada ao MFA, COPCON ou simplesmente ao PCP-MDP/CDE e podia resultar em detenções e até agressões. Os agricultores tinham medo e desconfiavam de qualquer pessoa desconhecida que os abordasse. Foi um trabalho de formiga, longo e difícil e uma história que provavelmente nunca será contada. Começou com a ALA -Associação Livre de Agricultores, em Santarém, antes da CAP e nunca esteve ausente de risco. Na primeira manifestação da CAP, jem Santarém foi assassinado o filho de um grande agricultor de Coruche e ataque violentos e alguns espancamentos ocorreram em diversas localidades.Mas claro que não foi em Lisboa. Muito menos no Campo Grande.                      Rosa Silvestre: "onde estão os grupos económicos de nível europeu com que o país contava em 1974?" Resposta fácil: mataram-nos e nunca permitiram que renascessem.                 Alberico LopesRuço Cascais: Formidável comentário! Claro que a MJoão Avilez, agora que até se senta junto ao meio-irmão do mandarim, tem de dar uma de saudosista do seu querido mário soares, o tal das férias reais a pavonear-se em cima das tartarugas nas Seychelles ou a depositar pelas mãos do Melancia, as brutas comissões dos alemães pelas obras do aeroporto de Macau! Coitado do Rui Mateus que foi pura e simplesmente cilindrado do covil do largo das ratazanas. Ou do templo do Campo Grande, onde esse tal soares arrotava com as maiores iguarias e os melhores vinhos que mandava comprar por estafetas que ali eram colocados para servirem o rei que mais beneficiou com o tal 25Abril! Coitada da MJoão: já não há quem a consiga suportar! Nem eu que até há pouco tempo - desde que se mudou para a nova sede da Acção Socialista - a consigo ouvir! Nem ao m.mendes, claro dificilmente sairá.                   GateKeeper: MJA está e permanece, desde 2023, num limbo, do qual, eventualmente, muita dificilmente sairá. Nota-se bem a sua extrema dificuldade na sua adaptação mental aos novos "tempos de miséria", como os de 1974/1976. O mesmo sucede com outras e outros crooners do passado, ao não assumirem que o seu "tempo e modo" já não fazem parte integrante do nosso dia-a-dia. Elas e eles são meras recordações, enfim.


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