De MARIA JOÃO AVILLEZ, sobre o meio
século precedente, impregnadas talvez de saudosismo, talvez de preocupação. Na
sua prosa expressiva e elegante de sempre, fruto de vivências e argúcias
próprias, lidas com interesse e prazer, e provocando comentários evocativos enriquecedores.
Há mais vida para além dos candidatos a
candidatos
Subitamente, um “a missa do dia
seguinte na Capela do Rato seria
presidida pelo Cardeal Tolentino”. A passagem do ano transformou-se
automaticamente, na antecipação de um inesperadíssimo reencontro.
MARIA JOÃO AVILLEZ,
Jornalista, colunista do Observador
OBSERVADOR, 15
jan. 2025, 00:2318
1Vida era o que mais havia num texto do suplemento
P2 de domingo 22 de Dezembro último: uma bem estruturada, vivíssima e muito
interessante prosa de Cristina
Ferreira onde se recordava, nos agora 50 anos da Confederação da Indústria
Portuguesa, os seus extraordinários inícios. Se não conhecesse um bocadinho
a matéria, diria, ao ler, que “fora impossível”, não podia “ser verdade”. Mas
foi. Um texto onde, entre outros,
António Vasco de Mello, Pedro Ferraz da Costa, José Morais Cabral nos levam
pela mão, conduzidos pela Cristina, aos primeiros andamentos de vida da CIP.
Uma saga: os tempos eram escaldantes, vivia-se com vertigem e perigo, o
futuro era incerto. A cascada ritmada dos episódios recordados – a gestação da CIP, os seus
fundadores-protagonistas, as facções militares, a criação do Jornal Novo, o
embaixador Carlucci – oscilam entre o dramático e as tintas de um quase
burlesco no que também é uma fina estampa da nossa invulgar forma de ser.
Alguém que fizesse uma série de televisão tinha sucesso garantido.
E no entanto… é permitido
algum amargo de boca: que
é feito daquela capacidade de iniciativa, daquela tenacidade na dificuldade,
daquela persistente indiferença perante os velhos do Restelo e os novíssimos
revolucionários? Falar em “patrões” naquele tumulto? Arregimentá-los
naquela agitação? Entregar-lhes um destino em plena revolução? Assim foi e por
isso não se fica indiferente: amando o país, não tendo rancor ao dinheiro e não
confundindo criadores de riqueza com “fascistas”, tomar-se-á boa nota daquela
capacidade de resistência. Exactamente como nos orgulhamos dessa mesma fibra
com outros actores, em outras difíceis marés.
Ao mesmo tempo que – segundo
amargo de boca – se recorda ainda hoje e ainda com incredulidade, a
pulverização do tecido industrial português, que nunca recuperou desde a
fervura exacerbada de 1975.
Foi-me
aliás constrangedor ler há tempos numa separata do Expresso
que, das 1000 maiores empresas, as maiores justamente eram estrangeiras, ou
comerciais, ou de serviços! A indústria? Não sei quantos degraus abaixo…
Quase tudo – ou muito – arrasado com as nacionalizações de 1975, facto hoje ou
negado ou esquecido: passou o tempo, não houve responsabilidades, ninguém
aparentemente se importou muito.
Eu
bem sei que a criação da CIP não é separável nem dos tempos, nem das
circunstâncias do seu parto: nada iguala a adrenalina das revoluções, nem o
ímpeto dos contra-revolucionários.
Mas se hoje não há revolução e felizmente há democracia, a ambição
infelizmente esmorece: onde estão os grupos económicos de nível europeu com que
o país contava em 1974?
2Foi no último dia do ano, ao cair da
tarde. Subitamente, um aviso generoso do Padre António Martins, pároco da
Capela do Rato: “a missa do dia seguinte seria presidida pelo Cardeal
Tolentino.” A passagem do ano transformou-se, automaticamente e só, na
antecipação de um inesperadíssimo reencontro, não (me) foi preciso mais.
Na manhã seguinte, houve vida:
espiritual, intensa, profunda, fértil, partilhada. O assombroso verbo de
Tolentino chegava-nos com a familiaridade de sempre vindo daquele altar onde
ele oficiara durante anos e do qual revia agora amigos. Reencontrava a “SUA”
comunidade, falava para uma das suas “famílias” mais próximas, propunha-lhe o
desafio de um recomeço e não só o do ano. Para além do privilégio em estar
naquela celebração, tornou-se muito clara a responsabilidade da “convocatória”
para lá estar. E “lá” estar era fazer
o maior caso da inspiradíssima dissertação de Tolentino sobre a mensagem do
Papa para o dia primeiro de 2025, Dia Mundial da Paz. Acreditar não é de borla,
é um caminho. Apesar de talvez “utópico”. Ou talvez por isso mesmo.
3Um derby revisto pela conjugalidade é
uma experiência, digo-lhes eu que sei do que falo. Começou logo mal com o
Benfica a jogar melhor e a caríssima cara-metade a irritar-se com o Sporting e
ainda mais comigo. E acabou pior, com a vitória dos encarnados. No meio houve
alguma paz alimentada pelo equilíbrio entre as duas equipas e aquele bocado de
vida fervilhante (inigualável) fornecida por um grande jogo de futebol. O
final, uma desgraça: “queres que eu me interesse por uma vitória por
penalties…?”
Além de que não havia vivalma em casa:
nem ao menos um filho que se tivesse condoído com tão periclitante situação,
uma nora que passasse, um neto que tivesse aparecido para ver a bola, uma
visita inesperada… Apenas dois seres humanos, a olhar com expectativas opostas
e assanhadas para o mesmo écran de televisão, mas unidos, para o bem e para
mal, pela conjugalidade.
Acabei sozinha na sala.
Viva o Benfica.
4Tanta vida em Eça. Um génio a
declinar vidas e a pintar a natureza humana com palavras.
José Maria Eça de Queiroz foi agora em
boa hora muito bem relembrado. A hora tardou, tardou demais, e até porventura
não fora a determinação persistente, exigente e insistente de Afonso Reis
Cabral – magnífico discurso! – e o país talvez jamais viesse a assistir à
cerimónia de há dias no Panteão Nacional. Onde tudo esteve certo porque tudo
foi belo e justo e sóbrio e solene. Portugal, é verdade, de vez em quando
consola-nos.
5Quando era muito, muito pequena, a minha
mãe levava-me ao andar de cima da nossa casa do Campo Grande. “Íamos visitar a
avó Sofia”. Depois de ficar viúva de Thomas de Mello Breyner, Conde de Mafra,
Sofia mudara-se para casa de uma das suas filhas, Teresa, minha avó. Onde ficou
até morrer. Foi muito naturalmente que as minhas irmãs e eu crescemos a
conhecer a vida – invulgar – e a história, talvez ímpar no seu tempo, do nosso
bisavô Thomaz. Monárquico convicto – embora nunca hesitando na crítica aguda ou
desapiedada a alguns monárquicos; médico pessoal do Rei D. Carlos de quem
fora companheiro de infância e foi amigo íntimo pela vida fora; grande clínico
dos hospitais civis (e percursor em doenças venéreas). Professor
prestigiado de Ciências Médicas, era acima de tudo – se eu tivesse de resumir –
um cidadão respeitadíssimo, um homem de carácter, um servidor. Inseparável de
uma pena e cadernos de papel, escreveu incansavelmente, registando o que via e
vivia, em diversos ”Diários” e “Memórias”. Fê-lo com minúcia, verve, ironia, retratando o seu Portugal muito
amado a partir de postos de observação tão reais quanto a Monarquia, a
República, os alvores do Estado Novo.
Há alguns anos a historiadora Margarida
Magalhães Ramalho escreveu-lhe uma formidável biografia (“Thomaz Mello Breyner – Relatos de uma Época”, Imprensa
Nacional).
Um
livro onde a vida palpita e a história de Portugal transpira de cada página,
numa felicíssima interligação entre vida e pátria, ciência e cultura, família e
mundo, guerra e paz. Tudo isto veio agora a “desaguar” na RTP 2, através da
adaptação para televisão – em três episódios – feita muito talentosamente pela
própria Margarida, a partir da biografia que escreveu. Um feito… feito por uma
grande equipa.
Mais interessante porém do que esta
pequena nota que pode a um distraído parecer uma mera “coisa de família”, é que
o que acima ficou pode ser fonte de inspiração, estímulo, exemplo. Vale
sempre a pena escrever, vale sempre a pena deixar registo. É quase um serviço.
Em Portugal não há o culto da memória nem costuma haver a vontade de deixar uma
impressão em alguma coisa. É pena.
O “vivido” com assinatura não tem
preço.
PS: Falei acima da Capela do Rato,
volto a ela, merece mais notícia. Não é novidade: habituou-nos há muito ao seu
modo sério, interventivo, presente, de estar e ser Igreja hoje, respondendo e
correspondendo à chamada cristã. Volta agora a ser o caso: o curso “Filosofia, Literatura, e Espiritualidade”, (direcção
científica da Professora Luísa Ribeiro Ferreira), começará em breve (2ªfeira,
dia 20) online ou presencialmente, no espaço da Capela e será dedicado à
“Amizade”. O tema – notável – viajará por alguns livros que o trataram
em reflexão filosófica, ficção narrativa, poesia, reflexão teológica,
espiritualidade. Não é dizer pouco mas é esperar muito. (O mesmo devem ter
pensado D. Manuel Clemente, e o novo Bispo Alexandre Palma que aceitaram
encerrar este curso.) Amizade? “Queremos agradecer as amizades entre
participantes, conferencistas, autores e obras” explica o pároco da Capela,
António Martins: “Celebrar a nossa amizade com os livros que nos ajudam a
resistir interiormente, a libertarmos o pensamento e a interioridade da
violência verbal do tempo presente.” A seguir absolutamente. Vida também é
isto. Ou sobretudo isto.
COMENTÁRIOS (de 18)
Luis Silva: Bom artigo para adormecer ao fim de poucos parágrafos. Carlos
Chaves: Cinjo-me só ao inicio da crónica, é espantoso a Maria João Avillez, vir
falar sobre as dores do nascimento da CIP e do estado calamitoso da nossa
indústria com origem nas criminosas nacionalizações e ocupações, durante o
famigerado período revolucionário, quando um dos grandes responsáveis por tal
situação foi o secretário geral do PS na altura, Mário Soares, que ela tanto
endeusa! Interessante postura! Ruço
Cascais > João
Floriano: A MJA sofre de uma coisa chamada saudade de outras idades. Aqui em Cascais
muita gente "velhos Conservadores", passe a redundância, tem saudades
do antigo e demolido edifício Estoril Sol. Dizem: Velhos Conservadores: -
aquele sim, era um edifício glamoroso. Fui lá a muitas festas e jantares. O
ambiente era fantástico. A piscina com prancha de saltos era inigualável. A
pala exterior de entrada era um monumento ao modernismo. Os carros, agora
clássicos de luxo, cruzavam a entrada em exibições apenas comparáveis a Monte
Carlo. Velhos tempos nada comparáveis ao que se passa hoje em dia, incluindo o
novo edifico que parece um armazém de contentores empilhados uns nos outros. Existe
uma tradução rápida, concisa e muito sumária para estes elogios aos tempos
passados; ai que saudades que tenho de quando era nova/o. A Dona Maria João
dizia no outro dia num Contracorrente (deve ter uma avença com o programa) que
a política no século passado tinha outra honra, que os políticos tinham outra
honra. Este saudosismo pelos políticos do século passado corresponde a dizer
que tem saudades daqueles tempos quando era mais nova, porque, senão, vejamos:
houve as FP's 25 em que andavam a assassinar; Mário Soares fez a vida negra a
Cavaco Silva enquanto este era primeiro-ministro. Levaram o país 2x à
bancarrota; desenharam as pensões vitalícias para os próprios; um presidente da
república quis continuar na política após terminar o mandato e criou um partido
político; etc, etc. A conclusão era que nem eram melhores nem mais honrados do
que os de agora, era tudo a mesma coisa, para não dizer outra coisa. MJA sofre
de um desenquadramento ou distúrbio social provocado pelas saudades de quando
era mais nova; antigamente é que era bom! Daí, talvez se compreenda aquele
exercício à Marques Mendes de nem ser peixe nem carne e continuar a ver
socialistas e sociais democratas como um mesmo grupo com duas facções que
divergem num ou noutro ponto.
Francisco Almeida: Das nacionalizações de 1975, destaco a da Banca, tão
"bem" conduzida por Cravinho que abrangeu desde pequenas pensões a
barbearias (temporariamente na posse dos bancos por execução de dívidas). Mais
importante - em termos de pessoas envolvidas e consequências políticas - do que
a CIP, foi a formação da CAP. Extinta a Associação Central da Agricultura
Portuguesa, qualquer reunião era denunciada ao MFA, COPCON ou simplesmente ao
PCP-MDP/CDE e podia resultar em detenções e até agressões. Os agricultores
tinham medo e desconfiavam de qualquer pessoa desconhecida que os abordasse.
Foi um trabalho de formiga, longo e difícil e uma história que provavelmente
nunca será contada. Começou com a ALA -Associação Livre de Agricultores, em
Santarém, antes da CAP e nunca esteve ausente de risco. Na primeira
manifestação da CAP, jem Santarém foi assassinado o filho de um grande
agricultor de Coruche e ataque violentos e alguns espancamentos ocorreram em
diversas localidades.Mas claro que não foi em Lisboa. Muito menos no Campo
Grande. Rosa Silvestre: "onde estão os grupos económicos de nível europeu
com que o país contava em 1974?" Resposta fácil: mataram-nos e nunca
permitiram que renascessem.
Alberico LopesRuço
Cascais: Formidável comentário! Claro que a MJoão Avilez, agora que até se senta
junto ao meio-irmão do mandarim, tem de dar uma de saudosista do seu querido
mário soares, o tal das férias reais a pavonear-se em cima das tartarugas nas
Seychelles ou a depositar pelas mãos do Melancia, as brutas comissões dos
alemães pelas obras do aeroporto de Macau! Coitado do Rui Mateus que foi pura e
simplesmente cilindrado do covil do largo das ratazanas. Ou do templo do Campo
Grande, onde esse tal soares arrotava com as maiores iguarias e os melhores
vinhos que mandava comprar por estafetas que ali eram colocados para servirem o
rei que mais beneficiou com o tal 25Abril! Coitada da MJoão: já não há quem a
consiga suportar! Nem eu que até há pouco tempo - desde que se mudou para a
nova sede da Acção Socialista - a consigo ouvir! Nem ao m.mendes, claro
dificilmente sairá. GateKeeper: MJA está e permanece, desde
2023, num limbo, do qual, eventualmente, muita dificilmente sairá. Nota-se bem
a sua extrema dificuldade na sua adaptação mental aos novos "tempos de
miséria", como os de 1974/1976. O mesmo sucede com outras e outros
crooners do passado, ao não assumirem que o seu "tempo e modo" já não
fazem parte integrante do nosso dia-a-dia. Elas e eles são meras recordações,
enfim.
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