De uma História recente e passada, com a sagacidade e o brilho – e a
honestidade - de sempre, de JAIME
NOGUEIRA PINTO: Histórias da nossa História - portuguesa e universal.
“Nada substitui a vitória”
A vitória de Trump tem levado à “conversão” de alguns dos seus
inimigos. Outros, fazem por não perceber o que uma vitória contra toda uma
convergência de forças e de agendas instaladas significa.
JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador
OBSERVADOR,25 jan. 2025, 00:1854
Não é um espectáculo edificante, mas não
era de esperar que fosse. Como
dizia o general Douglas MacCarthur, herói de muitas guerras, “There is no
substitute for victory”. E como nada
substitui a vitória ou tem a sua força, entre 5 de Novembro e 20 de Janeiro,
foram partindo para Mar-a-Largo, em romaria física ou mental, de joelhos ou
segurando as velas da racionalidade política, bilionários, intelectuais,
políticos, jornalistas, comentadores, analistas. E ainda lá hão de ir mais.
Jeff
Bezos e Mark Zuckerberg viram a luz um pouco tarde, é certo, mas ainda a
tempo de se salvarem, até porque “The Donald” sabe que não vale a pena criar ou
alimentar desesperados.
Uma leitura atenta da grande imprensa
verá também uma gradual desactivação do discurso arrogante do Verão passado, quando Trump era uma espécie de marginal
falhado, seguido por um enxame de deploráveis brancos, por alguns pobres
negros, inocentes e subservientes, e por Elon Musk, um excêntrico disposto a
pagar para aquilo tudo.
No entanto, ainda há pequenas
alegrias que vão reactivando o velho discurso, como o júbilo de identificar e
denunciar a recente “saudação nazi” de Musk ou o prazer de reportar a especial
toxicidade das baterias dos Teslas ardidos em Los Angeles. Poderão ser alegrias
risíveis ou até infantis, mas não deixam de ser compreensíveis, dado o espanto
e o rancor perante a esmagadora vitória do hitleriano mafarrico contra todos os
avisos de perigo iminente agitados nas notícias, nos polígrafos e nas análises.
A origem desta incredulidade e da
persistência deste espírito está, sobretudo, na arrogância e solipsismo de uma
Esquerda – e de um Centrão político, mediático e académico dominado por ela –
que se autoconvenceu e convenceu os outros que detém o monopólio da virtude, da
moral, da inteligência e do entendimento da História e do seu sentido; e que
ainda não percebeu, ou ainda não quis perceber, que a vitória de Donald Trump,
em cuja derrota empenhou todos os meios, é também a demonstração de que começa
a não convencer ninguém.
A “Teoria Francesa”
O Maio de 68, ainda era a irreprimível vontade de os
filhos da sociedade burguesa desmantelarem a própria sociedade burguesa, clamando por longínquos tiranos, como Mao
Tse-Ttung, por estrategas da terra dos outros, como Ho-Chi-Minh
ou por guerrilheiros distantes, como Che Guevara (o grito de
guerra “Mao! Che! Ho-Chi-Minh!”, repetido nas ruas de Roma em Outubro de 1969 ainda me ecoa nos
ouvidos); ou, em Woodstock, rezando ironicamente a Deus,
com Janis Joplin, não para que libertasse o povo da escravatura ou salvasse as
almas, mas para que lhe comprasse um Mercedes Benz ou uma televisão a cores. Coisas
que herdavam o activismo das reivindicações mais vitais de paz, pão, habitação
ou mesmo de justiça social e racial, mas que eram já réplicas burguesas,
hedonistas, coloridas e floridas dos filhos da fartura.
Mas mais ou menos por este tempo, um grupo de pensadores franceses levava
para os Estados Unidos a “French
Theory”, que
iria florescer e propagar-se nas universidades americanas. Eram os
chamados filósofos pós-estruturalistas, imbuídos do “espírito
do Maio de 68” – Foucault,
Derrida, Deleuze, Baudrillard, Lyotard. Como
escreveria Colin
Campbell em 1986 na New York Times Magazine: “Era
como se uma colónia tropical francesa de novas plantas teóricas e de ignotos
animais da crítica, um Paris com cobras, subitamente brotasse do nosso relvado. Alguns
temiam que a nova selva escondesse um campo de guerrilha, de onde niilistas
armados lançassem raids contra a paisagem académica…”
Curiosamente, tudo começara
num grande happening, em Outubro de 1966, na Universidade John Hopkins, em
Baltimore, numa conferência
organizada, entre outros, por René Girard, alguém depois bem contrário a estes
devaneios. O tema era “The Language of Criticism and The Sciences of Man”, e entre os
convidados franceses estavam Roland Barthes, Jacques Lacan e Jacques Derrida, o
profeta da desconstrução.
Inaugurava-se a época dos famosos Cultural
Studies. E para animar os cultores das novas disciplinas, a
tradução inglesa de De la
grammatologie, de Derrida, era
de uma professora indiana, Gayatri Spivak,
especialista em “pensamento pós-colonial”. As
iniciativas do grupo, depois animado por Sylvère Lotringer, traziam uma receita
infalível – esoterismo, vanguardismo e elitismo.
Era uma cultura revolucionária,
activista, um verdadeiro chá de caridade laico para liberais chiques
preocupados com o mundo e com os desfavorecidos. Era também, para Camille Paglia, sempre
crítica, uma submissão irritante à cultura francesa, o equivalente
universitário ao gadget de luxo, ao desporto da moda ou ao último
robot de cozinha.
O wokismo tal como hoje o conhecemos vem daqui. Não é já um despertar ou acordar dos
descendentes dos escravos da América na Guerra Civil para os seus direitos e
para os abusos contra esses direitos, mas todo um delírio paternalista,
culposo, acusatório e vitimista, dissociado da kantiana “coisa em si” e alicerçado em auto-percepções e auto-determinações. Um
delírio que vai também consagrando, mimando e manipulando minorias sortidas
contra os “não despertos”, os pecadores incapazes de admitir a sua natureza
“fóbica” e o seu racismo ou sexismo estrutural.
Excesso e reacção
Mas o poder costuma transformar os libertadores
em tiranos, e os “despertos” começaram por policiar o pensamento dentro das
universidades, estabelecendo Indexes de livros e de autores a cancelar ou a
censurar, identificando macro e micro ofensas, estimulando a denúncia. E a partir dos santuários de liberdade e
libertação de onde observavam os relapsos, foram fazendo caminho até à
legislação avançada para, a partir das leis aprovadas ou dos direitos
consagrados – nas instituições, nas empresas, nos parlamentos – irem “dobrando”
a renitente sociedade e a renitente humanidade no sentido do “progresso”.
Tudo isto foi acontecendo e sendo coberto por uma comunicação social dócil, acrítica ou também empenhada no novo credo
e na denúncia dos dissidentes e das dissidências. Tudo isto foi também financiado e apoiado
por capitalistas e especuladores como George Soros, por convicção (porque, como é sabido, só
Elon Musk age exclusivamente por interesse) mas também pelas oportunidades
abertas pela atomização familiar, social e nacional e pelo consumo de “novas
identidades.”
E tudo isto se juntou, na América, à desindustrialização e à deslocalização das
indústrias, com dois milhões de postos de trabalho a desaparecerem. Foi a interrupção do sonho americano e da
ideia de um qualquer melting pot ou de uma linguagem comum que trouxe o
descontentamento com as elites, que tinham começado a falar uma língua e a
navegar numa realidade alternativa, estéril e absurda para a maioria dos
americanos comuns.
Este divórcio tornou-se visível pela primeira vez em 2016 com a
primeira eleição de Trump, que, apesar de tudo, era anti-sistema ou estava
contra Hillary Clinton, a mais sistémica das candidatas, que cairia no erro de
chamar “deploráveis” aos americanos que não acompanhavam “o progresso”, ou
seja, a agenda da candidata democrata.
Nunca ninguém, nunca nenhum político,
foi tão atacado, odiado e caluniado pelos poderes deste mundo como Donald
Trump. Excessivo e provocador, tão pouco se acautelava ou acautela com palavras
e acções. E quando tentou voltar, teve contra ele uma impressionante
convergência de forças – da academia à plutocracia, passando pelos media e pela
comunidade internacional.
Mas, apesar disso e por isso,
venceu. E logo no primeiro dia, “The Donald”, para “pôr fim
à política governamental de tentar, por engenharia
social, introduzir a raça e o género em todos os aspectos da vida pública e
privada”, fazia uma proclamação que os tempos tinham tornado temerária e
revolucionária naquela América: “A partir de hoje, na política oficial
do governo dos Estados Unidos só existem dois géneros, masculino e feminino.”
P.S. Morreu esta semana o general Vasco
Rocha Vieira. Conheci-o pessoalmente nos anos oitenta e, nas vésperas da
transferência do governo de Macau para a China, que seria em 20 de Dezembro de
1999, convidou-nos – à Zezinha e a mim – para visitarmos aquela última relíquia
do Império oriental dos portugueses. Porque Macau não era bem uma província
ultramarina ou colónia, mas de qualquer forma era também Portugal ou de
Portugal ou dos portugueses.
Assim Rocha Vieira, como governador
de Macau, acabou por ser, entre 1991 e 1999, o último português com
responsabilidades no Império. E
exerceu essa função ou missão sem complexos de culpa, com patriotismo e
realismo e pensando no bem público e no bom nome da nação portuguesa; ao
contrário dos descolonizadores militares e civis no abandono de África e na
tragédia de Timor. Foi também graças ao realismo da China, que congelou a
pressa descolonizadora dos capitães e políticos de Abril, que houve ali uma
transição que faltou noutros lados.
Mas devemos a Vasco Rocha Vieira uma
saída digna da História, dessa última memória de Portugal no Oriente e no
Mundo. Que descase em paz.
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