segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Revisão

 

De uma História recente e passada, com a sagacidade e o brilho – e a honestidade - de sempre, de JAIME NOGUEIRA PINTO: Histórias da nossa História - portuguesa e universal.

“Nada substitui a vitória”

A vitória de Trump tem levado à “conversão” de alguns dos seus inimigos. Outros, fazem por não perceber o que uma vitória contra toda uma convergência de forças e de agendas instaladas significa.

JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador

OBSERVADOR,25 jan. 2025, 00:1854

 

Não é um espectáculo edificante, mas não era de esperar que fosse. Como dizia o general Douglas MacCarthur, herói de muitas guerras, “There is no substitute for victory”. E como nada substitui a vitória ou tem a sua força, entre 5 de Novembro e 20 de Janeiro, foram partindo para Mar-a-Largo, em romaria física ou mental, de joelhos ou segurando as velas da racionalidade política, bilionários, intelectuais, políticos, jornalistas, comentadores, analistas. E ainda lá hão de ir mais.

Jeff Bezos e Mark Zuckerberg viram a luz um pouco tarde, é certo, mas ainda a tempo de se salvarem, até porque “The Donald” sabe que não vale a pena criar ou alimentar desesperados.

Uma leitura atenta da grande imprensa verá também uma gradual desactivação do discurso arrogante do Verão passado, quando Trump era uma espécie de marginal falhado, seguido por um enxame de deploráveis brancos, por alguns pobres negros, inocentes e subservientes, e por Elon Musk, um excêntrico disposto a pagar para aquilo tudo.

No entanto, ainda há pequenas alegrias que vão reactivando o velho discurso, como o júbilo de identificar e denunciar a recente “saudação nazi” de Musk ou o prazer de reportar a especial toxicidade das baterias dos Teslas ardidos em Los Angeles. Poderão ser alegrias risíveis ou até infantis, mas não deixam de ser compreensíveis, dado o espanto e o rancor perante a esmagadora vitória do hitleriano mafarrico contra todos os avisos de perigo iminente agitados nas notícias, nos polígrafos e nas análises.

A origem desta incredulidade e da persistência deste espírito está, sobretudo, na arrogância e solipsismo de uma Esquerda – e de um Centrão político, mediático e académico dominado por ela – que se autoconvenceu e convenceu os outros que detém o monopólio da virtude, da moral, da inteligência e do entendimento da História e do seu sentido; e que ainda não percebeu, ou ainda não quis perceber, que a vitória de Donald Trump, em cuja derrota empenhou todos os meios, é também a demonstração de que começa a não convencer ninguém.

A “Teoria Francesa”

O Maio de 68, ainda era a irreprimível vontade de os filhos da sociedade burguesa desmantelarem a própria sociedade burguesa, clamando por longínquos tiranos, como Mao Tse-Ttung, por estrategas da terra dos outros, como Ho-Chi-Minh ou por guerrilheiros distantes, como Che Guevara (o grito de guerra “Mao! Che! Ho-Chi-Minh!”, repetido nas ruas de Roma em Outubro de 1969 ainda me ecoa nos ouvidos); ou, em Woodstock, rezando ironicamente a Deus, com Janis Joplin, não para que libertasse o povo da escravatura ou salvasse as almas, mas para que lhe comprasse um Mercedes Benz ou uma televisão a cores. Coisas que herdavam o activismo das reivindicações mais vitais de paz, pão, habitação ou mesmo de justiça social e racial, mas que eram já réplicas burguesas, hedonistas, coloridas e floridas dos filhos da fartura.

Mas mais ou menos por este tempo, um grupo de pensadores franceses levava para os Estados Unidos a “French Theory”, que iria florescer e propagar-se nas universidades americanas. Eram os chamados filósofos pós-estruturalistas, imbuídos do “espírito do Maio de 68”Foucault, Derrida, Deleuze, Baudrillard, Lyotard. Como escreveria Colin Campbell em 1986 na New York Times Magazine: “Era como se uma colónia tropical francesa de novas plantas teóricas e de ignotos animais da crítica, um Paris com cobras, subitamente brotasse do nosso relvado. Alguns temiam que a nova selva escondesse um campo de guerrilha, de onde niilistas armados lançassem raids contra a paisagem académica…”

Curiosamente, tudo começara num grande happening, em Outubro de 1966, na Universidade John Hopkins, em Baltimore, numa conferência organizada, entre outros, por René Girard, alguém depois bem contrário a estes devaneios. O tema era “The Language of Criticism and The Sciences of Man”, e entre os convidados franceses estavam Roland Barthes, Jacques Lacan e Jacques Derrida, o profeta da desconstrução.

Inaugurava-se a época dos famosos Cultural Studies. E para animar os cultores das novas disciplinas, a tradução inglesa de De la grammatologie, de Derrida, era de uma professora indiana, Gayatri Spivak, especialista em “pensamento pós-colonial”. As iniciativas do grupo, depois animado por Sylvère Lotringer, traziam uma receita infalívelesoterismo, vanguardismo e elitismo.

Era uma cultura revolucionária, activista, um verdadeiro chá de caridade laico para liberais chiques preocupados com o mundo e com os desfavorecidos. Era também, para Camille Paglia, sempre crítica, uma submissão irritante à cultura francesa, o equivalente universitário ao gadget de luxo, ao desporto da moda ou ao último robot de cozinha.

O wokismo tal como hoje o conhecemos vem daqui. Não é já um despertar ou acordar dos descendentes dos escravos da América na Guerra Civil para os seus direitos e para os abusos contra esses direitos, mas todo um delírio paternalista, culposo, acusatório e vitimista, dissociado da kantianacoisa em si” e alicerçado em auto-percepções e auto-determinações. Um delírio que vai também consagrando, mimando e manipulando minorias sortidas contra os “não despertos”, os pecadores incapazes de admitir a sua natureza “fóbica” e o seu racismo ou sexismo estrutural. 

Excesso e reacção

Mas o poder costuma transformar os libertadores em tiranos, e os “despertos” começaram por policiar o pensamento dentro das universidades, estabelecendo Indexes de livros e de autores a cancelar ou a censurar, identificando macro e micro ofensas, estimulando a denúncia. E a partir dos santuários de liberdade e libertação de onde observavam os relapsos, foram fazendo caminho até à legislação avançada para, a partir das leis aprovadas ou dos direitos consagrados – nas instituições, nas empresas, nos parlamentos – irem “dobrando” a renitente sociedade e a renitente humanidade no sentido do “progresso”.

Tudo isto foi acontecendo e sendo coberto por uma comunicação social dócil, acrítica ou também empenhada no novo credo e na denúncia dos dissidentes e das dissidências. Tudo isto foi também financiado e apoiado por capitalistas e especuladores como George Soros, por convicção (porque, como é sabido, só Elon Musk age exclusivamente por interesse) mas também pelas oportunidades abertas pela atomização familiar, social e nacional e pelo consumo de “novas identidades.”

E tudo isto se juntou, na América, à desindustrialização e à deslocalização das indústrias, com dois milhões de postos de trabalho a desaparecerem. Foi a interrupção do sonho americano e da ideia de um qualquer melting pot ou de uma linguagem comum que trouxe o descontentamento com as elites, que tinham começado a falar uma língua e a navegar numa realidade alternativa, estéril e absurda para a maioria dos americanos comuns.

Este divórcio tornou-se visível pela primeira vez em 2016 com a primeira eleição de Trump, que, apesar de tudo, era anti-sistema ou estava contra Hillary Clinton, a mais sistémica das candidatas, que cairia no erro de chamar “deploráveis” aos americanos que não acompanhavam “o progresso”, ou seja, a agenda da candidata democrata.

Nunca ninguém, nunca nenhum político, foi tão atacado, odiado e caluniado pelos poderes deste mundo como Donald Trump. Excessivo e provocador, tão pouco se acautelava ou acautela com palavras e acções. E quando tentou voltar, teve contra ele uma impressionante convergência de forças – da academia à plutocracia, passando pelos media e pela comunidade internacional.

Mas, apesar disso e por isso, venceu. E logo no primeiro dia, “The Donald”, para “pôr fim à política governamental de tentar, por engenharia social, introduzir a raça e o género em todos os aspectos da vida pública e privada”, fazia uma proclamação que os tempos tinham tornado temerária e revolucionária naquela América: “A partir de hoje, na política oficial do governo dos Estados Unidos só existem dois géneros, masculino e feminino.”

P.S. Morreu esta semana o general Vasco Rocha Vieira. Conheci-o pessoalmente nos anos oitenta e, nas vésperas da transferência do governo de Macau para a China, que seria em 20 de Dezembro de 1999, convidou-nos – à Zezinha e a mim – para visitarmos aquela última relíquia do Império oriental dos portugueses. Porque Macau não era bem uma província ultramarina ou colónia, mas de qualquer forma era também Portugal ou de Portugal ou dos portugueses.

Assim Rocha Vieira, como governador de Macau, acabou por ser, entre 1991 e 1999, o último português com responsabilidades no Império. E exerceu essa função ou missão sem complexos de culpa, com patriotismo e realismo e pensando no bem público e no bom nome da nação portuguesa; ao contrário dos descolonizadores militares e civis no abandono de África e na tragédia de Timor. Foi também graças ao realismo da China, que congelou a pressa descolonizadora dos capitães e políticos de Abril, que houve ali uma transição que faltou noutros lados.

Mas devemos a Vasco Rocha Vieira uma saída digna da História, dessa última memória de Portugal no Oriente e no Mundo. Que descase em paz.

 

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