Até para os que, aparentemente, desligaram da terra onde viveram e
muitos nasceram. O Dr. Jaime
Nogueira Pinto, como sempre, esclarece com a necessária inteligência
dos factos, pelo que lhe ficamos gratos, para sempre.
Moçambique: no limite do desespero
Para não desesperar os homens já
desesperados, os dois chefes vão ter de falar e depressa. Talvez mesmo sem
condições prévias e com garantias vindas de fora.
JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador
OBSERVADOR, 18 jan. 2025, 00:1823
Há mais de quinhentos anos, em Lisboa,
numas Cortes no tempo de Dom Manuel I, um procurador do povo terá dito ao Rei –
“Não desespereis, Senhor, os homens já
desesperados!”
Os já desesperados são aqueles que já não têm nada a perder. No tempo do Rei Venturoso, em Lisboa, os desesperados eram crentes e talvez
não fossem assim tantos; por isso, para entrarem em formas superiores de luta,
teriam primeiro de ultrapassar barreiras e interditos religiosos. Mesmo
assim, ao procurador popular, com uma
franqueza e uma liberdade que decerto surpreenderão os que acham que a
liberdade e a História de Portugal começaram no 25 de Abril, pareceu-lhe
prudente chamar a atenção do Rei para as consequências de abusar da paciência do
povo.
Elites predadoras
O aviso do procurador manuelino continua útil e actual para as elites
políticas, académicas, mediáticas e económicas que olham com perplexidade e
incómodo o sucesso dos “populistas” na América e na Europa. Mas será ainda mais pertinente para os países onde a
acumulação de vícios e erros da elite governante já levou o povo ao desespero.
Tem sido assim em muitos países
africanos, que, a partir da
independência, acolhida pelo povo como uma esperança de vida melhor, livre dos
malefícios do colonialismo, viram a eternização de uma elite, de
uma classe dirigente e dominante senhora do poder político e do poder
económico, com modos de vida que, quando comparados com os do povo, atingem a
vertigem do escândalo.
Como patriota e nacionalista (para
mim não são coisas diferentes), entendo os que, de olhos postos na criação dos seus Estados,
lutaram, a partir dos anos 60, pela independência, arriscando a liberdade e a
vida. E se, como português, os combati, sempre os percebi e respeitei, como
percebo e respeito agora a independência que conquistaram.
Mas isso não quer dizer que partilhe
o desinteresse dos descolonizadores e da classe política do 25 de Abril
(tirando os comunistas, que queriam aí impor partidos e regimes comunistas),
para quem África não passava de uma obsessão de Salazar.
Conheço bem a história de Moçambique
e de Moçambique independente. E estive lá, estava lá, no processo de paz,
fechado em Roma. Conheço também bem os líderes do governo e da oposição.
A paz de Moçambique chegou em
Outubro de 1992, o ano seguinte ao fim da Guerra Fria, quando a democracia
liberal dos norte-americanos estava a expandir-se. Foi
também um modo de acabar com a guerra civil, com a prometida integração dos
combatentes da RENAMO nas Forças Armadas do país. Afonso Dhlakama cumpriu a sua parte do acordo e a guerra
acabou de um dia para o outro. Dhlakama
teve também o mérito de transformar a sua estrutura guerrilheira num partido
político, de disputar eleições – e de aceitar os resultados, mesmo em situações
de grande dúvida, como na segunda eleição presidencial, em que Chissano teve
52,3% do voto e ele 47,7%. Não foi fácil.
Com a perpetuação da FRELIMO no
poder, o progresso económico-social esperado não chegou. E se as elites políticas ficam bem com o
poder e pelo poder, para a grande maioria dos cidadãos a política chega-lhes
através da economia e das condições de vida em sociedade – a segurança e o
sustento e educação dos filhos. Nisso, como no resto, os
africanos não são diferentes dos europeus ou dos americanos, que se vão
voltando para líderes novos – os tais populistas – porque a inflação está alta,
ou porque a imigração faz baixar os salários, ou porque imigrantes de outras
culturas perturbam a segurança e a identidade do povo.
Uma situação bonapartista
Em Moçambique, as eleições
presidenciais e legislativas de 9 de Outubro foram contestadas pelo candidato
da oposição mais bem classificado a seguir ao vencedor oficial, o candidato da
FRELIMO, Daniel Chapo. O candidato
da oposição é Venâncio Mondlane, sobrinho-neto do fundador da FRELIMO Eduardo
Mondlane, um apelido importante de Moçambique. Venâncio Mondlane nasceu, assim,
entre os privilegiados. É engenheiro florestal, foi da FRELIMO, passou pelo MDM
e pela Renamo. Candidatou-se à presidência da Câmara de Maputo em 2013 pelo MDM
e, por pouco, não foi eleito.
É um homem de convicções, cristão e
pastor evangélico. É também um tribuno, capaz de, através de uma oratória
transmitida pelas redes sociais, mobilizar a população, sobretudo os jovens e
adolescentes das cidades. É hoje o símbolo e o representante de parte
considerável do povo, onde há muitos homens já desesperados, como os que,
depois das eleições, desceram à rua em Maputo, mas também em Nampula e na Beira. E entre os que protestam, como não é
estranho numa sociedade onde a vida difícil e sem esperança semeia a fome de
justiça, mas também a fome em sentido estrito, há os que saqueiam e destroem.
Venâncio Mondlane saiu de Moçambique por razões de
segurança, – dois dos seus colaboradores próximos foram assassinados, no que
foi o rastilho para a violência popular. Levou com ele a família e andou pela
África Austral e pelo mundo, até regressar, na semana passada, a um país
dividido, onde haverá muita gente com vontade de o neutralizar.
Por seu turno, na FRELIMO, Daniel
Chapo é, de certo modo, um “homem novo”; e a sua escolha, como outras em
situações idênticas, resulta de um empate entre tendências que o aceitaram como
terceira figura para sair do impasse.
É alguém que não procurou o poder, que terá sido até surpreendido e empurrado
para ele, e que não tem a carga negativa de outras figuras do partido
dominante, mas que, no entanto, não deixa de o representar agora.
A sociedade moçambicana está num
momento cesarista ou bonapartista: o momento gramsciano em que as forças da
mudança e do poder se equilibram; em que a revolução e a contra-revolução se igualizam de modo a que,
a prosseguirem a luta, se irão destruir e ao tecido social à sua volta. Só que,
em Moçambique, não se vê o terceiro elemento capaz desbloquear e desempatar a
situação, o tal César ou Bonaparte da teoria de Gramsci.
Chapo é novo no poder, não tem
responsabilidades no mau governo, na corrupção, naquilo que causa a fúria do
povo; e Venâncio
é o representante dos homens já desesperados, um símbolo, um líder, um
catalisador dos sentimentos profundos de revolta dos que dominam os bairros
populares da capital, dos que cortam as estradas e controlam a rua, e dos
muitos mais que ficam em casa, mas se revêem nele. Que não haja a
tentação de resolver a situação eliminando-o, o que só multiplicaria a fúria
popular, podendo mesmo desencadear a guerra civil.
No Norte, a guerrilha jihadista, que pôs
em causa a grande esperança da exploração do gás natural, pode estar contida
pelo contingente do Ruanda, mas está lá.
Assim, os dois chefes podem e devem falar. Talvez mesmo sem
condições prévias, talvez com algumas garantias vindas de fora e com
intervenção exterior que, da outra vez, quando da paz de 1992, veio da
comunidade de San Egídio e foi um dos poucos casos históricos de diplomacia
paralela que resultou.
Mas têm de andar depressa, porque “os homens desesperados” não
aguentam mais.
A SEXTA
COLUNA HISTÓRIA CULTURA MOÇAMBIQUE ÁFRICA MUNDO
COMENTÁRIOS (de 23)
Carlos Chaves: E a esquerda Portuguesa tão caladinha sobre esta
calamidade em todos os aspectos, onde o comunismo sempre, mas sempre, leva os
povos! E os defensores do Mário Soares, onde estão para defender a
descolonização criminosa patrocinada por ele, deixando à sua sorte estes povos
irmãos? Onde estão? Apareçam saiam das tocas! Jornalistas façam o vosso
trabalho, pode ser? Bem-haja Jaime Nogueira Pinto. Rui Lima: Mas alguém acredita que substituir o chefe muda alguma
coisa, entre o que está no lugar e o que quer o lugar o futuro de Moçambique
será o mesmo pobreza e mais pobreza . Como alterar? É tarde, não tem solução ,
hoje só há chineses para tomar conta de África com isso os africanos só perdem,
no tempo em que havia ocidentais cometeram um erro mortal não os terem cativado
para ficarem após a independência. Francisco Almeida: Os muito poucos comentários a este artigo de JNP,
confirmam a minha percepção de que o interesse pelo que se passa em Moçambique
não é muito, se não for pouco. Mesmo assim, o desinteresse parece-me menos mau
do que o apoio do regime à Frelimo. Se calhar ainda vamos ver as autoridades
portuguesas a celebrar o cinquentenário de Lusaka. E o de Otelo, será certo. A Sameiro: Brilhante e profundo!!!Fiz lá o serviço militar e gostei
da "terra da boa gente" Manuel
Ferreira21: Professor,
Moçambique é um problema da China, que se cozam todos. Talvez com nova
conferência de Berlim, podia chamar-se Pequim, a África tivesse futuro. GateKeeper: Caro Jaime, tinha que acontecer. Só foi pena não ter
sido antes. Quando se deixa a "panela de pressão ao lume ou na placa"
sem água suficiente e nos esquecemos dela...!
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