sábado, 11 de janeiro de 2025

Biografia


De um grande homem da direita francesa, decerto que racional e erudito, coisa que vai deixando de fazer sentido numa sociedade preferentemente de espectáculo exibicionista – excepto, por cá, em homens cultores de um saber sereno e claro, que consola, na sua procura do autêntico - caso de JAIME NOGUEIRA PINTO, de modéstia a condizer com a clareza da percepção. E obviamente, de expressão, onde a subjectividade transparece também, na conjuntura da banalização de uma alarvidade generalizada que se pretende atingir, através do jogo irónico tantas vezes transparente no seu relato historiográfico.

Jean-Marie Le Pen ou a beleza de ver morrer fascistas

Tal como nunca fora colaboracionista, Jean-Marie Le Pen, o “fascista”, também não deixaria de repetir, ao longo da vida, que “não era suficientemente socialista para ser fascista”.

JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador

OBSERVADOR, 11/1/25

As manifestações de júbilo de centenas de esquerdistas em Paris e Marselha, festejando a morte de um velho, quase centenário, não entram, evidentemente, na categoria de “discurso de ódio”. Porquê? Porque o “discurso de ódio” é um exclusivo da Direita. Assim, quando a esquerda bebe, canta, lança foguetes e exibe cartazes celebrando a morte de um qualquer “porco fascista”, neste caso Jean-Marie Le Pen, trata-se de um exercício de ética, de humanismo, de justiça, de defesa da civilização.

E torce-se a biografia do defunto para poder festejar melhor o desaparecimento de um “colaboracionista, de um racista, de um fascista, de um nazi”. E como, nestes casos, a verdade é irrelevante, dispensam-se os polígrafos, até para não deixar passar a oportunidade: quem melhor que Jean-Marie Le Pen para reunir num boneco perfeito todos os pecados mortais, incluindo o do colaboracionismo e o do fascismo?

A biografia de um provocador

Ora em Novembro de 1944, aos 16 anos, Jean-Marie Le Pen, o dito “colaboracionista”, apresentou-se ao coronel Henri de La Vaissière, “Valin”, para entrar para a Resistência armada, para as Forces Françaises de l’Intérieur; mas o coronel mandou-o embora, dizendo-lhe que só aceitavam como combatentes maiores de 18 anos e que, além disso, ele, Jean-Marie, tendo perdido o pai (um pescador de Trinité-sur-Mer que morrera vítima da explosão de uma mina costeira alemã, em 1942) era “pupilo da nação” e teria de cuidar da mãe. Tal como nunca fora colaboracionista, Le Pen, o “fascista”, também não deixaria de repetir, ao longo da vida, que “não era suficientemente socialista para ser fascista”.

Jean-Marie estudou primeiro com os jesuítas e depois andou por colégios e liceus, sempre irreverente e indisciplinado. Formou-se na Faculdade de Direito de Paris, onde foi presidente da Associação de Estudantes, e dirigiu o jornal La Basoche. Em 1953, alistou-se no Batalhão de Paraquedistas da Legião Estrangeira, futuro Premier Régiment Parachutiste, e serviu na Indochina, de onde lhe ficaria a grande amizade com Alain Delon.

Na Argélia, os paraquedistas do Premier Régiment Parachutiste estiveram envolvidos na chamada Batalha de Argel, uma operação de contra-guerrilha urbana para combater o terror na cidade, sob as bombas dos independentistas. Acusado de ter estado envolvido na tortura de militantes da Frente de Libertação Nacional (FLN), Le Pen negou ter participado nas torturas mas não deixou de as justificar, dizendo que, quando um operacional da rede bombista era capturado e era preciso saber onde estavam as bombas por explodir, todos os métodos se justificavam para salvar vidas de civis inocentes.

Em 1956, foi candidato ao Parlamento pelo partido de Pierre Poujade, UDCA – União para a Defesa dos Comerciantes e Artesãos. Poujade criara a UDCA para fazer frente aos primeiros supermercados, que estavam a levar à falência os pequenos comerciantes. O poujadismo é um dos primeiros movimentos nacionais populistas europeus. Nascido em 1920, Poujade aderiu ao PPF de Jacques Doriot e à Revolução Nacional de Pétain, em 1940. Mas em 1942, descontente, saiu de França e, através de Espanha, juntou-se às Forças Francesas Livres em Argel – ou seja, passou de pétainista a resistente.

Com o habitual à vontade e ligeireza na mentira, no obituário de Le Pen de um matutino de Lisboa descrevia-se Poujade como “antigo membro do partido fascista e anti-semita Partido Popular Francês e apoiante do general Pétain, líder do regime colaboracionista nazi durante a ocupação de França na II Guerra Mundial.” O resto, a entrada para Resistência em plena Ocupação, era omitido, apesar de também vir na Wikipedia, a provável fonte do diligente redactor (para quê incluir a entrada para a resistência de Poujade, que só vinha estragar a caricatura e complexificar a criatura?)

Le Pen foi um activista da “Argélia Francesa” e viveu intensamente esses anos de 1958 a 1962. De Gaulle, levado ao poder pelos partidários da integração da Argélia na França, acabaria por entregá-la à Frente de Libertação Nacional. A causa da Argélia Francesa, que tinha reunido as direitas nacionais e patriotas – e que teve uma fase de acção clandestina e subversiva com a OAS, Organisation de l’Armée Sécrete – marcou o final da França imperial ou colonial.

Com o fim da Argélia Francesa, as direitas nacionalistas entraram num tempo de divisão e fragmentação, tanto mais que o gaullismo fixou grande parte do voto do povo da direita. Em 1968, os excessos do Maio estudantil provocaram uma reacção popular canalizada pelo poder gaullista. Mas antes, o general-presidente De Gaulle, em perigo, fora pedir apoio ao general Massu, que comandava as tropas francesas na Alemanha. Este, que não tinha acompanhado os seus camaradas no golpe de Argel de Abril de 1961, teve um rebate de consciência e exigiu a De Gaulle, a troco do apoio, a libertação dos últimos presos da Argélia Francesa, entre eles o General Salan.

O Front National

É em 1972, numa jornada algo confusa, sob o signo “Ordre Nouveau”, mas reunindo as várias e desavindas famílias da Direita – da conservadora e reacionária à radical e revolucionária, dos pétainistas aos ex-gaullistas e resistentes – que é criado o Front National. Le Pen, entretanto, retirara-se da política e lançara a SERP, Societé d’Études et de Rélations Publiques, onde se dedicara à edição de música militar e registos políticos – dos velhos hinos dos Lansquenetes e dos cantos dos Chouans aos hinos comunistas e das Waffen SS, dos discursos de Hitler aos de Lenine, Dayan e de outros políticos do século XX.

Nos anos 70, dá-se uma cisão no Front National com a saída de elementos radicais, vindos da Ordre Noveau, e a entrada dos “solidaristas” de Jean-Pierre Stirbois.. E nos anos 1980, para dividir as direitas, Mitterrand É este novo Front National que faz uma aliança de governo em Dreux, nas municipais de 1983, com os gaullistas, numa primeira superação das “linhas vermelhas”introduziu temporariamente o sufrágio proporcional e deu fôlego televisivo ao FN.

Nos anos finais do século XX, Bruno Mégret confronta, no Front National, Jean-Marie Le Pen. Mégret, que viera do Club de l’Horloge, acaba por sair. E, em 2002 – surpresa das surpresas –, Le Pen passa à segunda volta da eleição presidencial.

Quando chegaram os resultados da primeira volta das presidenciais de 21 de Abril de 2002, foi a incredulidade e o pânico: Jacques Chirac vinha à frente com 19,88% mas o segundo era Jean-Marie Le Pen, com 16,86%, deixando fora da segunda volta Lionel Jospin, socialista e então primeiro-ministro, com 16,18%. A Esquerda saiu à rua, nas habituais manifestações antifascistas, Chirac recusou-se a debater com Le Pen para não banalizar “a intolerância e o ódio”, e fez o pleno de 82,21% dos votos, contra 17,79% do “fascista”.

Mas, em 2007, Le Pen baixou significativamente para 10,44%: era o efeito Sarkozy, que aparecera com uma agenda mais conservadora em relação à imigração magrebina e à delinquência, atraindo o eleitorado do Front National, forte nas camadas da baixa classe média e dos atingidos pela desindustrialização, em zonas como o Nord-Pas-de-Calais e la Moselle.

Em 2011, Jean-Marie deixa a direcção executiva do partido para a filha, Marine, ficando como presidente honorário. Marine que tem uma estratégia de “branqueamento” do Front National, sente-se embaraçada com as declarações provocatórias do pai, algumas francamente infelizes, nomeadamente as antissemitas.

O Front National vai progredir com Marine Le Pen: nas presidenciais de 2012 fica em terceiro lugar, mas com quase seis milhões e meio de votos; e em 2017 fica em segundo lugar na primeira volta e vai à segunda volta contra Emmanuel Macron, passando os dez milhões de votos e 34% do eleitorado; em 2022 tem 41,5% e mais de 13 milhões de votos populares. E no ano de 2024, nas legislativas e nas europeias, o Front, hoje Rassemblement National, era o primeiro partido da França, obrigando à geringonça eleitoral que está a tornar a França ingovernável.

A morte do guerreiro e o regresso do pai

“Un âge vénérable avait pris le guerrier mais nous avait rendu notre père. La mort est venue nous le reprendre. Beaucoup de gens qu’il aime l’attendent là-haut. Beaucoup de gens qui l’aiment le pleurent ici-bas. Bon vent, bonne mer Papa!”

Com estas palavras no X, Marine falou do pai desaparecido com quem teve, por causa da política, grandes discussões a partir de 2015, quando o expulsou do partido. Das outras filhas do primeiro casamento de Jean-Marie, Marie Caroline, a mais velha, acompanhou o marido quando ele saiu do Front National com Bruno Megret; e Yann, nascida em 1963, militou sempre no partido e é mãe de Marion Maréchal-Le Pen. Mas quando Jean-Marie fez 90 anos, as três irmãs juntaram-se para festejar o pai.

O guerreiro, quando queria – e às vezes sem querer – era brutal, provocador, excessivo; e a família Le Pen, com Jean-Marie, Marine e Marion Maréchal, a neta mais cerebral, tornava-se uma família como as da realeza ou do espectáculo, com as suas guerras, as suas reconciliações, as suas alianças e facções públicas. Mas apesar de Jean-Marie, em 2015, ter sido expulso pela filha do Front National que fundara, o pai continuava a declarar, tanto nas eleições de 2017 como nas 2022, o seu indiscutível voto em Marine.

Jean-Marie Le Pen era um provocador, como são muitos líderes de Direita num tempo em que é a Esquerda o poder instalado e institucionalizado; era um populista, um tribuno do povo, num tempo em que as elites no poder tendem a dissociar-se das massas populares. Apesar de ser também um homem de cultura, deixando-nos em dois volumes (Fils de la Nation e Tribun du Peuple) as Memórias de uma vida aventurosa, tinha as qualidades e os defeitos necessários à vida partidária. E todos atributos para provocar na Esquerda o discurso de ódio com que a vimos festejar a sua morte.

Que descanse e em paz, coisas que, em vida, nunca o ocuparam ou preocuparam.

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COMENTÁRIOS (de 40)

Eduardo Cunha: Excelente crónica.              Carminda Damiao: Excelente artigo. Os esquerdistas não respeitam as pessoas que não são da sua cor e têm comportamentos absurdos e intolerantes.               Roberto > Carlos Gonçalves: Bela lição de história. De notar, mais uma vez, a ignorância e a inutilidade da esmagadora maioria dos "jornalistas" portugueses.                  João Floriano: Excelente resumo do que foi a vida do patriarca Le Pen. A boçalidade dos que de esquerda saíram à rua para festejar a sua morte, mais do que uma humilhação é uma honra. Costumo dizer que para se entender a essência de alguém mais do que esmiuçar as amizades convém esmiuçar os inimigos e os detractores: « Um grande homem pode ser medido pela qualidade de seus inimigos.».Gostando-se ou odiando-se Le Pen, há algo inegável que suscita a admiração: foi sempre um lutador de corpo inteiro, nunca de meias tintas como agora acontece com muitos políticos na sua ânsia de ganhar votos. Onde estiver está em muito boa companhia com Alain Delon.                Madalena Magalhães Colaço: Miterrand percebeu a genialidade de Le Pen, e permitiu que os canais mainstream da época o convidassem para debater. Logo após o primeiro debate na TV, uma fila de gente se precipitou para se inscrever no partido que nem 1% dos votos tinha. Dividida a direita, Chirac à época, caiu na esparrela de Miterrand e não se aliou com Le Pen - que à época nada tinha pronunciado contra os judeus -, deixando ganhar Miterrand. A direita foi dividida por Miterrand que conseguiu ficar 14 anos como Presidente da V república, V república que ele tanto criticou, mas quando chegou à presidência nem uma virgula mudou na constituição. Mordomias e poder encaixaram que nem uma luva a este socialista, que o povo chorou quando faleceu. Mas Le Pen foi um visionário no que respeita à imigração, e a sua morte foi festejada pela esquerda com foguetes na praça da República, e também não se esqueceram da filha e neta às quais desejaram também o mesmo caminho.  Nesta segunda- feira, um argelino que incitara palavras de ódio à França nas redes sociais e fora expulso do país para a Argélia, foi recambiado novamente para França pois os argelinos não o aceitam, apesar do homem ter só a nacionalidade argelina. A França é humilhada por um governo argelino e nada faz. Le Pen foi visionário na humilhação que a França hoje está a ser sujeita.              José B Dias: "Discurso de ódio", "incitamento à violência" ou "racismo e xenofobia" são aquilo que se quiser quando se quiser ... as definições foram construídas assim mesmo, vastas e vagas, para que nelas caiba tudo ou nada conforme se mostrar mais conveniente. Compare-se, por exemplo, escritos de Mário Machado com os de activistas vários da dita Esquerda ... e depois vejam-se as reacções e consequências!                   João Floriano > José B Dias: Não se distinguem. A comunicação social tornou regra que a esquerda nunca tem um discurso de ódio, e que isso é apanágio da direita. Basta ouvir uma intervenção de Isabel Moreira ou dos bloquistas para compreender que o que dizem sobre os portugueses de direita que não partilham da sua ideologia desmiolada é sem dúvida alguma um discurso de ódio.                  Rui Lima: Se o homem fosse de esquerda com o seu trajecto de vida seria um herói. Se Le Pen era um radical Jean-Luc Mélenchon ainda o será mais quer destruir a sociedade ocidental, não acredito quando morrer que a direita dance e abra garrafas de champanhe. Não me admira que a esquerda não respeite os mortos, mas o que me preocupa é ela querer destruir a vida dos vivos no seu combate anti ocidente .                  José B Dias > Liberales Semper Erexitque: Muito manhoso este seu desabafo de alma ... imagino que irá olhar com outros olhos futuros festejos de gentinha igual em tudo mas de cor distinta.                Tim do A: Mais uma excelente crónica de Jaime Nogueira Pinto.                    José Martins de Carvalho > Liberales Semper Erexitque: É curioso observar que quem se atreve a chamar "suíno" a um adversário de ideias estaria perfeito para celebrar "o triunfo dos porcos"!                     Maria Nunes: Excelente artigo, JNP. Vivemos num mundo em que vale tudo quando não se tem as mesmas ideias políticas. E têm sempre a palavra democracia na ponta da língua.                  Lily Lx: Obrigada pela reposição da verdade.             Manuel Gonçalves: Execrável esse comportamento da esquerda de celebrar a morte de um opositor. A divergência política é sempre saudável. O que é inadmissível é a tentativa de subjugação dos outros por via de um totalitarismo, estadio que Le Pen nunca alcançou - se desejava, já não estou tão seguro..             MCMCA A: Festejar uma morte, seja de quem for, é puro primitivismo mesmo que esse alguém tenha sido execrável em vida. Não foi o caso de Lê Pen, por feitio e necessidade provocador dado estar inserido numa sociedade profundamente adversa. Foi um homem frontal que dizia o que sentia e pensava, uma imagem totalmente distinta dos políticos politicamente correctos que infestam, sobretudo, os areópagos europeus. Obrigada JNP por este simples obituário e pela coragem de o ter feito. a vermos a realidade como ela é e não como a nossa vergonhosa comunicação social e em conluio com a actual esquerda nos querem continuar a intrujar… grande abraço Jaime!!!                  Roberto Carlos: Para a esquerda, o alvo de todas as conquistas já não é a classe operária nem os "danados da terra", agora a esquerda pinta, usa latas de tinta para pintar os históricos, há a cores para todos os gostos, enfim... Desculpem se mal pergunto: Então os colaboracionistas wokes do Observador não usam o lápis azul nos artigos do Jaime. Não sei se é por respeito, se é por medo de quem sabe do que fala. Alguma coisa é.                    Antonio Marques Mendes: Conheci pessoalmente Le Pen em 1986-87 no Parlamento Europeu. Tinha uma personalidade provocadora e usava o radicalismo de certas posições para sobressair. Na verdade, não era mais radical do que alguns membros mais refinados do partido de Chirac. A nível pessoal era uma pessoa simpática como tive ocasião de testemunhar numa visita parlamentar que fizemos aos Estados Unidos. RIP para o próprio e para as suas ideias políticas.                Carla Nunes: Excelente. Obrigada.

 

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