segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Aconteceu na minha infância

 

O caso da nossa Bonita. Um acontecimento que a mútua afeição, em mais de uma semana de ausência dolorosa-tornou milagroso e novelesco. O faro e o amor a trouxeram para as donas inconsoláveis com o seu desaparecimento: não matámos o vitelo. Demos-lhe sopas de leite com pão, que ela, esfomeada e saudosa alternava avidamente - pelas quatro da manhã, hora em que nos raspou na porta, saltando o muro da varanda, sem nunca termos percebido como - entre o seu comer e o lamber das donas, que haviam sofrido, durante a semana do seu desaparecimento, a maior dor das suas existências adolescentes. Em Moçambique, contei-o em “Melodias do Passado”. Miguel Tamen brinca sobre esses casos, com a graça da mistificação semântica, em que as expansivas demonstrações dos seus afectos são aparentemente ironizadas com a imagem hiperbólica do falso médico praticante durante oitenta anos, (caso grave do espanto universal, à época), e a recusa, para esse, do tratamento das alergias, exigente de uma autenticidade bem real do saber, imune à apocrifia, tal como o é o real sofrimento pelo cão, admirável no seu afecto pelo dono, como fio invisível, bem expressivo no filme “Hachico”, o cão japonês de comovente fidelidade canina.

Um animal aparece

Quando apesar das baixas probabilidades aparece o cão, o impulso dos donos é o de matarem o seu vitelo mais gordo e darem uma grande festa.

MIGUEL TAMEN Colunista do Observador, Professor (e director do Programa em Teoria da Literatura) na Universidade de Lisboa

OBSERVADOR, 12 jan. 2025

Quase tão frequente como o caso do médico que depois de oitenta anos de exercício se verificou que não era médico é o caso do animal perdido que aparece. Tal como um falso médico nunca é imunologista, assim o animal que aparece nunca é selvagem. Aparecem apenas animais domésticos: cães, gatos, por vezes pássaros. Aparecem muito tempo depois de terem desaparecido, e depois de se ter perdido a esperança de os encontrar; e aparecem muitas vezes à porta das casas dos donos. Os animais selvagens não aparecem e não teriam onde aparecer: são como médicos sem hospital; são animais liberais.

Quando um animal aparece a pergunta que o público normalmente faz é: como é que aquele animal conseguiu aparecer? As respostas avocam sentidos de orientação prodigiosos, e correrias por montes e vales; ou então teorias sobre a memória dos bichos, e sobre o modo como o seu aparecimento exprime nostalgia, gratidão ou amor pelos seus primos racionais, que os move a atravessar as autoestradas. Estas respostas dão por adquirido que é natural que os animais apareçam, e que não há nada de maravilhoso nas aparições. Pressupõem que os animais aparecem como qualquer outra coisa aparece ou desaparece, e que a esse respeito não há nada de animal nos animais.

Ao considerar natural que um animal apareça, o público subestima o lado extraordinário de todos os aparecimentos. Os donos são pelo contrário sensíveis a esse lado extraordinário. Aquilo que tem a ver com o que nos acontece depois de todas as probabilidades terem sido afastadas é sempre aquilo que valorizamos mais. Um aparecimento não é no entanto extraordinário porque seja impossível, como um cão com pelos de gato, ou um gato com asas que tivesse desenvolvido no estrangeiro: é simplesmente um caso muito improvável. Uma probabilidade baixa não exclui a possibilidade de um acontecimento extraordinário.

Quando apesar das baixas probabilidades aparece o cão, o impulso dos donos é o de matarem o seu vitelo mais gordo e darem uma grande festa; e bem, porque a ocorrência é extraordinária. Mas mais extraordinário, quando pensamos nisso, é aparecer à nossa porta um animal que foi nosso. Ao contrário das pessoas em situações parecidas, os animais domésticos não reaparecem por motivos, ou com desculpas: aparecem-nos sempre sem explicação e sem explicações; e aliás não são capazes de explicar coisa nenhuma.

Quando um animal aparece, o facto do seu aparecimento fica sempre por esclarecer. Alguns donos, depois da satisfação, do contentamento e dos festejos, e mesmo algum público, depois das tentativas frustes de ciência e de resposta, pressentirão que o que é verdadeiramente extraordinário quando um animal aparece não é a improbabilidade da ocorrência, que afinal pode sempre ocorrer; mas o modo incaracterístico de cão batido com que até os gatos aparecem. Esse modo faz-nos entrever a grande regra do bom-senso moral: aceitar os bichos, e não fazer muitas perguntas.

ERRO EXTREMO     OBSERVADOR      CRÓNICA

COMENTÁRIOS (de 4):

Francisco Almeida: Infelizmente os meus aninais nunca apareceram. Em três casos apareceu o corpo à beira de uma estrada. Nos outros - muito mais - nem isso.             Joao Goncalves: Excelente artigo. Será que podemos também estabelecer uma relação com a física quântica, em que as partículas, segundo dizem, aparecem do nada e desaparecem para o nada.

 

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