O caso da nossa Bonita. Um acontecimento
que a mútua afeição, em mais de uma semana de ausência dolorosa-tornou
milagroso e novelesco. O faro e o amor a trouxeram para as donas inconsoláveis
com o seu desaparecimento: não matámos o vitelo. Demos-lhe sopas de leite com
pão, que ela, esfomeada e saudosa alternava avidamente - pelas quatro da manhã,
hora em que nos raspou na porta, saltando o muro da varanda, sem nunca termos percebido
como - entre o seu comer e o lamber das donas, que haviam sofrido, durante a
semana do seu desaparecimento, a maior dor das suas existências adolescentes. Em
Moçambique, contei-o em “Melodias do Passado”. Miguel Tamen brinca
sobre esses casos, com a graça da mistificação semântica, em que as expansivas
demonstrações dos seus afectos são aparentemente ironizadas com a imagem hiperbólica do falso
médico praticante durante oitenta anos, (caso grave do espanto universal, à
época), e a recusa, para esse, do tratamento das alergias, exigente de uma autenticidade
bem real do saber, imune à apocrifia, tal como o é o real sofrimento pelo cão,
admirável no seu afecto pelo dono, como fio invisível, bem expressivo no filme “Hachico”,
o cão japonês de comovente fidelidade canina.
Um animal aparece
Quando apesar das baixas
probabilidades aparece o cão, o impulso dos donos é o de matarem o seu vitelo
mais gordo e darem uma grande festa.
MIGUEL TAMEN Colunista do Observador, Professor (e director do Programa
em Teoria da Literatura) na Universidade de Lisboa
OBSERVADOR, 12
jan. 2025
Quase tão frequente como o caso do médico que depois de oitenta anos
de exercício se verificou que não era médico é o caso do animal perdido que
aparece. Tal como um falso médico
nunca é imunologista, assim o animal que aparece nunca é selvagem. Aparecem
apenas animais domésticos: cães, gatos, por vezes pássaros. Aparecem
muito tempo depois de terem desaparecido, e depois de se ter perdido a
esperança de os encontrar; e aparecem muitas vezes à porta das casas dos donos.
Os animais selvagens não aparecem e não teriam onde aparecer: são como médicos
sem hospital; são animais liberais.
Quando um animal aparece a pergunta que o público normalmente faz é:
como é que aquele animal conseguiu aparecer? As
respostas avocam sentidos de orientação prodigiosos, e correrias por montes e
vales; ou então teorias sobre a memória dos bichos, e sobre o modo como o seu
aparecimento exprime nostalgia, gratidão ou amor pelos seus primos racionais,
que os move a atravessar as autoestradas. Estas respostas dão por
adquirido que é natural que os animais apareçam, e que não há nada de
maravilhoso nas aparições. Pressupõem
que os animais aparecem como qualquer outra coisa aparece ou desaparece, e que
a esse respeito não há nada de animal nos animais.
Ao considerar natural que um animal apareça, o público subestima o
lado extraordinário de todos os aparecimentos. Os donos são pelo contrário sensíveis
a esse lado extraordinário. Aquilo que tem a ver com o que nos acontece depois
de todas as probabilidades terem sido afastadas é sempre aquilo que valorizamos
mais. Um aparecimento não é no entanto
extraordinário porque seja impossível, como um cão com pelos de gato, ou um
gato com asas que tivesse desenvolvido no estrangeiro: é simplesmente um caso
muito improvável. Uma probabilidade baixa não exclui a possibilidade de
um acontecimento extraordinário.
Quando apesar das baixas
probabilidades aparece o cão, o impulso dos donos é o de matarem o seu vitelo
mais gordo e darem uma grande festa; e bem, porque a ocorrência é
extraordinária. Mas mais extraordinário, quando pensamos nisso, é aparecer à
nossa porta um animal que foi nosso. Ao contrário das pessoas em situações
parecidas, os animais domésticos não reaparecem por motivos, ou com desculpas: aparecem-nos sempre sem explicação e sem
explicações; e aliás não são capazes de explicar coisa nenhuma.
Quando
um animal aparece, o facto do seu aparecimento fica sempre por esclarecer. Alguns
donos, depois da satisfação, do contentamento e dos festejos, e mesmo algum
público, depois das tentativas frustes de ciência e de resposta, pressentirão
que o que é verdadeiramente extraordinário quando um animal aparece
não é a improbabilidade da ocorrência, que afinal pode sempre ocorrer; mas o
modo incaracterístico de cão batido com que até os gatos aparecem. Esse
modo faz-nos entrever a grande regra do bom-senso moral: aceitar os bichos, e não fazer muitas perguntas.
ERRO EXTREMO OBSERVADOR CRÓNICA
COMENTÁRIOS (de 4):
Francisco Almeida: Infelizmente
os meus aninais nunca apareceram. Em três casos apareceu o corpo à beira de uma
estrada. Nos outros - muito mais - nem isso. Joao Goncalves: Excelente artigo. Será que podemos também
estabelecer uma relação com a física quântica, em que as partículas, segundo
dizem, aparecem do nada e desaparecem para o nada.
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