terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Ziguezagueando - Conclusão

 

Segue-se que o atropelo dos princípios morais na organização social, pela perversão do determinismo fisiológico, conduz a uma desorientação vivencial profundamente criminosa, ridícula e cruel.

O que é isso de revolução sexual?(2)

A sociedades liberais tendem a admitir que tudo é aceitável desde que consentido. Mas quando aceitamos essa ideia tornamo-nos incapazes de traçar limites baseados na dignidade e no respeito ao outro.

PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

OBSERVADOR, 20 jan. 2025, 00:2021

1O mito do progresso

Ao longo da última década, a lista de apóstatas do progresso tem-se tornado mais extensa e interessante. Em 2023, passou a contar com a feminista britânica Mary Harrington, que no livro Feminism against Progress conta o seu percurso de apostasia:

“Fui educada para acreditar na Teologia do Progresso – o enquadramento mais ou menos religioso que regula muito da cultura moderna no Ocidente. Esta teologia diz-nos que há um “lado certo da história” e que as coisas podem continuar a melhorar para sempre.”

Esta teologia do progresso é entendida como intrínseca ao pensamento feminista: as conquistas feministas são apresentadas como prova de que há um caminho de melhoria que está a ser percorrido e do qual não podemos recuar. Nessa medida, o mero facto de olharmos para a ideia de progresso com algum cepticismo – e de considerarmos os riscos dos projectos de engenharia social que dela decorrem e que foram objecto de inúmeras distopias no século XX – é entendido como uma perfídia.

Como devotos da ideologia do progresso, os movimentos feministas são rápidos a acusar aqueles que põem em causa as suas ideias e os seus argumentos: são conservadores ou mesmo, pelos deuses, reaccionários. Mas Harrington insiste num olhar desafiador:

“Podemos escolher um qualquer assunto e veremos que aquilo que, de um ponto de vista, parece “progresso”, na maioria das vezes só nos parece assim porque estamos a ignorar os custos”.

E decide, de modo espirituoso, chamar feminismo reacionário ao seu feminismo contra o progresso, posicionando-se, em particular, contra o feminismo “Team Freedom” que assenta num “bio-libertarianismo”. Nas suas palavras:

“Contra os desenvolvimentos tecnológicos que prometem libertar-nos do amor, do desejo e da própria natureza humana, reafirmar estas verdades é um acto de resistência feminista. Já somos suficientemente livres. O que precisamos é de mais e melhores obrigações: um feminismo que procure os limites adequados para a liberdade de ambos os sexos.”

2O mito do humano

Em The case against the sexual revolution, Louise Perry subscreve igualmente um posicionamento antiprogressista, mas dirige as suas críticas, em particular, para aquilo que designa como “feminismo liberal”. Com esta expressão, Perry refere-se ao enquadramento teórico que defende a emancipação de todas as estruturas sociais que condicionam a autodeterminação e que visa um ser humano racional e liberto de todos os constrangimentos, nomeadamente corpóreos.

O valor do liberalismo não deve ser menosprezado: foi a sua perspectiva universalista a estipular a igualdade política entre homens e mulheres. Mas o feminismo liberal cavalgou estes pressupostos filosóficos e absolutizou aquela igualdade, considerando que, para além de irrelevantes diferenças fisiológicas, homens e mulheres seriam iguais e igualmente capazes de exercer racionalmente a sua autonomia de acordo com um princípio de consentimento. Bastaria, assim, remover todas as formas de opressão para que as condições de igualdade se tornassem efectivas, e a revolução sexual (em especial, com a introdução da pílula contraceptiva) seria o último passo para as mulheres se tornarem “tão livres como os homens”.

Uma vez igualizados os corpos de homens e mulheres – uma vez criado o “humano” –, nada constituiria um entrave à liberdade: e desde que os actos sejam livres, desde que haja consentimento, tudo seria admitido e legítimo, desde a prostituição e a pornografia até ao “casual sex”.

Contra o mito do humano, Perry recorre a uma filosofia materialista: ao contrário do que o feminismo liberal afirma, homens e mulheres não são iguais e não o são, em particular, “acima do pescoço”: tendo passado por processos evolutivos distintos, homens e mulheres pensam de forma diferente e valorizam coisas diferentes. Pensemos, a título de exemplo, na teoria do investimento parental que se refere ao esforço que cada um dos sexos tem de fazer para garantir a passagem do material genético. Esse esforço é muito maior para as mulheres pois não se limita ao acto da concepção, mas estende-se ao longo de, idealmente, nove meses e mais alguns anos de dependência infantil. E isso faz com que homens e mulheres tenham desenvolvido tendências comportamentais e de envolvimento emocional diferente. Como diz Harrington:

“durante a maior parte da evolução humana, a transmissão do material genético implicava para a mulher uma gravidez de risco e um longo período de dependência do bebé. Neste contexto, foi historicamente vantajoso para as mulheres escolher parceiros dispostos a ficar com elas. Assim, as mulheres evoluíram para mostrar uma preferência mais forte por sexo acompanhado de proximidade emocional e por parceiros a longo prazo, com recursos ou estatuto social que permitam criar crianças dependentes com conforto.”

Isto não quer dizer que estejamos totalmente programados em termos evolutivos e que os processos de socialização não sejam relevantes – mas significa que não é tudo socialização e que há aspectos que não podemos controlar culturalmente. O sonho do homem novo é uma quimera, como a história já mostrou uma e outra vez.

3O mito da liberdade

Uma revolução sexual que despreza as diferenças fundamentais entre os sexos e estabelece regras e princípios para que as mulheres “se possam comportar como os homens” gera, inevitavelmente, problemas, tensões e incompreensões – e que se traduzem, por regra, em prejuízo maior das mulheres.

A questão do consentimento é particularmente melindrosa, como se percebe pela constante redefinição das suas regras e como é destacado pelas francesas Neige Sinno, em Triste Tigre, e  Vanessa Springora, em Consentimento. Mas, mais uma vez, os Antigos já nos tinham dado esta lição: não o aprendemos com Ariadne, que arriscou tudo por Teseu e foi por ele abandonada em Naxos, ou com o erro de Dido, que Virgílio conta na Eneida?

“Dido não hesita, esquece-se dos seus votos e nem por um segundo pensa que este é um amor furtivo. “Casamento” é o que lhe chama. E assim esconde com nome falso o seu erro.”

O feminismo reaccionário posiciona-se assim também contra o mito da liberdade, que constitui um aspecto central daquilo que tenho vindo a designar como a tragédia do liberalismo. Ao longo do último século, o liberalismo afastou-se dos seus princípios e intenções originais até se ter transformado numa teoria de absoluta emancipação do indivíduo, que mede o progresso em termos de mera liberdade individual.

As vitórias liberais têm-se traduzido, por isso, em vitórias de Pirro, cada uma delas conseguida à custa de enormes prejuízos. É o que acontece com o excessivo foco dado à autonomia e à liberdade individuais, que nos faz esquecer as origens primeiras do liberalismo, enraizadas num contexto comunitário, laços familiares e uma sociedade civil forte. Os excessos individualistas deixam-nos mais desprotegidos, pelo que passamos a depender mais do estado, de quem exigimos sempre mais e mais. E isso coloca-nos em oposição ao propósito liberal: menos autónomos e mais susceptíveis à lógica do mercado selvagem.

Pensemos também nesta espécie de emancipação biológica que muitos retiram dos princípios liberais: a ideia de que nos podemos emancipar do corpo, da biologia e da criação, gerando, nessa ilusão de autoidentificação divina, um mundo emocionalmente desarticulado e sem adequação entre regras sociais e corpos materiais.

E consideremos, por fim, a ideia de neutralidade moral que foi sendo imposta ao liberalismo e que teria deixado atónitos John Locke ou Adam Smith. Na medida em que absolutizam o princípio do consentimento, as sociedades liberais tendem a admitir que tudo é aceitável desde que consentido. Mas quando deixamos que essa ideia se estabeleça, tornamo-nos incapazes de traçar limites que se baseiam na dignidade e no respeito que devemos ao outro e de reforçar as estruturas de solidariedade que dão forma ao tecido comunitário.

Afinal, como diz Christine Emba, no seu maravilhoso Rethinking Sex: “Podemos desejar liberdade hoje, mas queremos sentido amanhã e para o resto das nossas vidas.”

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COMENTÁRIPOS (de 21)

João Floriano: Gostei mais de ler o primeiro ensaio. Quanto a este, o segundo achei sobretudo importante afirmar que do pescoço para cima homens e mulheres são muito diferentes e atrevo-me a dizer que isso acontece também da cintura para baixo, e isso se não considerarmos o mito romântico do coração. Fisiologicamente homem e mulher são bem diferentes sendo a fisiologia feminina bem mais complexa do que a masculina. Isso terá certamente reflexos nos comportamentos e estados de alma. A revolução sexual foi evoluindo para libertinagem, procurando-se parceria para um sábado à noite ou num site de encontros, ou no ruido de um bar. A insatisfação está garantida.                     Emanuel Jardim > Américo Silva: E assim se perdeu uma Avó extraordinária com a morte de uma Mãe desnecessária.                    Carlos Chaves: Cara Patrícia Fernandes, excelente ensaio as duas crónicas que trouxe até nós! Afinal o feminismo, o machismo e a libertinagem sexual, não fazem qualquer sentido na nossa evolução como seres humanos. Bem-haja!                                Emanuel Jardim: Artigo extraordinário sem dúvida. Deve ser lido por todos, principalmente pelos ultra-liberais e pelos promotores das novas tendências de organização social de esquerda um pouco por todo o Mundo. As famílias tradicionais e convencionais serão sempre a base da sociedade nos países desenvolvidos. Respeito quem opta pelas variantes e desvios, no entanto recuso-me a dar-lhes tempo de antena. Tenho três filhos para cuidar, orientar e sobretudo proteger e amar. 

 

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