Segue-se que o atropelo dos princípios morais na organização social,
pela perversão do determinismo fisiológico, conduz a uma desorientação vivencial
profundamente criminosa, ridícula e cruel.
O que é isso de revolução sexual?(2)
A sociedades liberais tendem a
admitir que tudo é aceitável desde que consentido. Mas quando aceitamos essa
ideia tornamo-nos incapazes de traçar limites baseados na dignidade e no
respeito ao outro.
PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola de Economia e Gestão da
Universidade do Minho
OBSERVADOR, 20 jan. 2025, 00:2021
1O mito do progresso
Ao longo da última década, a
lista de apóstatas do progresso tem-se tornado mais extensa e interessante. Em 2023,
passou a contar com a feminista britânica Mary Harrington, que no
livro Feminism against Progress conta o seu percurso de apostasia:
“Fui
educada para acreditar na Teologia do Progresso – o enquadramento mais ou menos
religioso que regula muito da cultura moderna no Ocidente. Esta teologia
diz-nos que há um “lado certo da história” e que as coisas podem continuar a
melhorar para sempre.”
Esta teologia do progresso é entendida
como intrínseca ao pensamento feminista: as conquistas feministas são
apresentadas como prova de que há
um caminho de melhoria que está a ser percorrido e do qual não podemos recuar. Nessa
medida, o mero facto de olharmos
para a ideia de progresso com algum cepticismo – e de considerarmos os riscos
dos projectos de engenharia social que dela decorrem e que foram objecto de
inúmeras distopias no século XX – é entendido como uma perfídia.
Como
devotos da ideologia do progresso, os movimentos feministas são rápidos a
acusar aqueles que põem em causa as suas ideias e os seus argumentos: são
conservadores ou mesmo, pelos deuses, reaccionários. Mas
Harrington insiste num olhar desafiador:
“Podemos escolher um qualquer assunto
e veremos que aquilo que, de um ponto de vista, parece “progresso”, na maioria
das vezes só nos parece assim porque estamos a ignorar os custos”.
E
decide, de modo espirituoso, chamar feminismo reacionário ao seu feminismo
contra o progresso, posicionando-se,
em particular, contra o feminismo “Team Freedom” que assenta num
“bio-libertarianismo”. Nas suas palavras:
“Contra os desenvolvimentos
tecnológicos que prometem libertar-nos do amor, do desejo e da própria natureza
humana, reafirmar estas verdades é um acto de resistência feminista. Já somos
suficientemente livres. O que precisamos é de mais e melhores obrigações: um
feminismo que procure os limites adequados para a liberdade de ambos os sexos.”
2O mito do humano
Em
The case against the sexual
revolution, Louise Perry subscreve igualmente um posicionamento
antiprogressista, mas dirige as suas críticas, em particular, para aquilo que
designa como “feminismo liberal”. Com esta expressão, Perry refere-se ao enquadramento teórico que defende a
emancipação de todas as estruturas sociais que condicionam a autodeterminação e
que visa um ser humano racional e liberto de todos os constrangimentos,
nomeadamente corpóreos.
O valor do liberalismo não deve ser menosprezado: foi a sua
perspectiva universalista a estipular a igualdade política entre homens e
mulheres. Mas o feminismo liberal
cavalgou estes pressupostos filosóficos e absolutizou aquela igualdade,
considerando que, para além de irrelevantes diferenças fisiológicas, homens e
mulheres seriam iguais e igualmente capazes de exercer racionalmente a sua
autonomia de acordo com um princípio de consentimento. Bastaria, assim, remover
todas as formas de opressão para que as condições de igualdade se tornassem efectivas,
e a revolução sexual (em especial, com a
introdução da pílula contraceptiva) seria o último passo para as mulheres se tornarem “tão livres como os homens”.
Uma vez igualizados os corpos de
homens e mulheres – uma vez criado o “humano” –, nada constituiria
um entrave à liberdade: e desde que os actos sejam livres, desde que haja
consentimento, tudo seria admitido e
legítimo, desde a prostituição e a pornografia até ao “casual sex”.
Contra o mito do humano, Perry recorre a uma
filosofia materialista: ao contrário do que o feminismo liberal afirma, homens
e mulheres não são iguais e não o
são, em particular, “acima do pescoço”: tendo passado por processos
evolutivos distintos, homens e mulheres
pensam de forma diferente e valorizam coisas diferentes. Pensemos,
a título de exemplo, na teoria
do investimento parental que se refere ao esforço que cada um dos sexos tem de
fazer para garantir a passagem do material genético. Esse
esforço é muito maior para as mulheres pois não se limita ao acto da concepção,
mas estende-se ao longo de, idealmente, nove meses e mais alguns anos de
dependência infantil. E isso faz com que homens e mulheres tenham desenvolvido
tendências comportamentais e de envolvimento emocional diferente. Como
diz Harrington:
“durante a maior parte da evolução humana, a transmissão do material
genético implicava para a mulher uma gravidez de risco e um longo período de
dependência do bebé. Neste contexto, foi historicamente vantajoso para as
mulheres escolher parceiros dispostos a ficar com elas. Assim, as mulheres evoluíram para mostrar uma
preferência mais forte por sexo acompanhado de proximidade emocional e por
parceiros a longo prazo, com recursos ou estatuto social que permitam criar
crianças dependentes com conforto.”
Isto não quer dizer que estejamos
totalmente programados em termos evolutivos e que os processos de
socialização não sejam relevantes – mas significa que não
é tudo socialização e que há aspectos que não podemos controlar
culturalmente. O sonho do homem novo é uma quimera, como a história
já mostrou uma e outra vez.
3O mito da liberdade
Uma revolução sexual que despreza as
diferenças fundamentais entre os sexos e estabelece regras e princípios para
que as mulheres “se possam comportar como os homens” gera, inevitavelmente,
problemas, tensões e incompreensões – e que se traduzem, por regra, em prejuízo
maior das mulheres.
A questão do consentimento é
particularmente melindrosa, como se percebe pela constante redefinição das suas
regras e como é destacado pelas francesas Neige
Sinno, em Triste Tigre, e
Vanessa Springora, em Consentimento. Mas, mais
uma vez, os Antigos já nos tinham dado esta lição: não o aprendemos com Ariadne, que arriscou tudo por
Teseu e foi por ele abandonada em Naxos, ou com o erro de Dido, que Virgílio
conta na Eneida?
“Dido não hesita, esquece-se dos
seus votos e nem por um segundo pensa que este é um amor furtivo. “Casamento” é
o que lhe chama. E assim esconde com nome falso o seu erro.”
O feminismo reaccionário posiciona-se
assim também contra o mito da liberdade, que constitui um aspecto central
daquilo que tenho vindo a designar como a tragédia do liberalismo. Ao
longo do último século, o liberalismo afastou-se dos seus princípios e
intenções originais até se ter transformado numa teoria de absoluta emancipação
do indivíduo, que mede o progresso em termos de mera
liberdade individual.
As vitórias liberais têm-se traduzido, por isso, em vitórias
de Pirro, cada
uma delas conseguida à custa de enormes prejuízos. É o que acontece com o
excessivo foco dado à autonomia e à liberdade individuais, que nos faz esquecer
as origens primeiras do liberalismo, enraizadas num contexto comunitário, laços
familiares e uma sociedade civil forte. Os excessos individualistas
deixam-nos mais desprotegidos, pelo que passamos a depender mais do estado, de
quem exigimos sempre mais e mais. E isso coloca-nos em oposição ao propósito
liberal: menos autónomos e mais susceptíveis
à lógica do mercado selvagem.
Pensemos também nesta espécie de emancipação
biológica que muitos retiram dos princípios liberais: a ideia
de que nos podemos emancipar do corpo, da biologia e da criação, gerando, nessa
ilusão de autoidentificação divina, um mundo emocionalmente desarticulado e sem
adequação entre regras sociais e corpos materiais.
E consideremos, por fim, a ideia de neutralidade
moral que foi sendo imposta ao liberalismo e que teria
deixado atónitos John Locke ou Adam Smith. Na medida
em que absolutizam o princípio do
consentimento, as sociedades liberais
tendem a admitir que tudo é aceitável desde que consentido. Mas
quando deixamos que essa ideia se estabeleça, tornamo-nos incapazes de traçar
limites que se baseiam na dignidade e no
respeito que devemos ao outro e de reforçar as estruturas de solidariedade
que dão forma ao tecido comunitário.
Afinal, como diz Christine Emba, no seu
maravilhoso Rethinking Sex: “Podemos
desejar liberdade hoje, mas queremos sentido amanhã e para o resto das nossas
vidas.”
AMOR E SEXO LIFESTYLEREVOLUÇÃO HISTÓRIA CULTURA
COMENTÁRIPOS (de 21)
João Floriano: Gostei mais de ler o primeiro
ensaio. Quanto a este, o segundo achei sobretudo importante afirmar que do
pescoço para cima homens e mulheres são muito diferentes e atrevo-me a dizer
que isso acontece também da cintura para baixo, e isso se não considerarmos o
mito romântico do coração. Fisiologicamente homem e mulher são bem diferentes
sendo a fisiologia feminina bem mais complexa do que a masculina. Isso terá
certamente reflexos nos comportamentos e estados de alma. A revolução sexual
foi evoluindo para libertinagem, procurando-se parceria para um sábado à noite
ou num site de encontros, ou no ruido de um bar. A insatisfação está garantida. Emanuel
Jardim > Américo Silva: E assim se perdeu uma Avó
extraordinária com a morte de uma Mãe desnecessária. Carlos
Chaves: Cara Patrícia Fernandes, excelente ensaio as duas crónicas que trouxe até
nós! Afinal o feminismo, o machismo e a libertinagem sexual, não fazem qualquer
sentido na nossa evolução como seres humanos. Bem-haja!
Emanuel
Jardim: Artigo extraordinário sem dúvida. Deve ser lido por todos, principalmente
pelos ultra-liberais e pelos promotores das novas tendências de organização
social de esquerda um pouco por todo o Mundo. As famílias tradicionais e
convencionais serão sempre a base da sociedade nos países desenvolvidos.
Respeito quem opta pelas variantes e desvios, no entanto recuso-me a dar-lhes
tempo de antena. Tenho três filhos para cuidar, orientar e sobretudo proteger e
amar.
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