Profundamente sórdida,
ordenada por um homem profundo vencedor em sordidez, que o mundo saúda, ou
simplesmente aceita. Sordidamente.
▲Soldados ucranianos
combatem na linha da frente
Global Images Ukraine via Getty
Ucrânia volta ao ataque e começa nova
ofensiva "ambiciosa" em Kursk. O que pode ganhar
com isso?
Zelensky quer evitar intensificação de combates na Ucrânia e obrigar
Rússia a desviar recursos para Kursk. E também ganhar força em eventuais
negociações. Moscovo garante que situação está controlada.
OBSERVADOR, 07 jan. 2025, 17:18
O início de 2025 trouxe novidades no
campo de batalha para a Ucrânia. As Forças Armadas do país iniciaram,
durante este fim-de-semana, uma fulminante
ofensiva na província russa de Kursk, perto da fronteira
ucraniana, colocando pressão nas tropas russas e norte-coreanas que defendem a
região. No terreno, a situação é complexa, há vários relatos e ainda não se
sabem bem quais terão sido as consequências da operação militar de Kiev, que
garante não querer ficar com nenhum território da Rússia.
A ofensiva ocorre numa altura em que
a Rússia continua a fazer progressos no leste da Ucrânia. Esta segunda-feira, o Ministério da
Defesa russo garantiu que controla a integridade da localidade de Pokrovsk,
um importante centro logístico para as tropas ucranianas. Moscovo prossegue na
dianteira, sendo que Kiev está a ter
dificuldades em travar os avanços do adversário no Donbass. Os ataques em Kursk
servem, por isso, como uma forma de tentar dividir as atenções das tropas leais
ao Kremlin.
Numa guerra também feita de percepções,
o objectivo da liderança da Ucrânia é igualmente demonstrar que o país ainda
tem capacidades para enfrentar directamente a Rússia — e que está longe da
derrota completa. Sendo
ainda capaz de atacar, os ucranianos pretendem essencialmente enviar também uma
mensagem de força ao Presidente eleito norte-americano, Donald Trump,
que está a quinze dias de tomar posse e que estabeleceu como uma das promessas
eleitorais terminar o conflito em 24 horas.
Mapa da região de Kursk
Temendo sentar-se à mesa das
negociações numa posição de desvantagem face aos representantes do Kremlin, o
Presidente ucraniano, Volodymyr Zelenksy,
deseja fortalecer diplomaticamente o país que lidera. Em agosto de 2024, quando tropas da
Ucrânia entraram em Kursk pela primeira vez e fizeram avanços consideráveis no
teatro de operações, existiu uma sensação de triunfo para Kiev, ao mesmo tempo
que Vladimir Putin parecia ter sofrido uma “humilhação” — era a primeira vez
que tropas de outro país tinham entrado na Rússia desde o final da Segunda
Guerra Mundial, sendo que os russos não conseguiam travar a ofensiva ucraniana.
Mas também é certo que muitos dos
objectivos estratégicos iniciais da ofensiva ucraniana de agosto de 2024
acabaram por não se concretizar. Conjecturava-se que, por exemplo, a Rússia transferiria tropas da linha da
frente para Kursk; ora, Moscovo não o
fez e a Ucrânia continuou a sofrer vários revezes no campo de batalha. Além
disso, o Kremlin recorreu à Coreia do Norte para
enviar homens para a região russa fronteiriça da Ucrânia.
Não são claros ainda quais são os
objectivos desta ofensiva ucraniana — e se resultarão na plenitude. A Rússia está a tentar defender-se e
Vladimir Putin já enviou um experiente
general da sua confiança,
Yunus-Bek Yevkurov, para Kursk. Independentemente do desfecho, a Ucrânia parece não
desistir de tentar provar que ainda tem força no campo de batalha.
▲Veículos
militares ucranianos perto de Kursk Anadolu via Getty Images
Uma ofensiva começada na manhã deste
domingo, as “três vagas de ataques” e a resposta russa
O think tank Instituto para o Estudo da Guerra (ISW) fez uma análise do
primeiro dia da ofensiva em Kursk. Segundo
aquele órgão norte-americano, as tropas ucranianas voltaram à ofensiva“
em pelo menos três áreas” às 6h00 (mais três horas em Kursk) deste domingo. Embora as forças de Kiev ainda se mantenham em Kursk,
a Rússia recuperou, desde agosto, alguns territórios. Antes deste fim de
semana, a Ucrânia mantinha-se à defesa, ao passo que os russos levavam a cabo
uma contraofensiva.
Isso
mudou este domingo e as tropas ucranianas levaram a cabo “três vagas
de ataques”. As
informações foram depois confirmadas por bloggers militares russos, de acordo com a CNN
internacional: “O
inimigo colocou reservas na ofensiva na região de Kursk”. Nesse
ataque, segundo as mesmas fontes, as
Forças Armadas da Ucrânia usaram “poderosos sistemas de guerra electrónica”
que dificultaram o trabalho dos drones russos. “Há batalhas com armas
ligeiras. A nossa artilharia e tanques estão a lutar contra o inimigo.”
Entre
as tropas russas, segundo os bloggers, a ofensiva não foi propriamente uma
surpresa, se bem que ainda não seja completamente claro quais serão os objectivos. Como
escreve o ISW num relatório divulgado já esta segunda-feira, existem dúvidas se não é apenas um
“exercício de diversão” das tropas da Ucrânia, ou se são um prenúncio para uma
ofensiva ainda maior.
Isso não significa, segundo o
Instituto para o Estudo da Guerra, que
não tenha havido apreensão entre as tropas de Moscovo. “As fontes
russas expressaram preocupação sobre a capacidade militar russa para reagir aos
esforços combinados da Ucrânia entre guerra electrónica, ataques de longo
alcance e operações terrestres“, lê-se no relatório desta segunda-feira.
Como é prática habitual, e tal como
aconteceu em agosto de 2024, a Ucrânia
manteve-se quase em silêncio sobre a sua ofensiva em Kursk. O chefe do
gabinete de Volodymyr Zelensky, Andriy Yermak, escreveu no Telegram que a Rússia estava a “ter o que merecia”.
No mesmo sentido, Andriy Kovalenko,
líder do Centro contra a Desinformação, confirmou que as tropas russas estavam “muitos ansiosas porque estavam a ser
atacadas de várias direcções”.
Por seu turno, o Ministério
da Defesa da Rússia confirmou, num
comunicado, os ataques ucranianos. Esta segunda-feira, noutro
documento, assegurava que a Ucrânia não estava a
obter qualquer êxito no campo de batalha. “As acções determinadas dos militares — com apoio da aviação e da
artilharia — abortaram a tentativa de ofensiva do exército ucraniano. A maior
parte das forças inimigas foi aniquilada nas proximidades de Khotor Berdin , frisou
a Defesa russa, ressalvando, contudo, que a “operação para neutralizar as Forças Armadas ucranianas estava em
progresso”.
"As acções determinadas dos militares — com
apoio da aviação e da artilharia — abortaram a tentativa de ofensiva do
exército ucraniano. A maior parte das forças inimigas foi aniquilada nas
proximidades de Khotor Berdin"
Ministério da Defesa da Rússia
No domingo, Vladimir Putin foi rápido
a reagir para impedir o sucesso da ofensiva. Segundo o jornal britânico Telegraph e a imprensa russa, horas
depois de a Ucrânia começar a ofensiva, Vladimir Putin decidiu que Yunus-Bek Yevkurov, um general de topo e
que trabalhou na salvaguarda dos interesses dos grupos mercenários russos em
África, seria enviado para Kursk para vigiar as operações.
Na sua conta de Telegram, o governador de Kursk, Alexander
Khinshtein, deu mais detalhes sobre um encontro que manteve este domingo de
manhã com o general. “Não vou entrar em detalhes da conversa, mas posso dizer
uma coisa com certeza: o governo da região de Kursk fará todo o possível para
ajudar as nossas Forças Armadas na luta sagrada contra o nazismo. O inimigo
será derrotado. A vitória será nossa.”
Estas informações foram negadas
entretanto pelo comandante do exército ucraniano, Mykhailo
Drapaty. Em declarações à Agence France-Presse, a alta
patente militar assegurou que a Ucrânia estava a fazer avanços. “Na região de Kursk, estamos de forma
confiante a infligir perdas“, sublinhou.
Pressionar Putin, enviar uma mensagem
a Trump e dar uma nova perspectiva sobre as chances ucranianas: o objectivo de
Zelensky
As últimas demonstrações do Ocidente
são de apoio a esta ofensiva. Numa nota enviada à Reuters, o gabinete da alta representante
para a Política Externa e para a Política de Segurança, Kaja Kallas, assinalou
que a Ucrânia tem o direito de se defender, segundo Direito
Internacional. “Esse
direito estende-se além das suas fronteiras. A guerra injusta de Moscovo contra
a Ucrânia incluiu numerosos ataques russos que são originários da região de
Kursk. Por isso, as forças militares russas são alvos legítimos de acordo com o
Direito Internacional.”
Menos diplomático foi o secretário de
Estado norte-americano, Antony Blinken. Ainda que não tenha comentado directamente
esta nova ofensiva, o chefe da diplomacia dos Estados Unidos salientou que a manutenção de Kursk é “importante” para
a Ucrânia, explicando que pode servir como uma moeda de troca em futuras negociações. “Certamente é um factor que vai surgir numas
negociações.”
▲ Antony
Blinken acredita que manutenção de Kursk pode ajudar Ucrânia na mesa das
negociações OLGA FEDOROVA/EPA
Este
será um dos principais objectivos de Volodymyr Zelensky. Como
explica à Radio Free Europe o analista militar russo Yan
Matveyev, será difícil para Ucrânia “ocupar vastos territórios na
região de Kursk”, incluindo a própria cidade que serve de capital à província
russa fronteiriça com território ucraniano. Assim, mais
do que um objectivo puramente expansionista, Kiev está “a tentar aumentar a sua
influência antes de negociações”.
O contexto é fundamental, como interpreta o Telegraph. Esta ofensiva “ambiciosa” estará a deixar o Presidente russo
preocupado — e pode pôr em causa a estratégia que tem seguido nas últimas
semanas. Recentemente, para ganhar vantagem na mesa das negociações, a Rússia tem
avançado no leste de território ucraniano, assistindo-se a uma intensificação
das hostilidades. Por exemplo, nos meses de novembro e dezembro, a
Ucrânia perdeu o controlo de
mais de mil quilómetros quadrados de território.
O objectivo do Kremlin é demonstrar ao
Presidente eleito norte-americano que a Ucrânia não tem quaisquer chances de
vencer o conflito, sendo uma causa perdida que não vale a pena Donald Trump
apoiar. Ora, a quinze dias da tomada de posse do novo, não é certamente um bom
sinal para as ambições de Vladimir Putin que a Ucrânia volte ao ataque.
▲ Zelensky
quer mostrar a Trump que Ucrânia ainda pode ter influência no campo de batalha UKRAINE
PRESIDENTIAL PRESS SERVICE / HANDOUT/EPA
Por várias vezes, Vladimir
Putin insistiu que a região de Kursk seria libertada das tropas da Ucrânia. No seu balanço do ano, realizado a 19 de
dezembro, o Presidente russo assegurou que os militares ucranianos seriam
“definitivamente expulsos” da região. Não deu, contudo, qualquer data para que
isso aconteça, de modo a “não pressionar os militares”.
A região de Kursk continua, por isso,
a ser uma dor de cabeça para Vladimir Putin, pois pode servir como uma vantagem
à mesa das negociações para a Ucrânia. Contudo, alguns
especialistas duvidam igualmente da eficácia deste trunfo de Kiev. Em declarações à RBC Ukraine, o especialista militar e antigo
membro dos serviços secretos ucranianos, Ivan Stupak, disse que a
ideia de usar Kursk como uma “moeda de troca” parece ser “razoável”. Contudo,
realçou que, em termos práticos, “não consegue imaginar” de que forma é
que Kiev poderá usar essa vantagem.
O mesmo especialista considera
que esta ofensiva tem como finalidade forçar o inimigo a retirar tropas de
pontos quentes na linha da frente — como Pokrovsk e Kurakhove — e direccioná-las
para Kursk. No discurso diário desta segunda-feira, o
Presidente ucraniano revelou que o objectivo de Kiev é idêntico: “O
importante é que o ocupante não consiga redireccionar toda a sua força para
outras direcções, em particular em Donetsk, Sumy, Kharkiv ou Zaporíjia”.
“Continuamos a manter uma zona
tampão em território russo. Destruímos activamente potencial militar russo”, prosseguiu
Volodymyr Zelensky, enumerando que a Rússia já sofreu 38 mil baixas em Kursk
desde o início da ofensiva. O Presidente da Ucrânia aproveitou ainda para
agradecer a quem “trouxe a guerra de volta à Rússia”, providenciando à Ucrânia
“força e segurança”.
Seis meses depois do início da primeira
invasão a território russo neste conflito, Volodymyr Zelensky continua a acreditar que esta é a forma
mais correcta de pressionar o Kremlin. Ainda que desta vez não conte com o
elemento surpresa que caracterizou o que aconteceu em agosto, a Ucrânia mostra
estar disposta a fazer tudo para chegar mais forte a uma mesa das negociações,
aproveitando todas as debilidades de Rússia.
MUNDO RÚSSIA VOLODYMYR
ZELENSKY VLADIMIR
PUTIN
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