Que surjam escritas ou vozes de gente jovem que se atrevam a erguer
conceitos de honradez, denunciando, simultaneamente, os malabarismos usuais que
seria conveniente reprimir. A Pátria, pequena que seja, merece respeito, nos
valores seguidos pelas suas gentes, que a fabricação de artifícios nas
negociatas naturalmente envilece. As vozes jovens defendendo a honestidade,
entre os mais conceitos, dão-nos a esperança num futuro, embora não já o nosso,
mas dos nossos. Daí, que também agradeço este valioso texto de MARGARIDA BENTES
PENEDO, bem de raça e de coragem.
Menos burocracia, menos corrupção
A corrupção está na burocracia: mais burocracia, mais corrupção,
mais decisões viciadas, mais erros políticos e administrativos. Esta lei dos
solos aboliu uma camada burocrática acima dos municípios.
MARGARIDA BENTES
PENEDO Arquitecta e deputada municipal
OBSERVADOR, 30 jan. 2025, 00:1840
O Expresso, que
antigamente era um jornal, publicou uma espécie de notícia sobre a alteração ao
Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, a famosa “lei dos solos”. Para dar à coisa um aspecto credível ou “isento”, revestiu-se de
especialistas. Perguntou-lhes umas coisas, tomou nota de outras, no fim
vale a pena basearmo-nos naquilo para desfazer uma série de mitos.
Foi publicado no dia 23 de Janeiro,
com o título: “Casas, hotéis, piscinas: 94% dos projectos urbanísticos
inspeccionados tinham ilegalidades”. O corpo do texto informava-nos
que a Inspecção Geral da Agricultura, Mar, Ambiente e
Ordenamento do Território (IGAMAOT) investigou 1.312 operações
urbanísticas entre 2020 e 2024. Identificou ilegalidades em 94% delas,
distribuídas por 59 concelhos (o Expresso
dizia “municípios”).
A primeira coisa a perceber é que a
alegada notícia do Expresso é enganadora. E demagógica. O título, e os primeiros parágrafos, insinuam que as
câmaras andam pela paisagem a aprovar obras ilegais. Afinal, das 1.312 obras
inspeccionadas pelo IGAMAOT, 1.118 são obras clandestinas. Por outras palavras,
uma maioria esmagadora, superior a 85% das obras inspeccionadas, não é da
responsabilidade das câmaras. É da responsabilidade dos autores da obras, que
fogem dos licenciamentos porque sabem que se metem num inferno burocrático do
qual trazem atrasos garantidos e preços de obras estratosféricos. Os processos
de licenciamento estão submetidos a regras impossíveis de cumprir; e a
arbitrariedade desta circunstância leva a que nenhum técnico de nenhuma câmara
se responsabilize de coração leve pela aprovação rápida dos pedidos.
E o mais importante: quem
eram as “entidades externas” que emitiam e deixaram de emitir um parecer decisivo? Eram as
CCDR (Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional), entendidas como
delegações da administração central nas várias regiões do país. Mas suavemente, em pequenos passos de
alteração estatutária, as CCDR foram convertidas em Institutos Públicos, com
regime especial, integrados na administração indirecta do Estado; com personalidade jurídica
própria, e com autonomia administrativa, financeira, e patrimonial.
Os especialistas não se alarmam com
esta opacidade? Não apresentam queixa no Expresso? No fim de contas, as CCDR são organismos públicos, com
dinheiros públicos, com poderes públicos, e direito privado. São os
organismos menos escrutináveis, mais protegidos, mais permeáveis à corrupção.
Quem é que se lembra de escrutinar um Instituto Público? Quais são os
mecanismos desse escrutínio? Quem é que sabe como isso se faz? Onde andam os
especialistas? Não querem contar ao Expresso, ou a um jornal, o que se passa
nos institutos deles?
Os especialistas usaram estas
informações deturpadas do Expresso (a
que chamam “brutais”, mas deviam chamar manhosas) para se oporem à nova “lei dos solos”. Que alteração é esta? Em que consiste, principalmente, a nova “lei dos
solos”? Ela permite converter solos rústicos
em urbanos para construir habitação. A ideia é
aumentar a quantidade de terrenos urbanos disponíveis para se construírem mais
casas e, com isso, fazer descer o preço da habitação. A básica lei da oferta e
da procura. Em havendo mais casas, e mantendo-se o número de compradores, elas
serão vendidas mais baratas.
Segundo a nova “lei dos solos”, para
decidir esta conversão de terrenos rústicos em urbanos basta a vontade dos
executivos camarários e a aprovação das assembleias municipais, sem necessidade
de pareceres vinculativos por parte de entidades externas. Os especialistas alarmados dizem que isto vai
favorecer a corrupção porque as câmaras e assembleias municipais “podem
deliberar a favor dos seus próprios terrenos ou dos correligionários
políticos”. Não compreendem, os tais
especialistas, que a corrupção raramente vai ao encontro de correligionários
políticos, e frequentemente vai direitinha aos potenciais adversários e a quem
quer que tenha poder para se opor aos decisores.
De maneira que não é verdade, nada indica que a nova “lei dos solos” vá
favorecer a corrupção. Pelo contrário. Tudo indica que ela vai
reduzir a corrupção, sobretudo
a grande corrupção.
A corrupção está na burocracia.
Quanto mais burocracia, mais corrupção; e quanto mais corrupção, mais decisões
viciadas, mais erros políticos e administrativos. A nova
“lei dos solos” aboliu uma camada burocrática acima dos municípios. Quanto mais
alta for a camada burocrática, mais altos são os valores envolvidos e mais alta
é a corrupção. A
grande corrupção está próxima do Estado central, a pequena e média corrupção
está sobretudo junto às autarquias. Era bom que o Expresso
e os especialistas transmitissem aos leitores esta verdade simples: o pior da
corrupção não está no deslize de dinheiros imorais para o bolso dos políticos;
está na quantidade e qualidade de erros que os poderes públicos impõem ao país
em troca desses dinheiros. Sobretudo os poderes públicos protegidos pelo
direito privado.
JUSTIÇA HABITAÇÃO E
URBANISMO PAÍS POLÍTICA
SOCIEDADE
COMENTÁRIOS (de 40)
J. D.L.: Excelente
artigo! Que vem dizer alto e a boa voz o que toda a
gente ligada à construção, por esse país fora, não só sabe como experimenta
diariamente na pele. Mas com os procuradores todos ocupados com o caso Sócrates
não há tempo nem vontade para investigar e pôr cobro à presente vergonha.
José B Dias: Verdades incómodas ... PS: O Expresso já há
muito tempo que deixou de ser um jornal. Maria
Paula Silva: Parabéns
pela assertividade. Não
sei como está a burocracia nos países africanos, ex-colónias... há 50 anos que
lá não vou, mas imagino que deve ser "pesada". Dos países que
conheço, só há um país que supera Portugal em termos de burocracia: o Brasil. É
um inferno. Tirem-se as ilações. Obrigada, MBP (continuo sempre a aprender muito
consigo lol) SDC Cruz: Mais uma excelente crónica. É por estas e por
outras inverdades que há muito deixei de ser assinante do Expresso. Eduardo
Cunha: Excelente
crónica. Parabéns. Carlos
Chaves: “O Expresso, que antigamente era um
jornal,(…)” Obrigado Margarida Bentes Penedo, por denunciar estes pasquins que
outrora já foram jornais de referência, mas tal como as prostitutas,
venderam-se a outros interesses neste caso à esquerda mentirosa. Tenha cuidado,
pois escreve num que também vai pelo mesmo caminho, a não ser que o efeito
Trump, lhes venha abrir os olhos! Paulo
Almeida: Muito
bom, como explicar algo complexo de forma tão simples. Parabéns Margarida pelo
serviço que presta à sociedade. Se um sistema tem pouca complexidade, poucos
intervenientes, pouca burocracia, não se consegue instalar tanta corrupção. E
se as regras forem claras e os prazos escrutinados, isto flui. Mas muita gente
não quer isso, são os parasitas da sociedade.
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