sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

É um bem


Que surjam escritas ou vozes de gente jovem que se atrevam a erguer conceitos de honradez, denunciando, simultaneamente, os malabarismos usuais que seria conveniente reprimir. A Pátria, pequena que seja, merece respeito, nos valores seguidos pelas suas gentes, que a fabricação de artifícios nas negociatas naturalmente envilece. As vozes jovens defendendo a honestidade, entre os mais conceitos, dão-nos a esperança num futuro, embora não já o nosso, mas dos nossos. Daí, que também agradeço este valioso texto de MARGARIDA BENTES PENEDO, bem de raça e de coragem.

Menos burocracia, menos corrupção

A corrupção está na burocracia: mais burocracia, mais corrupção, mais decisões viciadas, mais erros políticos e administrativos. Esta lei dos solos aboliu uma camada burocrática acima dos municípios.

MARGARIDA BENTES PENEDO Arquitecta e deputada municipal

OBSERVADOR, 30 jan. 2025, 00:1840

O Expresso, que antigamente era um jornal, publicou uma espécie de notícia sobre a alteração ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, a famosa “lei dos solos”. Para dar à coisa um aspecto credível ou “isento”, revestiu-se de especialistas. Perguntou-lhes umas coisas, tomou nota de outras, no fim vale a pena basearmo-nos naquilo para desfazer uma série de mitos.

Foi publicado no dia 23 de Janeiro, com o título: “Casas, hotéis, piscinas: 94% dos projectos urbanísticos inspeccionados tinham ilegalidades”. O corpo do texto informava-nos que a Inspecção Geral da Agricultura, Mar, Ambiente e Ordenamento do Território (IGAMAOT) investigou 1.312 operações urbanísticas entre 2020 e 2024. Identificou ilegalidades em 94% delas, distribuídas por 59 concelhos (o Expresso dizia “municípios”).

A primeira coisa a perceber é que a alegada notícia do Expresso é enganadora. E demagógica. O título, e os primeiros parágrafos, insinuam que as câmaras andam pela paisagem a aprovar obras ilegais. Afinal, das 1.312 obras inspeccionadas pelo IGAMAOT, 1.118 são obras clandestinas. Por outras palavras, uma maioria esmagadora, superior a 85% das obras inspeccionadas, não é da responsabilidade das câmaras. É da responsabilidade dos autores da obras, que fogem dos licenciamentos porque sabem que se metem num inferno burocrático do qual trazem atrasos garantidos e preços de obras estratosféricos. Os processos de licenciamento estão submetidos a regras impossíveis de cumprir; e a arbitrariedade desta circunstância leva a que nenhum técnico de nenhuma câmara se responsabilize de coração leve pela aprovação rápida dos pedidos.

E o mais importante: quem eram as “entidades externas” que emitiam e deixaram de emitir um parecer decisivo? Eram as CCDR (Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional), entendidas como delegações da administração central nas várias regiões do país. Mas suavemente, em pequenos passos de alteração estatutária, as CCDR foram convertidas em Institutos Públicos, com regime especial, integrados na administração indirecta do Estado; com personalidade jurídica própria, e com autonomia administrativa, financeira, e patrimonial.

Os especialistas não se alarmam com esta opacidade? Não apresentam queixa no Expresso? No fim de contas, as CCDR são organismos públicos, com dinheiros públicos, com poderes públicos, e direito privado. São os organismos menos escrutináveis, mais protegidos, mais permeáveis à corrupção. Quem é que se lembra de escrutinar um Instituto Público? Quais são os mecanismos desse escrutínio? Quem é que sabe como isso se faz? Onde andam os especialistas? Não querem contar ao Expresso, ou a um jornal, o que se passa nos institutos deles?

Os especialistas usaram estas informações deturpadas do Expresso  (a que chamam “brutais”, mas deviam chamar manhosas) para se oporem à nova “lei dos solos”. Que alteração é esta? Em que consiste, principalmente, a nova “lei dos solos”? Ela permite converter solos rústicos em urbanos para construir habitação. A ideia é aumentar a quantidade de terrenos urbanos disponíveis para se construírem mais casas e, com isso, fazer descer o preço da habitação. A básica lei da oferta e da procura. Em havendo mais casas, e mantendo-se o número de compradores, elas serão vendidas mais baratas.

Segundo a nova “lei dos solos”, para decidir esta conversão de terrenos rústicos em urbanos basta a vontade dos executivos camarários e a aprovação das assembleias municipais, sem necessidade de pareceres vinculativos por parte de entidades externas. Os especialistas alarmados dizem que isto vai favorecer a corrupção porque as câmaras e assembleias municipais “podem deliberar a favor dos seus próprios terrenos ou dos correligionários políticos”. Não compreendem, os tais especialistas, que a corrupção raramente vai ao encontro de correligionários políticos, e frequentemente vai direitinha aos potenciais adversários e a quem quer que tenha poder para se opor aos decisores.

De maneira que não é verdade, nada indica que a nova “lei dos solos” vá favorecer a corrupção. Pelo contrário. Tudo indica que ela vai reduzir a corrupção, sobretudo a grande corrupção.

A corrupção está na burocracia. Quanto mais burocracia, mais corrupção; e quanto mais corrupção, mais decisões viciadas, mais erros políticos e administrativos. A nova “lei dos solos” aboliu uma camada burocrática acima dos municípios. Quanto mais alta for a camada burocrática, mais altos são os valores envolvidos e mais alta é a corrupção. A grande corrupção está próxima do Estado central, a pequena e média corrupção está sobretudo junto às autarquias. Era bom que o Expresso e os especialistas transmitissem aos leitores esta verdade simples: o pior da corrupção não está no deslize de dinheiros imorais para o bolso dos políticos; está na quantidade e qualidade de erros que os poderes públicos impõem ao país em troca desses dinheiros. Sobretudo os poderes públicos protegidos pelo direito privado.

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COMENTÁRIOS (de 40)

J. D.L.: Excelente artigo! Que vem dizer alto e a boa voz o que toda a gente ligada à construção, por esse país fora, não só sabe como experimenta diariamente na pele. Mas com os procuradores todos ocupados com o caso Sócrates não há tempo nem vontade para investigar e pôr cobro à presente vergonha.                      José B Dias: Verdades incómodas ... PS: O Expresso já há muito tempo que deixou de ser um jornal.                     Maria Paula Silva: Parabéns pela assertividade. Não sei como está a burocracia nos países africanos, ex-colónias... há 50 anos que lá não vou, mas imagino que deve ser "pesada". Dos países que conheço, só há um país que supera Portugal em termos de burocracia: o Brasil. É um inferno. Tirem-se as ilações. Obrigada, MBP (continuo sempre a aprender muito consigo lol)                    SDC Cruz: Mais uma excelente crónica. É por estas e por outras inverdades que há muito deixei de ser assinante do Expresso.                Eduardo Cunha: Excelente crónica. Parabéns.        Carlos Chaves:  “O Expresso, que antigamente era um jornal,(…)” Obrigado Margarida Bentes Penedo, por denunciar estes pasquins que outrora já foram jornais de referência, mas tal como as prostitutas, venderam-se a outros interesses neste caso à esquerda mentirosa. Tenha cuidado, pois escreve num que também vai pelo mesmo caminho, a não ser que o efeito Trump, lhes venha abrir os olhos!                             Paulo Almeida: Muito bom, como explicar algo complexo de forma tão simples. Parabéns Margarida pelo serviço que presta à sociedade. Se um sistema tem pouca complexidade, poucos intervenientes, pouca burocracia, não se consegue instalar tanta corrupção. E se as regras forem claras e os prazos escrutinados, isto flui. Mas muita gente não quer isso, são os parasitas da sociedade.

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