É o que é. Que respeita os valores importantes dos roubos. Já que os valores
insignificantes dão mais pano para as mangas aos nossos protestos de virtude.
O ladrão de casacas da Vinted
A vigarice de colarinho branco, e subsequentes
fatos de Rodeo Drive, é invejada. Quando a vigarice se resume ao furto de jeans
pré-lavadas e peúgas sujas o “tuga”, implacável, cai-lhe em cima com zelo
ALBERTO GONÇALVES Colunista do Observador
OBSERVADOR, 25 jan. 2025, 00:20126
Miguel Arruda, o
ex-deputado do Chega que roubava malas nos aeroportos para vender o recheio em
sites de roupa usada, é sintoma de algumas coisas em que ninguém reparou, e
serviu para ilações equívocas que todos tiraram.
Vamos por partes. Desde logo, o desprezo pelo empreendedorismo do dr.
Arruda traduz o desprezo caseiro pela iniciativa privada. Uma pessoa, e por acaso uma pessoa que fizera
toda a carreira na dependência do Estado, arrisca aos 40 anos lançar-se na
selva capitalista dos negócios “on line” e vê-se imediatamente condicionada
pela polícia e pela inveja. E isto apesar (ou por causa) de a página do dr. Arruda na tal Vinted
contar com 185 opiniões de clientes altamente satisfeitos, e uma média de 4
estrelas e meia.
A segunda
coisa que
os esforços do dr. Arruda corroboram são os baixos salários dos políticos em
Portugal. Um parlamentar que auferisse rendimento digno não teria de arranjar
trabalho em part-time e a desoras para compor o pé de meia e, nesta particular
situação, o pé de sapatilha, o pé de camisa, o pé de calças, etc.
A terceira
coisa revelada nos biscates do dr. Arruda são os baixos
salários dos portugueses, pelo menos dos portugueses que percorrem as rotas
Lisboa-Ponta Delgada e vice-versa. A julgar pela
roupa extraída das famosas malas, invariavelmente de marcas baratinhas, e pelo
público interessado em adquiri-la usada, uma
preocupante quantidade de cidadãos está a um passo de se vestir no Exército de
Salvação.
A quarta
coisa é a escassa
ambição de que padecemos. Numa época que popularizou bilionários do
calibre de Musk, Bezos, Zuckerberg e Gates, celebridades com fortunas
definidas pela longa série de zeros à direita, o dr. Arruda vendia os “seus”
produtos a preços entre o euro e os 5 euros, a que acresciam portes irrisórios. Ou o objectivo do homem era
alcançar os 12 (doze) euros de lucro mensal, ou o exercício afinal consistia
numa adaptação insular da justiça de Robin Hood, na qual se rouba aos
relativamente pobres para vender aos completamente tesos.
Por fim, a quinta coisa é a demonstração
da insegurança que muitos percepcionam e, no que toca aos donos das malas,
experimentam. Não é preciso ir ao
Martim Moniz para levar uma facada. No
Humberto Delgado são esfaqueadas a confiança na Groundforce, nos cadeados da
Samsonite e nos representantes do povo. Disto não se
fala.
E o que se
fala não faz sentido. Ao contrário do que tantos garantiram, os
expedientes fora do expediente do dr. Arruda não provam a hipocrisia do Chega
no que toca às exigências de “seriedade” dos políticos. Prova, evidentemente, a
hipocrisia da criatura em questão, que ao que consta se fartava de invocar nas
“redes sociais” a “honestidade” de Salazar. Embora não
abone a favor dos critérios de angariação de candidatos, não há suspeitas de
que a direcção do partido conhecesse previamente o esquema das malas, e ainda
menos que estivesse envolvida no dito, a fim de repartir o saque a cerca de 42
cêntimos por cabeça. Um pelintra que
decide angariar bagagem alheia (e é enxotado de seguida) não compromete o
partido como, sei lá, o despedimento à bruta de mães lactantes comprometeria.
Em simultâneo, o
dr. Arruda também não compromete os 49 antigos colegas, e não os transforma por
vontade do “komentariado” pátrio numa quadrilha de assaltantes potenciais ou no
activo. Ou no mínimo num bando de grunhos sem maneiras (de disfarçar a
grunhice). É óbvio que o Chega – e não só – não está carente de grunhos. E em
última instância é possível que o Chega – ou qualquer partido – pouse na AR
corruptos, violadores e até “serial-killers”, mas nada disto decorre das
práticas do deputado agora “não inscrito” ou se reflecte nelas. O facto de um parlamentar
socialista saber ler não assegura que os demais sejam alfabetizados.
O que parece ficar deste
episódio burlesco, além do vestuário extraviado e dos incontáveis “memes” na
internet, é a forma consensual com que os portugueses correram a considerá-lo
o momento mais baixo da história do regime – e a confirmação de que “nós”,
Chega, classe política, sociedade, Ocidente, planeta, batemos no fundo.
Prezadas vítimas da amnésia: para não citar casos menores, há não demasiado tempo tivemos um primeiro-ministro que se apropriou
indevidamente de milhões. Não se tratou de uns trocos em malas e
farrapos. Foram largos milhões de euros. Depois
disso, não há fundo falso. E, durante anos, não houve vergonha. Durante anos,
eleitores, serviçais e parceiros fecharam os olhos às proezas do famoso
“engenheiro” e continuaram a aplaudir-lhe a “visão”. Mesmo depois de
as proezas serem claríssimas e inegáveis, foi necessário que o artista caísse
em desgraça e na Ericeira para que amigos e namoradas jurassem pelas alminhas que
nunca o tinham visto, e o transeunte anónimo jurasse que nunca o elegera.
O que fica
realmente disto tudo é o enésimo exemplo da nossa velha subserviência à força,
e da nossa soberba face à fraqueza. O princípio aplica-se à vida
corriqueira e à oculta: o desprezo dos portugueses pelos ladrões é
inversamente proporcional à dimensão do roubo. A vigarice de colarinho
branco, e subsequentes fatos de Rodeo Drive, é no fundo invejada. Quando a
vigarice se resume ao furto de colarinhos brancos, jeans pré-lavadas e peúgas
sujas, o “tuga”, implacável, cai-lhe em cima com zelo e doses generosas de
repulsa. O pilha-galinhas, ou malinhas, aqui não vai longe. O criminoso com
poder vai até onde o deixarmos. E costumamos deixar.
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