domingo, 26 de janeiro de 2025

Moralidade de alto calibre


É o que é. Que respeita os valores importantes dos roubos. Já que os valores insignificantes dão mais pano para as mangas aos nossos protestos de virtude.

O ladrão de casacas da Vinted

A vigarice de colarinho branco, e subsequentes fatos de Rodeo Drive, é invejada. Quando a vigarice se resume ao furto de jeans pré-lavadas e peúgas sujas o “tuga”, implacável, cai-lhe em cima com zelo

ALBERTO GONÇALVES Colunista do Observador

OBSERVADOR, 25 jan. 2025, 00:20126

Descobrir

Miguel Arruda, o ex-deputado do Chega que roubava malas nos aeroportos para vender o recheio em sites de roupa usada, é sintoma de algumas coisas em que ninguém reparou, e serviu para ilações equívocas que todos tiraram.

Vamos por partes. Desde logo, o desprezo pelo empreendedorismo do dr. Arruda traduz o desprezo caseiro pela iniciativa privada. Uma pessoa, e por acaso uma pessoa que fizera toda a carreira na dependência do Estado, arrisca aos 40 anos lançar-se na selva capitalista dos negócios “on line” e vê-se imediatamente condicionada pela polícia e pela inveja. E isto apesar (ou por causa) de a página do dr. Arruda na tal Vinted contar com 185 opiniões de clientes altamente satisfeitos, e uma média de 4 estrelas e meia.

A segunda coisa que os esforços do dr. Arruda corroboram são os baixos salários dos políticos em Portugal. Um parlamentar que auferisse rendimento digno não teria de arranjar trabalho em part-time e a desoras para compor o pé de meia e, nesta particular situação, o pé de sapatilha, o pé de camisa, o pé de calças, etc.

A terceira coisa revelada nos biscates do dr. Arruda são os baixos salários dos portugueses, pelo menos dos portugueses que percorrem as rotas Lisboa-Ponta Delgada e vice-versa. A julgar pela roupa extraída das famosas malas, invariavelmente de marcas baratinhas, e pelo público interessado em adquiri-la usada, uma preocupante quantidade de cidadãos está a um passo de se vestir no Exército de Salvação.

A quarta coisa  é a escassa ambição de que padecemos. Numa época que popularizou bilionários do calibre de Musk, Bezos, Zuckerberg e Gates, celebridades com fortunas definidas pela longa série de zeros à direita, o dr. Arruda vendia os “seus” produtos a preços entre o euro e os 5 euros, a que acresciam portes irrisórios. Ou o objectivo do homem era alcançar os 12 (doze) euros de lucro mensal, ou o exercício afinal consistia numa adaptação insular da justiça de Robin Hood, na qual se rouba aos relativamente pobres para vender aos completamente tesos.

Por fim, a quinta coisa é a demonstração da insegurança que muitos percepcionam e, no que toca aos donos das malas, experimentam. Não é preciso ir ao Martim Moniz para levar uma facada. No Humberto Delgado são esfaqueadas a confiança na Groundforce, nos cadeados da Samsonite e nos representantes do povo. Disto não se fala.

E o que se fala não faz sentido. Ao contrário do que tantos garantiram, os expedientes fora do expediente do dr. Arruda não provam a hipocrisia do Chega no que toca às exigências de “seriedade” dos políticos. Prova, evidentemente, a hipocrisia da criatura em questão, que ao que consta se fartava de invocar nas “redes sociais” a “honestidade” de Salazar. Embora não abone a favor dos critérios de angariação de candidatos, não há suspeitas de que a direcção do partido conhecesse previamente o esquema das malas, e ainda menos que estivesse envolvida no dito, a fim de repartir o saque a cerca de 42 cêntimos por cabeça. Um pelintra que decide angariar bagagem alheia (e é enxotado de seguida) não compromete o partido como, sei lá, o despedimento à bruta de mães lactantes comprometeria.

Em simultâneo, o dr. Arruda também não compromete os 49 antigos colegas, e não os transforma por vontade do “komentariado” pátrio numa quadrilha de assaltantes potenciais ou no activo. Ou no mínimo num bando de grunhos sem maneiras (de disfarçar a grunhice). É óbvio que o Chega – e não só – não está carente de grunhos. E em última instância é possível que o Chega – ou qualquer partido – pouse na AR corruptos, violadores e até “serial-killers”, mas nada disto decorre das práticas do deputado agora “não inscrito” ou se reflecte nelas. O facto de um parlamentar socialista saber ler não assegura que os demais sejam alfabetizados.

O que parece ficar deste episódio burlesco, além do vestuário extraviado e dos incontáveis “memes” na internet, é a forma consensual com que os portugueses correram a considerá-lo o momento mais baixo da história do regime – e a confirmação de que “nós”, Chega, classe política, sociedade, Ocidente, planeta, batemos no fundo. Prezadas vítimas da amnésia: para não citar casos menores, há não demasiado tempo tivemos um primeiro-ministro que se apropriou indevidamente de milhões. Não se tratou de uns trocos em malas e farrapos. Foram largos milhões de euros. Depois disso, não há fundo falso. E, durante anos, não houve vergonha. Durante anos, eleitores, serviçais e parceiros fecharam os olhos às proezas do famoso “engenheiro” e continuaram a aplaudir-lhe a “visão”. Mesmo depois de as proezas serem claríssimas e inegáveis, foi necessário que o artista caísse em desgraça e na Ericeira para que amigos e namoradas jurassem pelas alminhas que nunca o tinham visto, e o transeunte anónimo jurasse que nunca o elegera.

O que fica realmente disto tudo é o enésimo exemplo da nossa velha subserviência à força, e da nossa soberba face à fraqueza. O princípio aplica-se à vida corriqueira e à oculta: o desprezo dos portugueses pelos ladrões é inversamente proporcional à dimensão do roubo. A vigarice de colarinho branco, e subsequentes fatos de Rodeo Drive, é no fundo invejada. Quando a vigarice se resume ao furto de colarinhos brancos, jeans pré-lavadas e peúgas sujas, o “tuga”, implacável, cai-lhe em cima com zelo e doses generosas de repulsa. O pilha-galinhas, ou malinhas, aqui não vai longe. O criminoso com poder vai até onde o deixarmos. E costumamos deixar.

 

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