quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

“Canoa de vela erguida”

 

Foi o que logo me acudiu à mente optimista mas preocupada, ao ler a crónica do historiador e romancista JOÃO PEDRO MARQUES sobre a indiferença insolente, pelo real saber, da sociedade woke: a expressiva canção de Carlos do Carmo - “Canoa de vela erguida” - sujeita ao abalroamento, pobrezinha, dada a sua pequenez de "muro" (pesado embora), no meio do Tejo flutuante:

Canoa de vela erguida,
Que vens do Cais da Ribeira,
Gaivota, que andas perdida,
Sem encontrar companheira

O vento sopra nas fragas,
O Sol parece um morango,
E o Tejo baila com as vagas
A ensaiar um fandango
Canoa,
Conheces bem
Quando há norte pela proa,
Quantas voltas tem Lisboa,
E as muralhas que ela tem…

Canoa,
Por onde vais?
Se algum barco te abalroa,
Nunca mais voltas ao cais,
Nunca, nunca, nunca mais.

 

Canoa de vela panda,
Que vens da boca da barra,
E trazes na aragem branda
Gemidos de uma guitarra

Teu arrais prendeu a vela,
E se adormeceu, deixá-lo
Agora muita cautela,
Não vá o mar acordá-lo

[refrão]

(Letra e música de Frederico de Brito)

Mas, de facto, é muita presunção da minha parte: talvez a tal sociedade woke nem mereça tal canção, que dedico, antes, ao autor do texto que segue, e aos seus comentadores sem subentendidos:

O muro

O wokismo é um pós-modernismo aplicado, activo e actuante, causador das ondas de exagero e intolerância canceladora que têm atingido o mundo ocidental. O muro faz parte dos seus instrumentos de defesa

JOÃO PEDRO MARQUES Historiador e romancista

OBSERVADOR, 21 jan. 2025, 00:1830

Em 2016, a convite de uma colega que então leccionava a cadeira de História de Cabo Verde na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, fui lá dar uma aula sobre escravatura. Fiz o meu melhor, expus, em termos gerais, o que sabia sobre o assunto e o que tinha investigado durante décadas, mas confrontei-me com uma espécie de barreira renitente, ou de muro de silêncio, e fiquei com a sensação, eventualmente injusta, de que os alunos, na sua maioria africanos ou afrodescendentes, não acreditaram numa única palavra do que eu disse. Aparentemente aquelas pessoas já possuíam uma versão da história muito arrumada, muito rígida, muito carregada politicamente, na qual os meus ensinamentos, as minhas informações, não encaixavam, e daí que estivessem estanques e cépticos relativamente ao conhecimento que eu tentei transmitir.

O debate público sobre escravatura e outras questões de história colonial em que me envolvi de Abril de 2017 em diante, veio confirmar repetidamente essa minha primeira sensação. Aparentemente, e no que se refere à história da escravatura, muitas pessoas, sobretudo as que podemos situar na esquerda woke, cristalizaram numa posição política inamovível e tornaram-se avessas, refractárias, à aquisição de novas perspectivas e de novos conhecimentos.

Recordam-se de Another Brick in the Wall?

We don’t need no education, we don’t need no thought control No dark sarcasm in the classroom. Teacher, leave them kids alone Hey, teacher, leave them kids alone! All in all, it’s just another brick in the Wall All in all, you’re just another brick in the wall

Sim, é a canção de 1979, dos Pink Floyd, que alude a certas pessoas — jovens alunos, no caso — que constroem, tijolo a tijolo, muros metafóricos em seu redor para se protegerem, e às suas identidade e convicções, de ameaças e alterações vindas de fora. O muro imaginado pelos Pink Floyd faz lembrar aquele que o woke tem em torno de si para os preservar do conhecimento rigoroso ou de ideias que vão contra as suas emoções e convicções. Por norma, essas pessoas não debatem, não contestam as provas, não apresentam contraprovas e documentos, limitam-se a rejeitar o conhecimento e a acarinhar um pseudo-saber que mais não é do que uma mitologia. Ou seja, para além de terem construído ou adoptado esse muro, essencialmente defensivo, os woke pintaram-no, revestiram-no, de um suposto conhecimento e estão firmemente convencidos de que ele é cientificamente tão válido, ou historicamente tão bem fundado, como aquele dos que os contestam.

Ora, de onde lhes vem esse convencimento? Se bem que as suas raízes estejam mais atrás e incluam muitas vertentes, é incontestável que ele recebeu um impulso vigoroso com o pós-modernismo, um movimento que se afirmou na década de 1960, que teve como pais inspiradores Michel Foucault, Jean-François Lyotard e outros, e que é, entre outras coisas, uma tentativa de reabilitar a figura do outro ou do excluído, e uma contestação da hegemonia do pensamento que começou a afirmar-se na Idade Moderna e que levou à vitória da ciência sobre a crendice e a superstição.

Em Portugal um dos expoentes do pós-modernismo é — ou foi — Boaventura de Sousa Santos, autor do então muito divulgado e lido Um Discurso Sobre as Ciências, um livrinho de 54 páginas, publicado pela primeira vez em 1987, no qual escreveu, por exemplo, que “a ciência moderna não é a única explicação possível da realidade e não há sequer qualquer razão científica para a considerar melhor que as explicações alternativas da metafísica, da astrologia, da religião, da arte ou da poesia” (p. 52). Esta e outras afirmações de igual quilate, que punham em causa não só as ciências naturais, mas outras formas de conhecimento, nomeadamente a História neopositivista, indignaram a tal ponto o já desaparecido António Manuel Baptista que este conhecido físico resolveu dedicar-lhe dois livros de refutação: Discurso Pós-Moderno Contra a Ciência. Obscurantismo e Irresponsabilidade(2002) e Crítica da Razão Ausente (2004), e envolver-se num debate nos jornais, debate no qual outros contendores apareceram a defender ou a atacar Sousa Santos e este, como é comum em gente de esquerda, veio classificar a crítica que lhe faziam como sendo a voz de uma “nova direita”, e insultar o seu incómodo contraditor, chamando-lhe “alarve”.

Devo aqui dizer que conheci António Manuel Baptista, ao qual me ligam relações de parentesco, bem como de consideração pessoal e intelectual, mas isso não tem qualquer relevância para o caso. Ainda que nunca o tivesse conhecido e com ele privado, não me seria difícil, lendo ambos, tomar o seu partido. É que Boaventura de Sousa Santos afirma, por exemplo, que “todo o conhecimento científico é autoconhecimento” (p. 52); ou que a tal ciência pós-moderna por que anseia deverá “dialogar com outras formas de conhecimento” — em particular com o senso comum — “deixando-se penetrar por elas” (pp. 55).

António Manuel Baptista demoliu estas concepções de ciência de uma maneira que em larga medida subscrevo, e considerou que o livrinho de Sousa Santos estava “para lá de qualquer correcção possível. Mas mais importante do que tomar partido por um ou outro dos participantes naquele debate, o que importa sublinhar é que o pós-modernismo foi espalhando aos quatro ventos a convicção de que o conhecimento científico não podia implicar a depreciação ou exclusão de outro tipo de saberes, e que as memórias e histórias conjecturais eram tão válidas como a que se estribava firmemente no estudo crítico de documentos. Assinale-se, a título de exemplo dessa ampla difusão, que o livrinho de Boaventura de Sousa Santos teve 16 edições, e, como o próprio nos informou, muitos professores o usaram na preparação das aulas e o recomendaram aos seus alunos.

Em 2002, em entrevista ao Expresso, António Manuel Baptista confessou-se particularmente preocupado com “os efeitos do apelo romântico que alguns escritos pós-modernos podem exercer no sistema educativo”. Tinha toda a razão pois o pensamento contra a ciência e contra a forma neopositivista de fazer História, vindo de muitos emissores ao mesmo tempo, já estava a disseminar-se como um cancro pelo país. Não é, portanto, surpresa vermos, actualmente, imensas pessoas de esquerda, sobretudo nas (ou vindas das) universidades, a reproduzirem mantras do pós-modernismo. Joacine Katar Moreira, por exemplo, afirmou, convicta, que as ideias de “objetividade, imparcialidade e neutralidade do conhecimento científico são falácias totais — e precisam ser combatidas”. Pior. Ainda que alguns pós-modernos se pronunciem contra o wokismo, o pós-modernismo, ao dar combustível intelectual à vontade milenarista de reparação das injustiças presentes e passadas, ajudou a gerar esse movimento. Para a pessoa woke as coisas são tentadoramente simples: o Ocidente terá hiper-valorizado a racionalidade e a ciência, mas tê-lo-á feito porque isso alicerçava e perpetuava o seu próprio poder e marginalizava as formas não-racionais e não-científicas de conhecimento provenientes de outras partes do mundo. Assim, o que será agora necessário fazer é desvalorizar as formas ocidentais e brancas de conhecimento, e valorizar as outras para promover um equilíbrio de poder (uma prática vulgarmente designada por descolonização do pensamento). E com base nesse diagnóstico e nessa ideia correctora, os woke, sendo activistas, passam apressadamente ao acto ou, inversamente, à omissão e ao cancelamento. E foi, no fundo, por essa razão que os alunos a que me referi no início deste artigo se recusaram a tomar conhecimento e a aceitar como válidas verdades históricas que iriam contra o seu desejo de promover um equilíbrio de poderes.

Ou seja, o wokismo é, até certo ponto, um pós-modernismo aplicado, activo e actuante, causador das ondas de exagero e intolerância canceladora que têm atingido o mundo ocidental. O muro faz parte dos seus instrumentos de defesa e, por isso, o diálogo e o confronto de argumentos vai-se tornando cada vez mais impossível, como Patrícia Fernandes assinalou aqui no Observador. Aliás, já em 2002 António Manuel Baptistaescrevera que “não se pode argumentar contra Boaventura Sousa Santos pela razão simples de que raramente usa argumentos”. Esses ainda eram os tempos em que os pedreiros punham os primeiros tijolos num muro de incomunicabilidade que, de então para cá, não tem parado de crescer. Conviria demoli-lo, claro, mas enquanto os woke se comportarem e virem o mundo como os jovens alunos dos Pink Floyd, será difícil fazê-lo.

BOAVENTURA SOUSA SANTOS     PAÍS      WOKISMO

COMENTÁRIOS (de 30)

Maria Augusta Martins: Oh homem! não perca tempo a refutar essas concepções tribais e animistas! Esses gajos caíram da árvore que lhes dava abrigo há quatro ou cinco gerações e ainda não tiveram tempo, nem inteligência, nem vontade para fazer o "agiornamento". O caso do Boaventura Montanelas do Barcouço é um caso típico de arterosclerose cerebral combinada com demência pré frontal e priapismo senil e lingual!                    Carlos Chaves: Caro João Pedro Marques pelo menos uma esperança abriu-se ontem no horizonte… Essa nova forma de controlo “subtil” da esquerda será derrotada e a ciência, a razão e os factos sairão vencedores!               Tim do A: Viva Trump!!! A esperança de um mundo normal!               Manuel Lisboa: "Wokismo" (e tudo o que implica este termo) é igual a ignorância. Mais, ser "woke" ou defender teses "woke" corresponde à pior superstição medieval, pois significa recuar, no mínimo, ao século XIV. Nos séculos XV, XVI e XVII na Europa ainda se podem desculpar dúvidas e medos supersticiosos; a partir do século XVIII com o avanço das ciências, das leis e, de forma tímida, das normas de sociabilidade, revelou-se insustentável a permanência da superstição. Todavia, esta última persistiu. A superstição tomou novas formas, através, por exemplo, do "darwinismo" e seus estúpidos e tantas vezes aterradores derivados como o hediondo vómito nazi. Nos finais do século XX e neste século assiste-se à superstição "woke" profundamente retrógrada, que pretende impor conceitos obtusos e absurdos às sociedades, desde o primitivismo tonto, a vanguardas artísticas ridículas e ilegíveis, passando por invenções científicas baseadas apenas na negação da própria ciência. As cabeças das pessoas ficam perigosamente ocas de saber e valores em consequência de tanta estupidez e intolerância.                     joaquim Duarte: Brilhante e esclarecido como sempre, o problema não é o bouças de Coimbra que ninguém já lhe dá qualquer crédito, é que o wokismo é um polvo espalhado nas escolas, universidades, comunicação social, governos e nas mais altas instituições europeias              Tomazz Man: Há uma geração - ou várias - perdidas. É focar-nos nas que se seguem.                Duarte B.: O wokismo só vai conseguir uma coisa, estragar o ambiente de tolerância que se conseguiu criar em boa parte do mundo ocidental.                Mário Silva: Não esqueça de juntar os terraplanistas, os criacionistas, os anti-vacinas, os maoistas, estalinistas e todas as outras tribos que rejeitam a ciência, mandam os intelectuais para campos de concentração / extermínio, ou os fuzilam até lhes doer o dedo no gatilho                 Maria Augusta Martins > João Floriano: Não, isso faz parte do "quadro clínico"! Também lhe podemos juntar a surdez selectiva, o meteorismo sulfidrílico e a polidipsia vinícola.                   Manuel Magalhaes: O wokismo é mais um cancro para as sociedades ocidentais, eu diria mesmo para qualquer sociedade que se respeite!!!         Francisco Almeida: Aviso prévio: sou estruturalmente pessimista. Quando numa sociedade ou mais genericamente, numa civilização, coexistem duas facções inconciliáveis e incomunicáveis entre si, de duas, uma, ou se extingue uma das facções ou se extingue a civilização.                     José B Dias: E o "muro" estende-se já à volta de praticamente tudo ... a lógica é a de que "quem não está connosco está contra nós"!

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