Foi o que logo me acudiu à mente optimista mas preocupada, ao ler a
crónica do historiador e romancista JOÃO PEDRO
MARQUES sobre a indiferença insolente, pelo real saber, da sociedade
woke: a expressiva canção de Carlos do Carmo - “Canoa de vela erguida” - sujeita
ao abalroamento, pobrezinha, dada a sua pequenez de "muro" (pesado embora), no meio do Tejo flutuante:
Canoa de vela erguida,
Que vens do Cais da Ribeira,
Gaivota, que andas perdida,
Sem encontrar companheira
O
vento sopra nas fragas,
O Sol parece um morango,
E o Tejo baila com as vagas
A ensaiar um fandango
Canoa,
Conheces bem
Quando há norte pela proa,
Quantas voltas tem Lisboa,
E as muralhas que ela tem…
Canoa,
Por onde vais?
Se algum barco te abalroa,
Nunca mais voltas ao cais,
Nunca, nunca, nunca mais.
Canoa
de vela panda,
Que vens da boca da barra,
E trazes na aragem branda
Gemidos de uma guitarra
Teu
arrais prendeu a vela,
E se adormeceu, deixá-lo
Agora muita cautela,
Não vá o mar acordá-lo
[refrão]
(Letra e música de Frederico de Brito)
Mas, de facto, é muita presunção da minha parte: talvez a tal sociedade
woke nem mereça tal canção, que dedico, antes, ao autor do texto que segue, e
aos seus comentadores sem subentendidos:
O muro
O wokismo é um
pós-modernismo aplicado, activo e actuante, causador das ondas de exagero e
intolerância canceladora que têm atingido o mundo ocidental. O muro faz parte
dos seus instrumentos de defesa
JOÃO PEDRO MARQUES Historiador e romancista
OBSERVADOR, 21 jan. 2025, 00:1830
Em 2016, a convite de uma colega que então leccionava a cadeira de
História de Cabo Verde na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, fui lá dar uma aula sobre escravatura.
Fiz o meu melhor, expus, em termos gerais, o que sabia sobre o assunto e o que
tinha investigado durante décadas, mas confrontei-me
com uma espécie de barreira renitente, ou de muro de silêncio, e fiquei com a
sensação, eventualmente injusta, de que os alunos, na sua maioria africanos ou
afrodescendentes, não acreditaram numa única palavra do que eu disse. Aparentemente aquelas pessoas já possuíam
uma versão da história muito arrumada, muito rígida, muito carregada
politicamente, na qual os meus ensinamentos, as minhas informações, não
encaixavam, e daí que estivessem estanques e cépticos relativamente ao
conhecimento que eu tentei transmitir.
O debate público sobre
escravatura e outras questões de história colonial em que me envolvi de Abril
de 2017 em diante, veio confirmar repetidamente essa minha primeira sensação.
Aparentemente, e no que se refere à história da escravatura, muitas pessoas,
sobretudo as que podemos situar na esquerda woke, cristalizaram numa posição
política inamovível e tornaram-se avessas, refractárias, à aquisição de novas
perspectivas e de novos conhecimentos.
Recordam-se de Another Brick in the Wall?
We don’t need no education, we
don’t need no thought control No dark sarcasm in the
classroom. Teacher, leave them kids alone Hey, teacher, leave
them kids alone! All in all, it’s just another brick in the Wall All in all, you’re just another brick in the wall
Sim, é a canção de 1979, dos Pink Floyd, que alude a certas pessoas
— jovens alunos, no caso — que constroem, tijolo a tijolo, muros metafóricos em
seu redor para se protegerem, e às suas identidade e convicções, de ameaças e
alterações vindas de fora. O muro
imaginado pelos Pink Floyd faz lembrar aquele que o woke tem em torno de si
para os preservar do conhecimento rigoroso ou de ideias que vão contra as suas
emoções e convicções. Por norma, essas pessoas não debatem, não
contestam as provas, não apresentam contraprovas e documentos, limitam-se a
rejeitar o conhecimento e a acarinhar um pseudo-saber que mais não é do que uma
mitologia. Ou seja, para além de terem construído ou adoptado esse muro,
essencialmente defensivo, os woke pintaram-no, revestiram-no, de um suposto
conhecimento e estão firmemente convencidos de que ele é cientificamente tão
válido, ou historicamente tão bem fundado, como aquele dos que os contestam.
Ora, de onde lhes vem esse convencimento? Se bem que as suas raízes
estejam mais atrás e incluam muitas vertentes, é incontestável que ele recebeu um impulso vigoroso com o pós-modernismo,
um movimento que se afirmou na década de 1960, que teve como pais inspiradores
Michel Foucault, Jean-François Lyotard e outros, e que é, entre outras coisas,
uma tentativa de reabilitar a figura do outro ou do excluído, e uma contestação
da hegemonia do pensamento que começou a afirmar-se na Idade Moderna e que
levou à vitória da ciência sobre a crendice e a superstição.
Em Portugal um dos expoentes do
pós-modernismo é — ou foi — Boaventura de Sousa Santos, autor do
então muito divulgado e lido Um
Discurso Sobre as Ciências, um livrinho de 54 páginas, publicado pela primeira
vez em 1987, no qual escreveu, por exemplo, que “a ciência moderna não é a única explicação possível da realidade e
não há sequer qualquer razão científica para a considerar melhor que as
explicações alternativas da metafísica, da astrologia, da religião, da arte ou
da poesia” (p. 52). Esta
e outras afirmações de igual quilate, que punham em causa não só as ciências
naturais, mas outras formas de conhecimento, nomeadamente a História
neopositivista, indignaram a tal ponto o já desaparecido António
Manuel Baptista que este
conhecido físico resolveu dedicar-lhe dois livros de refutação: Discurso
Pós-Moderno Contra a Ciência. Obscurantismo e Irresponsabilidade(2002) e Crítica
da Razão Ausente (2004), e envolver-se
num debate nos jornais, debate no qual outros contendores apareceram a defender ou a atacar Sousa Santos e este, como é comum em gente de
esquerda, veio classificar a crítica que lhe faziam como sendo a voz de uma “nova direita”, e insultar o seu
incómodo contraditor, chamando-lhe “alarve”.
Devo aqui dizer que conheci António
Manuel Baptista, ao qual me ligam relações de parentesco, bem como de
consideração pessoal e intelectual, mas isso não tem qualquer relevância
para o caso. Ainda que nunca o tivesse conhecido e com ele privado, não me
seria difícil, lendo ambos, tomar o seu partido. É que Boaventura de Sousa Santos afirma, por exemplo, que “todo o
conhecimento científico é autoconhecimento” (p. 52); ou que a tal ciência
pós-moderna por que anseia deverá “dialogar com outras formas de conhecimento”
— em particular com o senso comum — “deixando-se penetrar por elas” (pp. 55).
António Manuel Baptista demoliu estas concepções de ciência de
uma maneira que em larga medida subscrevo, e considerou que o livrinho de Sousa
Santos estava “para lá
de qualquer correcção possível”. Mas mais
importante do que tomar partido por um ou outro dos participantes naquele
debate, o que importa sublinhar
é que o pós-modernismo foi espalhando aos quatro ventos a convicção de que o
conhecimento científico não podia implicar a depreciação ou exclusão de outro
tipo de saberes, e que as memórias e histórias conjecturais eram tão válidas
como a que se estribava firmemente no estudo crítico de documentos.
Assinale-se, a título de exemplo dessa ampla difusão, que o livrinho
de Boaventura de Sousa Santos teve 16 edições, e, como o próprio nos informou,
muitos professores o usaram na preparação das aulas e o recomendaram aos seus
alunos.
Em 2002, em entrevista ao Expresso, António
Manuel Baptista confessou-se particularmente preocupado com “os efeitos do apelo romântico que alguns
escritos pós-modernos podem exercer no sistema educativo”. Tinha
toda a razão pois o pensamento contra a ciência e contra a forma neopositivista
de fazer História, vindo de muitos emissores ao mesmo tempo, já estava a
disseminar-se como um cancro pelo país. Não é, portanto, surpresa vermos,
actualmente, imensas pessoas de esquerda, sobretudo nas (ou vindas das)
universidades, a reproduzirem mantras do pós-modernismo. Joacine Katar Moreira, por
exemplo, afirmou, convicta, que
as ideias de “objetividade, imparcialidade e neutralidade do conhecimento
científico são falácias totais — e precisam ser combatidas”. Pior. Ainda que alguns pós-modernos se pronunciem contra o
wokismo, o pós-modernismo, ao dar combustível intelectual à vontade milenarista
de reparação das injustiças presentes e passadas, ajudou a gerar esse
movimento. Para a pessoa woke as coisas são tentadoramente
simples: o Ocidente terá hiper-valorizado a racionalidade e a ciência, mas
tê-lo-á feito porque isso alicerçava e perpetuava o seu próprio poder e
marginalizava as formas não-racionais e não-científicas de conhecimento
provenientes de outras partes do mundo. Assim,
o que será agora necessário fazer é desvalorizar as formas ocidentais e brancas
de conhecimento, e valorizar as outras para promover um equilíbrio de poder
(uma prática vulgarmente designada por descolonização do pensamento). E com
base nesse diagnóstico e nessa ideia correctora, os woke, sendo activistas,
passam apressadamente ao acto ou, inversamente, à omissão e ao cancelamento. E foi, no fundo, por essa razão que os
alunos a que me referi no início deste artigo se recusaram a tomar conhecimento
e a aceitar como válidas verdades históricas que iriam contra o seu desejo de
promover um equilíbrio de poderes.
Ou seja, o wokismo é, até certo
ponto, um pós-modernismo aplicado, activo e actuante, causador das ondas de
exagero e intolerância canceladora que têm atingido o mundo ocidental. O muro faz parte dos seus instrumentos de defesa e,
por isso, o diálogo e o confronto de argumentos vai-se tornando cada vez mais
impossível, como Patrícia Fernandes
assinalou aqui no Observador. Aliás, já
em 2002 António Manuel Baptistaescrevera que “não
se pode argumentar contra Boaventura Sousa Santos pela razão simples de que
raramente usa argumentos”. Esses ainda eram os tempos em que os
pedreiros punham os primeiros tijolos num muro de incomunicabilidade que, de
então para cá, não tem parado de crescer. Conviria demoli-lo, claro, mas
enquanto os woke se comportarem e virem o mundo como os jovens alunos dos Pink
Floyd, será difícil fazê-lo.
BOAVENTURA
SOUSA SANTOS PAÍS WOKISMO
COMENTÁRIOS (de 30)
Maria Augusta Martins: Oh homem! não perca tempo a refutar
essas concepções tribais e animistas! Esses gajos caíram da árvore que lhes
dava abrigo há quatro ou cinco gerações e ainda não tiveram tempo, nem
inteligência, nem vontade para fazer o "agiornamento". O caso do
Boaventura Montanelas do Barcouço é um caso típico de arterosclerose cerebral
combinada com demência pré frontal e priapismo senil e lingual! Carlos
Chaves: Caro João Pedro Marques pelo menos uma esperança abriu-se ontem no
horizonte… Essa nova forma de controlo “subtil” da esquerda será derrotada e a
ciência, a razão e os factos sairão vencedores! Tim do A: Viva Trump!!! A esperança de um
mundo normal! Manuel Lisboa: "Wokismo" (e tudo o que
implica este termo) é igual a ignorância. Mais, ser "woke" ou
defender teses "woke" corresponde à pior superstição medieval, pois
significa recuar, no mínimo, ao século XIV. Nos séculos XV, XVI e XVII na
Europa ainda se podem desculpar dúvidas e medos supersticiosos; a partir do
século XVIII com o avanço das ciências, das leis e, de forma tímida, das normas
de sociabilidade, revelou-se insustentável a permanência da superstição.
Todavia, esta última persistiu. A superstição tomou novas formas, através, por
exemplo, do "darwinismo" e seus estúpidos e tantas vezes
aterradores derivados como o hediondo vómito nazi. Nos finais do século XX
e neste século assiste-se à superstição "woke" profundamente
retrógrada, que pretende impor conceitos obtusos e absurdos às sociedades,
desde o primitivismo tonto, a vanguardas artísticas ridículas e ilegíveis,
passando por invenções científicas baseadas apenas na negação da própria
ciência. As cabeças das pessoas ficam perigosamente ocas de saber e valores
em consequência de tanta estupidez e intolerância. joaquim Duarte: Brilhante e esclarecido como sempre, o problema não é
o bouças de Coimbra que ninguém já lhe dá qualquer crédito, é que o wokismo
é um polvo espalhado nas escolas, universidades, comunicação social, governos e
nas mais altas instituições europeias Tomazz Man: Há uma geração - ou várias - perdidas. É focar-nos nas
que se seguem. Duarte B.: O
wokismo só vai conseguir uma coisa, estragar o ambiente de tolerância que se
conseguiu criar em boa parte do mundo ocidental. Mário
Silva: Não esqueça
de juntar os terraplanistas, os criacionistas, os anti-vacinas, os maoistas,
estalinistas e todas as outras tribos que rejeitam a ciência, mandam os
intelectuais para campos de concentração / extermínio, ou os fuzilam até lhes
doer o dedo no gatilho Maria
Augusta Martins > João Floriano: Não, isso faz parte do "quadro clínico"! Também
lhe podemos juntar a surdez selectiva, o meteorismo sulfidrílico e a polidipsia
vinícola. Manuel
Magalhaes: O
wokismo é mais um cancro para as sociedades ocidentais, eu diria mesmo para
qualquer sociedade que se respeite!!! Francisco Almeida: Aviso prévio: sou estruturalmente pessimista. Quando
numa sociedade ou mais genericamente, numa civilização, coexistem duas facções
inconciliáveis e incomunicáveis entre si, de duas, uma, ou se extingue uma das
facções ou se extingue a civilização. José B
Dias: E o "muro" estende-se já
à volta de praticamente tudo ... a lógica é a de que "quem não está
connosco está contra nós"!
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