Parecem bem lógicos e sensatos os considerandos sobre a despersonalização criativa, no caso da aplicação da IA às obras pessoais. Todavia, não podemos deixar de pensar que a criatividade humana também se recria com o desenvolvimento cultural e tecnológico, de cedências e contributos mútuos, no decorrer dos tempos.
“Toda a criança é um artista. O problema
é saber como nos mantemos artistas à medida que crescemos” – Pablo Picasso.
RODRIGO ADÃO DA
FONSECA Colunista
OBSERVADOR, 01
abr. 2025, 00:175
Nas últimas semanas assistimos a uma
invasão das redes sociais por imagens ao estilo “anime”, produzidas
através da mais recente funcionalidade do Chat GPT (versão 4.0). Este
fenómeno não se limitou a ser um epifenómeno de massas, ao estilo das “modas”
da internet. Por exemplo, em
Portugal, vários políticos aderiram rapidamente a esta tendência, partilhando
versões animadas das suas próprias imagens em redes sociais, numa clara
tentativa de explorar o fascínio pela novidade tecnológica.
Esta súbita popularidade evidencia um
aspeto recorrente da nossa relação com a tecnologia: o deslumbramento imediato por aquilo que é novo e aparentemente
simples, muitas vezes sem reflexão sobre as suas implicações mais profundas.
Desde logo, fazendo tábua rasa a um
dos maiores problemas associado à IA: a utilização não autorizada de
informação proprietária no pré-treino de modelos de IA de finalidade geral. Estes modelos, como o Chat GPT,
são frequentemente treinados com enormes quantidades de dados, muitos deles
protegidos por direitos de autor. E se, como indica
Ethan Mollick, existem diferenças jurídicas substanciais entre
países (por exemplo, o Japão considera
que treinar modelos de IA não constitui uma violação dos direitos de autor, não
sendo por isso inocente que a moda viral utilize o estilo do nipónico “Studio
Ghibli”), vale a pena reflectir
além da lei, e perguntar até onde queremos sacrificar, em prol de modas e de um
suposto facilitismo, os princípios fundamentais da propriedade intelectual.
A discussão está já na ordem do dia, tendo havido vários artistas que
resgataram afirmações antigas de Hayao
Miyazaki, onde o fundador do “Studio Ghibli” manifesta uma profunda rejeição ao
uso da IA na criação artística, considerando que o que daí resulte carecerá de
empatia, humanidade e compreensão verdadeira do sofrimento e das emoções
humanas. Para Miyazaki, utilizar IA em contextos criativos
não é apenas inadequado, mas constitui um verdadeiro insulto à própria essência
da vida e à dignidade humana, desprovido que é de sensibilidade e respeito pela
experiência real. Este posicionamento é particularmente relevante quando se discute a ética e os limites da
utilização da IA, sobretudo em áreas artísticas que exigem uma compreensão
profunda e genuína da condição humana.
Picasso,
que tanto pintou antes de haver o fascínio pelos oráculos do novo “Deus ex
machina” da IA, remete-nos, avant
la lettre, para o risco associado à utilização acrítica da IA em contextos
criativos: se na nossa génese
somos naturalmente criativos, tal como as crianças, essa capacidade pode ser
condicionada ou mesmo anulada se recorrermos de forma aditiva às soluções
rápidas e imediatas que a IA proporciona. A IA poderá vir a ser valiosa como ferramenta de
co-criação, incentivando e acelerando a criatividade num processo
colaborativo que expanda as nossas capacidades. Porém,
se a utilizarmos apenas como fonte de receitas fáceis, estaremos a perder
gradualmente a nossa capacidade genuína de criar algo verdadeiramente novo e
significativo, trocando a liberdade criativa por aquilo que é simplesmente
cómodo. Como referi
numa crónica já antiga inspirada na obra de Kazuo Ishiguro, “Klara
and the Sun”, apesar da crescente presença da IA nas nossas vidas,
é desejável salvaguardar que características exclusivamente humanas, como a
gestão emocional, a empatia e o pensamento crítico, essenciais para interpretar
e orientar o uso ético e criativo destas tecnologias, não sejam degradadas, sob
risco de, como temos vindo a assistir em “Adolescência”, despojarmos
crescentemente as pessoas da sua própria humanidade.
Não tenhamos ilusões: embora a IA consiga replicar estilos e optimizar
processos, o verdadeiro ato criativo permanece um processo
inerentemente humano e irrepetível, sendo
tudo o que é imediato, instantâneo e fácil – como o que temos assistido na
geração de imagens –meros fogachos de ego facilitados por uma máquina. A
criatividade humana não reside na reprodução de padrões ou estilos, mas na
capacidade única de criar algo genuinamente novo, reflexo da nossa experiência,
emoções e pensamento crítico. E isso implica esforço, nem que seja a
utilização colaborativa com as novas ferramentas da IA.
Sim: a IA apresenta desafios, também, para a exploração das novas
fronteiras da criatividade e da Arte (não estivéssemos perante uma
ferramenta, e não perante um sujeito pensante), mas é fundamental que todos os que temos mais responsabilidade
(neles incluindo, a esforço, políticos e figuras públicas) compreendamos que,
mais do que seguir modas passageiras, precisamos perceber como usamos a IA de
uma forma consciente, útil, e não fútil.
E foi no uso fútil e viral desta funcionalidade que reside a grande
lição do que vimos nos últimos dias, já que a adesão massiva a esta
funcionalidade trouxe consequências técnicas inesperadas. A sobrecarga dos servidores da Open AI
foi de tal ordem que provocou limitações temporárias no acesso ao serviço.
Este efeito secundário
aparentemente ignorado pelos utilizadores demonstra que pouco faltará para que
tenhamos mesmo de ser selectivos no uso da IA, sem proibições legais ou
regulamentares, dadas as limitações objectivas, energéticas e ambientais que um
uso indiscriminado e exponencial acabará por provocar.
Sim: porque se há a prazo, como já
percebemos, tantas utilizações úteis para a IA, não vamos poder desperdiçar
recursos em futilidades. E, não tenhamos dúvidas, não há nada mais sustentável
que a criatividade e o pensamento nascidos da energia do cérebro e do génio
humanos.
REDES SOCIAIS INTERNET TECNOLOGIA INTELIGÊNCIA
ARTIFICIAL SÉRIES CULTURA COMPORTAMENTO SOCIEDADE
COMENTÁRIOS
João Queiroz e Lima: Sem a fotografia não teria aparecido o impressionismo,
o surrealismo, a arte abstracta... Sem a IA não aparecerá o... Jose Leal: O aparecimento destas
ferramentas pode também ajudar a perceber melhor o que é criatividade. A verdade é que ao longo dos
séculos os artistas sempre foram incorporando avanços tecnológicos que os
ajudavam a corporizar a sua criatividade. Nesse sentido é interessante o ChatGPT, pode levar a
um aprofundamento da importância da Criatividade. A Criatividade terá sempre a
sua importância, e será sempre reconhecida. Espero. Maria Paula Silva: Muito bem, como sempre RAF
mostra-nos os dois lados da questão. É por isso que, normalmente, estou de
acordo com as suas crónicas que muito aprecio. A verdade é que, desde que o
Homem existe, desde a Pedra e o Fogo, tudo o que o homem tem inventado pode ser
utilizado para o bem e para o mal. Depende sempre do nível de consciência de
quem utiliza. São apenas ferramentas, se e quando utilizadas com parcimónia,
muito úteis. Se ficarmos grudados nos écrans 24h/dia (há pessoas que atravessam
ruas a olhar atentamente para o tlm, há pessoas que dormem com o tlm debaixo da
almofada, etc), estu pi di fi camos. A demasiada exposição nas redes sociais, por ex.,
voluntária, também me parece muito pouco saudável e na maior parte das vezes
inútil. Todas estas ferramentas são, ou podem ser, muito úteis, mas também nos
fazem perder muito tempo. António
Alberto Barbosa Pinho: Muito bem. José
Piçarra: Não tenhamos ilusões: embora a IA consiga replicar estilos e optimizar
processos, o verdadeiro acto criativo permanece um processo inerentemente
humano e irrepetível, sendo tudo o que é imediato, instantâneo e fácil – como o
que temos assistido na geração de imagens –meros fogachos de ego facilitados
por uma máquina. A criatividade humana não reside na reprodução de padrões ou
estilos, mas na capacidade única de criar algo genuinamente novo, reflexo da
nossa experiência, emoções e pensamento crítico. E isso implica esforço, nem
que seja a utilização colaborativa com as novas ferramentas da IA. Sinceramente, não entendo o
drama disto. Eu nunca considerei "arte" a replicação que a IA faz a
gerar imagens ou textos. É uma curiosidade, uma brincadeira. Obviamente que
isto abre portas a abusos e a novos pseudo-artistas que vão achar-se artistas
ao usarem estas ferramentas. Aqui a humanidade terá de trilhar o seu caminho
enquanto se adapta a esta tecnologia. Mas aqui há vários pontos a considerar. Hoje há n artistas que, com as
suas próprias mãos, dedica a sua arte na replicação de estilos artísticos já
existentes. Quem nunca ouviu falar de "fanart", em que artistas usam
o estilo visual de Miyazaki ou Toriyama, ou o estilo Disney para criarem
personagens e cenários? Aí nunca se colocou a questão dos direitos de autor.
Tal como nunca se colocou em causa o valor artístico dessas pessoas. Sim, a
arte deles não é novidade, é uma dedicatória, um tributo. Mas reconhecemos esse
valor e jamais nos passaria pela cabeça vir cobrar-lhes os direitos de autor só
porque o desenho faz lembrar o Son Goku ou uma princesa Disney. Ou colocar em
causa o seu mérito. Não vejo por que motivo aqui se faria o mesmo relativamente
à IA porque, lá está, o que as ferramentas IA estão aqui a fazer não é criar
arte. É uma replicação, uma brincadeira. Que não devemos subestimar. Temos é de
não ser tontos e chamar as coisas pelos nomes. E saber reconhecer o que tem
mérito ou não, nem que esse mérito seja apenas pelo facto de algo ter sido
feito pelas próprias mãos de alguém, mesmo que o resultado final não seja nada
de especial. Mas queria falar precisamente sobre isso, o mérito artístico. E o que as
tecnologias IA vieram expor. Vamos tomar o seguinte exemplo. Eu pego numa imagem conhecida e pago a um
artista para a replicar usando um determinado estilo. Depois uso uma ferramenta
IA para fazer o mesmo. No fim, tenho duas imagens, uma feita por um artista.
Outra por uma máquina. Se eu mostrar ambas as imagens e perguntar a
desconhecidos na rua qual delas foi feita por um artista e qual foi feita por
uma máquina, saberão responder? A parte pertinente é esta: hoje talvez. Mas e
daqui a uns anos, quando a IA estiver mais aperfeiçoada? Quando, por exemplo,
for possível gerar filmes de animação inteiramente por IA, tão tecnicamente
aperfeiçoados que será muito difícil diferenciar-se de outro filme feito por
humanos? Outro exemplo. Um texto, imagem ou música são gerados por IA (sem que
isso seja imediatamente revelado) e são colocados à disposição de todos. Esse
texto, imagem ou música produzem efeitos
positivos em algumas pessoas, seja uma reacção emocional, seja uma reflexão,
etc. Mais tarde é revelado que foi gerado por IA. O efeito positivo que o
texto, imagem ou música tiveram deve ser imediatamente desvalorizado só porque
foram gerados por máquina? Podemos não reconhecer o dito mérito artístico. Mas
podemos, ou devemos, retirar qualquer mérito? O ponto que quero aqui fazer é: o
que é que consideramos como mérito artístico? O facto de ter sido feita por
humanos? É esse o critério? Porque se for, não é muito forte. Basta olhar para
a arte moderna hoje em dia. Tudo é arte. E por ser considerada arte, tem
imediatamente valor. Mesmo que seja literalmente uma banana colada numa parede,
uma cama desfeita, um quadro com uma linha ao meio, uma sanita de ouro ou um
quadro feio sem qualquer mérito artístico. Não só essas porcarias foram
colocadas ao mesmo nível de peças históricas e de verdadeiro valor artístico
(pelo simples facto de terem sido denominados de "arte"), como elevou
socialmente quem as "produziu". Hoje, ser artista é um estatuto e
qualquer badameco pode ser considerado artista. Com todas as vantagens sociais
que isso implica. Deitaram por terra noções de beleza, proporções, contrastes,
Verdade... Hoje o mérito artístico reside na mensagem política e social. Daí
que faço aqui a seguinte pergunta: se o que verdadeiramente está em causa aqui
não será o "artista", a pessoa com o dito estatuto social e que se
sente ameaçado pelas tecnologias IA? Não pelo facto de IA produzir arte.
Reitero que não considero o que as ferramentas produzem seja "arte".
Mas aquilo que os ditos "artistas" hoje produzem conseguirá
brevemente ser produzido, melhor e em massa pelas ferramentas IA. Não serão
arte, mas terão o mesmo valor que as peças que estes ditos artistas de hoje
produzem. E sim, com isto estou a dizer que grande parte dos ditos
"artistas" de hoje faz, para mim, não é arte. É mediocridade e
propaganda. Mas, como é "artista", tem imediatamente valor. E sendo
maioritariamente de esquerda, estes ditos artistas queixam-se muito da
comoditização da sua arte pelas grandes companhias, mas quando eles o fazem
apenas para auto-promoção social, aí já não se importam que a sua arte seja
apenas uma mera comodidade? Curioso, não é? Mas voltando ao ponto que o
Miyazaki fez. Eu concordo em absoluto com o que ele diz. A questão é que não só
as palavras dele estão, a meu ver, descontextualizadas - porque, novamente, as
imagens ao estilo Ghibli feitas pelo Chatgpt não são arte - como aquilo que ele
disse deveria ser uma reflexão mais profunda que agora as ferramentas AI podem,
ironicamente, ajudar-nos a perceber. O processo artístico é, sobretudo, um
processo pessoal. Na minha opinião, os artistas, os verdadeiros, a pessoa de
essência artística, têm a necessidade de reinterpretar o mundo usando a sua
arte. Não o fazem por reconhecimento alheio. Fazem-no porque sentem essa
necessidade, porque sentem que há uma Verdade mais profunda que deve ser
trazida à luz. E, não surpreendentemente, o resultado final consegue tocar no
âmago de muita gente, porque, lá está, há uma Verdade subjacente ali que nos é
comum e que reconhecemos. Cada um de sua maneira. Isto para dizer, os
verdadeiros artistas, a meu ver, continuarão a produzir a sua arte,
brindando-nos com a sua visão de beleza e verdade. Mas agora, com a introdução
das ferramentas IA, talvez devêssemos aproveitar a oportunidade para fazer uma
reflexão filosófica sobre aquilo que tem sido o pretensiosismo, falsidade e
vaidade dos ditos artistas modernos, que estão só interessados em propaganda e
estatuto social e mover as massas - e que as ferramentas AI, por conseguirem
fazer o mesmo e até melhor, revelam a farsa que esses ditos
"artistas" são. E assim, talvez, podemos começar a valorizar mais a
verdadeira arte, feita por aqueles que não estão preocupados com reconhecimento
alheio nem com vaidade mas apenas em transmitir a sua verdade e beleza,
desprendida de pretensiosismos e segundas intenções. Mas sim com humildade. Pode
ser um romantismo meu, mas acho que temos aqui uma bela oportunidade para fazer
essa reflexão. E meter estes pseudo-artistas no seu devido lugar na História:
na irrelevância. GateKeeper: Top 10. E nem são necessários
comentários adicionais. Só não vê quem está com a cara, os olhos e os ouvidos
exclusivamente centrados nos ecrãs.
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