quarta-feira, 2 de abril de 2025

“Anime” sem Alma?


Parecem bem lógicos e sensatos os considerandos sobre a despersonalização criativa, no caso da aplicação da IA às obras pessoais. Todavia, não podemos deixar de pensar que a criatividade humana também se recria com o desenvolvimento cultural e tecnológico, de cedências e contributos mútuos, no decorrer dos tempos.

 

“Toda a criança é um artista. O problema é saber como nos mantemos artistas à medida que crescemos” – Pablo Picasso.

RODRIGO ADÃO DA FONSECA Colunista

OBSERVADOR, 01 abr. 2025, 00:175

Nas últimas semanas assistimos a uma invasão das redes sociais por imagens ao estilo “anime”, produzidas através da mais recente funcionalidade do Chat GPT (versão 4.0). Este fenómeno não se limitou a ser um epifenómeno de massas, ao estilo das “modas” da internet. Por exemplo, em Portugal, vários políticos aderiram rapidamente a esta tendência, partilhando versões animadas das suas próprias imagens em redes sociais, numa clara tentativa de explorar o fascínio pela novidade tecnológica.

Esta súbita popularidade evidencia um aspeto recorrente da nossa relação com a tecnologia: o deslumbramento imediato por aquilo que é novo e aparentemente simples, muitas vezes sem reflexão sobre as suas implicações mais profundas.

Desde logo, fazendo tábua rasa a um dos maiores problemas associado à IA: a utilização não autorizada de informação proprietária no pré-treino de modelos de IA de finalidade geral. Estes modelos, como o Chat GPT, são frequentemente treinados com enormes quantidades de dados, muitos deles protegidos por direitos de autor. E se, como indica Ethan Mollick, existem diferenças jurídicas substanciais entre países (por exemplo, o Japão considera que treinar modelos de IA não constitui uma violação dos direitos de autor, não sendo por isso inocente que a moda viral utilize o estilo do nipónico “Studio Ghibli”), vale a pena reflectir além da lei, e perguntar até onde queremos sacrificar, em prol de modas e de um suposto facilitismo, os princípios fundamentais da propriedade intelectual. A discussão está já na ordem do dia, tendo havido vários artistas que resgataram afirmações antigas de Hayao Miyazaki, onde o fundador do “Studio Ghibli” manifesta uma profunda rejeição ao uso da IA na criação artística, considerando que o que daí resulte carecerá de empatia, humanidade e compreensão verdadeira do sofrimento e das emoções humanas. Para Miyazaki, utilizar IA em contextos criativos não é apenas inadequado, mas constitui um verdadeiro insulto à própria essência da vida e à dignidade humana, desprovido que é de sensibilidade e respeito pela experiência real. Este posicionamento é particularmente relevante quando se discute a ética e os limites da utilização da IA, sobretudo em áreas artísticas que exigem uma compreensão profunda e genuína da condição humana.

Picasso, que tanto pintou antes de haver o fascínio pelos oráculos do novo “Deus ex machina” da IA, remete-nos, avant la lettre, para o risco associado à utilização acrítica da IA em contextos criativos: se na nossa génese somos naturalmente criativos, tal como as crianças, essa capacidade pode ser condicionada ou mesmo anulada se recorrermos de forma aditiva às soluções rápidas e imediatas que a IA proporciona. A IA poderá vir a ser valiosa como ferramenta de co-criação, incentivando e acelerando a criatividade num processo colaborativo que expanda as nossas capacidades. Porém, se a utilizarmos apenas como fonte de receitas fáceis, estaremos a perder gradualmente a nossa capacidade genuína de criar algo verdadeiramente novo e significativo, trocando a liberdade criativa por aquilo que é simplesmente cómodo. Como referi numa crónica já antiga inspirada na obra de Kazuo Ishiguro, “Klara and the Sun”, apesar da crescente presença da IA nas nossas vidas, é desejável salvaguardar que características exclusivamente humanas, como a gestão emocional, a empatia e o pensamento crítico, essenciais para interpretar e orientar o uso ético e criativo destas tecnologias, não sejam degradadas, sob risco de, como temos vindo a assistir em “Adolescência”, despojarmos crescentemente as pessoas da sua própria humanidade.

Não tenhamos ilusões: embora a IA consiga replicar estilos e optimizar processos, o verdadeiro ato criativo permanece um processo inerentemente humano e irrepetível, sendo tudo o que é imediato, instantâneo e fácil – como o que temos assistido na geração de imagens –meros fogachos de ego facilitados por uma máquina. A criatividade humana não reside na reprodução de padrões ou estilos, mas na capacidade única de criar algo genuinamente novo, reflexo da nossa experiência, emoções e pensamento crítico. E isso implica esforço, nem que seja a utilização colaborativa com as novas ferramentas da IA.

Sim: a IA apresenta desafios, também, para a exploração das novas fronteiras da criatividade e da Arte (não estivéssemos perante uma ferramenta, e não perante um sujeito pensante), mas é fundamental que todos os que temos mais responsabilidade (neles incluindo, a esforço, políticos e figuras públicas) compreendamos que, mais do que seguir modas passageiras, precisamos perceber como usamos a IA de uma forma consciente, útil, e não fútil.

E foi no uso fútil e viral desta funcionalidade que reside a grande lição do que vimos nos últimos dias, já que a adesão massiva a esta funcionalidade trouxe consequências técnicas inesperadas. A sobrecarga dos servidores da Open AI foi de tal ordem que provocou limitações temporárias no acesso ao serviço. Este efeito secundário aparentemente ignorado pelos utilizadores demonstra que pouco faltará para que tenhamos mesmo de ser selectivos no uso da IA, sem proibições legais ou regulamentares, dadas as limitações objectivas, energéticas e ambientais que um uso indiscriminado e exponencial acabará por provocar.

Sim: porque se há a prazo, como já percebemos, tantas utilizações úteis para a IA, não vamos poder desperdiçar recursos em futilidades. E, não tenhamos dúvidas, não há nada mais sustentável que a criatividade e o pensamento nascidos da energia do cérebro e do génio humanos.

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COMENTÁRIOS
João Queiroz e Lima: Sem a fotografia não teria aparecido o impressionismo, o surrealismo, a arte abstracta... Sem a IA não aparecerá o...                  Jose Leal: O aparecimento destas ferramentas pode também ajudar a perceber melhor o que é criatividade. A verdade é que ao longo dos séculos os artistas sempre foram incorporando avanços tecnológicos que os ajudavam a corporizar a sua criatividade. Nesse sentido é interessante o ChatGPT, pode levar a um aprofundamento da importância da Criatividade. A Criatividade terá sempre a sua importância, e será sempre reconhecida. Espero.                   Maria Paula Silva: Muito bem, como sempre RAF mostra-nos os dois lados da questão. É por isso que, normalmente, estou de acordo com as suas crónicas que muito aprecio. A verdade é que, desde que o Homem existe, desde a Pedra e o Fogo, tudo o que o homem tem inventado pode ser utilizado para o bem e para o mal. Depende sempre do nível de consciência de quem utiliza. São apenas ferramentas, se e quando utilizadas com parcimónia, muito úteis. Se ficarmos grudados nos écrans 24h/dia (há pessoas que atravessam ruas a olhar atentamente para o tlm, há pessoas que dormem com o tlm debaixo da almofada, etc), estu pi di fi camos. A demasiada exposição nas redes sociais, por ex., voluntária, também me parece muito pouco saudável e na maior parte das vezes inútil. Todas estas ferramentas são, ou podem ser, muito úteis, mas também nos fazem perder muito tempo.            António Alberto Barbosa Pinho: Muito bem.               José Piçarra: Não tenhamos ilusões: embora a IA consiga replicar estilos e optimizar processos, o verdadeiro acto criativo permanece um processo inerentemente humano e irrepetível, sendo tudo o que é imediato, instantâneo e fácil – como o que temos assistido na geração de imagens –meros fogachos de ego facilitados por uma máquina. A criatividade humana não reside na reprodução de padrões ou estilos, mas na capacidade única de criar algo genuinamente novo, reflexo da nossa experiência, emoções e pensamento crítico. E isso implica esforço, nem que seja a utilização colaborativa com as novas ferramentas da IA. Sinceramente, não entendo o drama disto. Eu nunca considerei "arte" a replicação que a IA faz a gerar imagens ou textos. É uma curiosidade, uma brincadeira. Obviamente que isto abre portas a abusos e a novos pseudo-artistas que vão achar-se artistas ao usarem estas ferramentas. Aqui a humanidade terá de trilhar o seu caminho enquanto se adapta a esta tecnologia. Mas aqui há vários pontos a considerar. Hoje há n artistas que, com as suas próprias mãos, dedica a sua arte na replicação de estilos artísticos já existentes. Quem nunca ouviu falar de "fanart", em que artistas usam o estilo visual de Miyazaki ou Toriyama, ou o estilo Disney para criarem personagens e cenários? Aí nunca se colocou a questão dos direitos de autor. Tal como nunca se colocou em causa o valor artístico dessas pessoas. Sim, a arte deles não é novidade, é uma dedicatória, um tributo. Mas reconhecemos esse valor e jamais nos passaria pela cabeça vir cobrar-lhes os direitos de autor só porque o desenho faz lembrar o Son Goku ou uma princesa Disney. Ou colocar em causa o seu mérito. Não vejo por que motivo aqui se faria o mesmo relativamente à IA porque, lá está, o que as ferramentas IA estão aqui a fazer não é criar arte. É uma replicação, uma brincadeira. Que não devemos subestimar. Temos é de não ser tontos e chamar as coisas pelos nomes. E saber reconhecer o que tem mérito ou não, nem que esse mérito seja apenas pelo facto de algo ter sido feito pelas próprias mãos de alguém, mesmo que o resultado final não seja nada de especial. Mas queria falar precisamente sobre isso, o mérito artístico. E o que as tecnologias IA vieram expor. Vamos tomar o seguinte exemplo. Eu pego numa imagem conhecida e pago a um artista para a replicar usando um determinado estilo. Depois uso uma ferramenta IA para fazer o mesmo. No fim, tenho duas imagens, uma feita por um artista. Outra por uma máquina. Se eu mostrar ambas as imagens e perguntar a desconhecidos na rua qual delas foi feita por um artista e qual foi feita por uma máquina, saberão responder? A parte pertinente é esta: hoje talvez. Mas e daqui a uns anos, quando a IA estiver mais aperfeiçoada? Quando, por exemplo, for possível gerar filmes de animação inteiramente por IA, tão tecnicamente aperfeiçoados que será muito difícil diferenciar-se de outro filme feito por humanos? Outro exemplo. Um texto, imagem ou música são gerados por IA (sem que isso seja imediatamente revelado) e são colocados à disposição de todos. Esse texto, imagem ou música produzem  efeitos positivos em algumas pessoas, seja uma reacção emocional, seja uma reflexão, etc. Mais tarde é revelado que foi gerado por IA. O efeito positivo que o texto, imagem ou música tiveram deve ser imediatamente desvalorizado só porque foram gerados por máquina? Podemos não reconhecer o dito mérito artístico. Mas podemos, ou devemos, retirar qualquer mérito? O ponto que quero aqui fazer é: o que é que consideramos como mérito artístico? O facto de ter sido feita por humanos? É esse o critério? Porque se for, não é muito forte. Basta olhar para a arte moderna hoje em dia. Tudo é arte. E por ser considerada arte, tem imediatamente valor. Mesmo que seja literalmente uma banana colada numa parede, uma cama desfeita, um quadro com uma linha ao meio, uma sanita de ouro ou um quadro feio sem qualquer mérito artístico. Não só essas porcarias foram colocadas ao mesmo nível de peças históricas e de verdadeiro valor artístico (pelo simples facto de terem sido denominados de "arte"), como elevou socialmente quem as "produziu". Hoje, ser artista é um estatuto e qualquer badameco pode ser considerado artista. Com todas as vantagens sociais que isso implica. Deitaram por terra noções de beleza, proporções, contrastes, Verdade... Hoje o mérito artístico reside na mensagem política e social. Daí que faço aqui a seguinte pergunta: se o que verdadeiramente está em causa aqui não será o "artista", a pessoa com o dito estatuto social e que se sente ameaçado pelas tecnologias IA? Não pelo facto de IA produzir arte. Reitero que não considero o que as ferramentas produzem seja "arte". Mas aquilo que os ditos "artistas" hoje produzem conseguirá brevemente ser produzido, melhor e em massa pelas ferramentas IA. Não serão arte, mas terão o mesmo valor que as peças que estes ditos artistas de hoje produzem. E sim, com isto estou a dizer que grande parte dos ditos "artistas" de hoje faz, para mim, não é arte. É mediocridade e propaganda. Mas, como é "artista", tem imediatamente valor. E sendo maioritariamente de esquerda, estes ditos artistas queixam-se muito da comoditização da sua arte pelas grandes companhias, mas quando eles o fazem apenas para auto-promoção social, aí já não se importam que a sua arte seja apenas uma mera comodidade? Curioso, não é? Mas voltando ao ponto que o Miyazaki fez. Eu concordo em absoluto com o que ele diz. A questão é que não só as palavras dele estão, a meu ver, descontextualizadas - porque, novamente, as imagens ao estilo Ghibli feitas pelo Chatgpt não são arte - como aquilo que ele disse deveria ser uma reflexão mais profunda que agora as ferramentas AI podem, ironicamente, ajudar-nos a perceber. O processo artístico é, sobretudo, um processo pessoal. Na minha opinião, os artistas, os verdadeiros, a pessoa de essência artística, têm a necessidade de reinterpretar o mundo usando a sua arte. Não o fazem por reconhecimento alheio. Fazem-no porque sentem essa necessidade, porque sentem que há uma Verdade mais profunda que deve ser trazida à luz. E, não surpreendentemente, o resultado final consegue tocar no âmago de muita gente, porque, lá está, há uma Verdade subjacente ali que nos é comum e que reconhecemos. Cada um de sua maneira. Isto para dizer, os verdadeiros artistas, a meu ver, continuarão a produzir a sua arte, brindando-nos com a sua visão de beleza e verdade. Mas agora, com a introdução das ferramentas IA, talvez devêssemos aproveitar a oportunidade para fazer uma reflexão filosófica sobre aquilo que tem sido o pretensiosismo, falsidade e vaidade dos ditos artistas modernos, que estão só interessados em propaganda e estatuto social e mover as massas - e que as ferramentas AI, por conseguirem fazer o mesmo e até melhor, revelam a farsa que esses ditos "artistas" são. E assim, talvez, podemos começar a valorizar mais a verdadeira arte, feita por aqueles que não estão preocupados com reconhecimento alheio nem com vaidade mas apenas em transmitir a sua verdade e beleza, desprendida de pretensiosismos e segundas intenções. Mas sim com humildade. Pode ser um romantismo meu, mas acho que temos aqui uma bela oportunidade para fazer essa reflexão. E meter estes pseudo-artistas no seu devido lugar na História: na irrelevância.                      GateKeeper: Top 10. E nem são necessários comentários adicionais. Só não vê quem está com a cara, os olhos e os ouvidos exclusivamente centrados nos ecrãs.

 

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