sexta-feira, 4 de abril de 2025

Descolonizações


Termo tabu, à vista, quando se fala em imigrações…

Espanha viu o número de imigrantes multiplicar-se por dez na década de 2000. A maioria é de Marrocos e da América Latina. O sentimento anti-imigração começou a crescer, mas a criminalidade não subiu.

JOÃO FRANCISCO GOMES Texto

OBSERVADOR, 03 abr. 2025, 19:323

Índice

O boom da imigração em Espanha entre 2000 e 2010

Sentimento anti-imigração sobe e extrema-direita aproveita a boleia

Políticas migratórias mais flexíveis, com oposição da extrema-direita

Criminalidade e imigração? Dados mostram que não há ligação

Este é o primeiro de um conjunto de trabalhos alargados do Observador sobre a realidade da imigração na Europa. Numa altura em que o tema das migrações está novamente no topo da agenda mediática, em que o debate sobre os imigrantes se intensifica entre os partidos políticos portugueses e em que a discussão em torno da “percepção de insegurança” em algumas zonas da cidade de Lisboa fez ressurgir o discurso que associa a criminalidade à imigração, o Observador procura traçar um retrato da imigração em vários países europeus. Quantos imigrantes vivem em cada país e de onde vêm? Que políticas migratórias existem em cada país? Como é que a imigração influenciou o debate público e moldou a esfera político-partidária? E que relação pode ser encontrada entre a imigração e a criminalidade? Neste primeiro artigo, olhamos para o caso de ESPANHA.

O boom da imigração em Espanha entre 2000 e 2010

Historicamente, Espanha foi essencialmente um país de emigração. Até à reta final de um século XX marcado por uma história conturbada que incluiu a Guerra Civil (1936-1939) e a longa ditadura franquista, Espanha teve um saldo migratório negativo, isto é, eram mais os espanhóis que deixavam o país em busca de vidas melhores do que aqueles que chegavam a Espanha vindos do estrangeiro. A situação começou a inverter-se de forma acentuada no final do século XX e, de forma ainda mais evidente, na viragem do séculocom vários factores, incluindo a transição para a democracia, a adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE), o desenvolvimento económico e as mudanças dos fluxos migratórios globais a terem grande influência na transformação do país rumo a uma sociedade diversa e multicultural.

“Espanha, tal como Portugal, até ao século XXI, foi sobretudo um país de emigração. Ou seja, de emigrantes espanhóis, que saíam de Espanha devido às condições económicas em Espanha, especialmente em determinadas regiões”, explica ao Observador a investigadora espanhola Blanca Garcés, especialista em migrações no Barcelona Centre for International Affairs (CIDOB), um dos mais reputados centros de investigação europeus na área das relações internacionais. Garcés, que tem dedicado a sua carreira académica à investigação dos fluxos migratórios na Europa e do discurso político sobre as migrações e o asilo no continente europeu, destaca ainda a grande prevalência da “migração campo-cidade” no século XX em Espanha. O fenómeno do êxodo rural, que também marcou Portugal no século passado, levou grandes porções da população a abandonarem regiões como a Andaluzia, Aragão ou a Galiza e a deslocarem-se para as grandes cidades espanholas, com destaque para Madrid e Barcelona.

 “Tudo isto mudou no final dos anos 90, mas especialmente no início dos anos 2000. Espanha passou a ser um país de imigração e, além disso, passou a ser um país de imigração de um momento para o outro”, sustenta Blanca Garcés. “Até ao ano 2000, a percentagem de população nascida no estrangeiro era irrelevante, irrisória, e, em poucos anos, até 2007, 2008, aumentou e passámos a ser um país diverso. Não só o saldo migratório líquido passou a ser positivo — havia mais entradas do que saídas —, como, além disso, a população mudou. Passámos a ter uma população diversa, um país diverso.”

Os números falam por si. Em 1981, viviam em Espanha 198.042 cidadãos estrangeiros, que representavam apenas 0,52% da população total, segundo dados do governo espanhol. Década e meia depois, em 1996, este número era já de 522.314 estrangeiros, que representavam 1,37% da população total do país. Daí em diante, como pode ver no gráfico abaixo, o número de estrangeiros a viver em Espanha subiu a um ritmo muito acentuado. Numa década, o número multiplicou-se por dez e, em 2008, já viviam mais de 5,2 milhões de estrangeiros em Espanha, representando mais de 11% da população.

O número de imigrantes a viver em Espanha registou alguma estagnação a partir de 2009e mesmo uma quebra a partir de 2012, chegando a situar-se em torno dos 4,5 milhões de estrangeiros a residir no país entre 2016 e 2018. Isto aconteceu na sequência da crise económica global, que começou em 2008 e se fez sentir com especial intensidade na Europa nos anos que se seguiram. Segundo uma resenha histórica do próprio governo espanhol, a crise afectou especialmente a população imigrante, “como consequência, fundamentalmente, da sua maior exposição a sectores que foram mais afectados pela crise económica, como a construção”.

Como recorda Blanca Garcés, “no norte da Europa, a imigração dos anos 60 e 70 foi, sobretudo, uma imigração urbana, uma imigração que ia, sobretudo, trabalhar na indústria” nas grandes cidades. Contudo, o caso espanhol apresenta algumas diferenças: “Se for a uma pequena povoação no meio de Castela, se for ao café da terra, é de uma família de origens migrantes”, explica a especialista. Se é verdade que, “numericamente”, a imigração está mais presente nas zonas urbanas, Garcés sublinha que existe uma importante presença da imigração no mundo rural espanhol, “ligada ao despovoamento” dessas zonas. Os cafés fecharam e quem é que os abriu? Os que estavam dispostos. Nos Pirenéus, por exemplo, há muita imigração, ligada a duas questões: o turismo nessa zona e o sector dos cuidados aos mais velhos.”

Blanca Garcés não tem dúvidas de que “o crescimento económico de Espanha está directamente ligado à imigração” que chegou ao país nas últimas décadas. “Se não tivessem entrado os milhões de imigrantes que entraram nos últimos 20 anos em Espanha, não tínhamos tido o crescimento económico que tivemos”, afirma. “Isso é válido tanto para os anos 2000 como para os últimos anos”, acrescenta, destacando que o recente crescimento económico de Espanha, sobretudo em comparação com outros países europeus, deve muito à imigração.

"Espanha passou a ser um país de imigração e, além disso, passou a ser um país de imigração de um momento para o outro. Até ao ano 2000, a percentagem de população nascida no estrangeiro era irrelevante, irrisória, e, em poucos anos, até 2007, 2008, aumentou e passámos a ser um país diverso." Blanca Garcés, investigadora especializada em migrações

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 O crescimento, em parte, assenta sobretudo numa série de sectores que dependem destes trabalhadores migrantes. São sectores, muitos deles, de baixa produtividade, com trabalhos precários, que os nacionais já não querem fazer: agricultura, construção, sector dos cuidados, hotelaria, sector turístico em termos gerais”, sustenta a especialista do CIDOB. “É aqui que trabalha a população migrante e a economia espanhola assenta, em grande parte, nestes sectores.”

A entrada de Espanha na CEE, em 1986 (juntamente com Portugal), na sequência da transição para a democracia, contribuiu para o desenvolvimento económico do país e, por conseguinte, terá ajudado a atrair novos imigrantes. Ainda assim, argumenta Blanca Garcés, não é aí que devem ser encontradas as principais explicações para o aumento da imigração, já que uma parte significativa dos imigrantes que vivem em Espanha tem origem noutros países europeus — Reino Unido, Itália, Roménia e Alemanha encontram-se no top-15 dos principais países de partida dos imigrantes que residem em Espanha, um processo de imigração intra-europeia facilitado pela abertura de fronteiras dentro do espaço comunitário.

Para compreender melhor o fenómeno da imigração actual em Espanha, é imperioso olhar para os principais países de origem dos imigrantes que ali vivem. Da lista, destacam-se três origens fundamentais, além de alguns países da Europa ocidental: Marrocos, Roménia e a América Latina.

Destes três, o fenómeno mais óbvio será o da América Latina: mais de 1,5 milhões dos estrangeiros que vivem em Espanha nasceram na América Central ou na América do Sul. Em traços gerais, as razões pelas quais uma boa parte dos imigrantes em Espanha tem origem na América Latina, são as mesmas pelas quais uma grande fatia dos imigrantes em Portugal veio do Brasil e dos PALOP: o passado colonial e as proximidades culturais e linguísticas.

 “Em Portugal, à excepção do Brasil, as colónias africanas tornaram-se independentes muito mais recentemente do que no caso espanhol. Temos laços coloniais muito anteriores”, compara Blanca Garcés. “Mas, acima de tudo, há a proximidade linguística, a cultura. E há uma questão fundamental: a maioria dos cidadãos latino-americanos pode entrar em Espanha, e na União Europeia em geral, sem necessidade de visto. Por isso, digo sempre que Espanha tem duas fronteiras. A fronteira sul, com Marrocos, uma fronteira fechada e cada vez mais fechada; e a fronteira atlântica, que é uma fronteira absolutamente aberta. Os cidadãos latino-americanos podem chegar a Espanha sem necessidade de cruzar nenhuma fronteira irregular. Chegam através de Barajas, chegam pelos aeroportos.”

No caso de Marrocos, que continua hoje em dia a ser o país mais representado entre a comunidade imigrante em Espanha, tem mais nuances. “Também há uma relação colonial com Marrocos, por Ceuta e Melilla e pelo Saara Ocidental”, assinala Blanca Garcés. Nos anos 80 e 90, já havia imigrantes marroquinos, por exemplo, a trabalhar na agricultura, no sul de Espanha, na Andaluzia. Por isso, aí há também um laço histórico, um movimento histórico de população.”

As coisas mudaram em 1992, quando, na sequência da integração europeia de Espanha, passou a ser exigido visto aos cidadãos marroquinos para poderem entrar no território espanhol. “Até ao ano de 1992, os marroquinos podiam entrar livremente e voltar. Entravam, trabalhavam uns meses na agricultura e voltavam. No momento em que foi imposto o visto e já não puderam voltar, muitos ficaram”, afirma Blanca Garcés. Além disso, ainda como herança das décadas em que o território marroquino esteve dividido em protectorados, entre Espanha e França, existe uma grande presença marroquina em França. “Desde pequena que via os marroquinos a cruzar Espanha no verão, para passar férias em Marrocos”, recorda a especialista. “Há todo um movimento de população, seja em direcção a França, seja a trabalhar historicamente na agricultura em Espanha, que facilitou esta imigração. Quando se fechou a fronteira com os vistos, manteve-se, seja de forma irregular ou através de reunificação familiar.”

"Os cidadãos latino-americanos podem chegar a Espanha sem necessidade de cruzar nenhuma fronteira irregular. Chegam através de Barajas, chegam pelos aeroportos." Blanca Garcés, investigadora especializada em migrações

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No gráfico dos países mais representados entre a imigração presente em Espanha destaca-se ainda a Roménia — e, em menor grau, a Bulgária.  Nos anos 2000, quando houve esta chegada importante de imigrantes, houve também muitos romenos e búlgaros que vieram trabalhar para Espanha”, salienta Blanca Garcés. “Isto, agora, é menor, porque muitos voltaram à Roménia e outros foram para outros países europeus com melhores condições laborais.”

Sentimento anti-imigração sobe e extrema-direita aproveita a boleia

Uma sondagem realizada no final de 2024 pelo Instituto 40dB para o El País e a Cadena Ser traça um retrato das percepções dos espanhóis sobre a imigração e ajuda a compreender o debate público em torno do assunto no país. Um dado que salta à vista é a diferença entre a realidade e a percepção: de acordo com a sondagem, os espanhóis acreditam, em média, que a percentagem de imigrantes a viver em Espanha é de 30,2%, quando na verdade é de 14% (considerando apenas as pessoas com nacionalidade estrangeira que nasceram noutro país) ou de 19,1% (considerando também as pessoas que nasceram noutro país e que têm nacionalidade espanhola). Mais de metade dos inquiridos (57,2%) acredita que há “demasiados” imigrantes em Espanha, enquanto apenas 25,5% acreditam que há um número “adequado” e 4,1% que há “poucos”.

Aos inquiridos foi também pedido que escolhessem, entre uma lista de 12 conceitos, aqueles que mais associam à imigração: seis eram conceitos negativos (insegurança, sobrecarga dos serviços públicos, conflitualidade social, criminalidade, desemprego e perda de identidade cultural); seis eram positivos (diversidade cultural, crescimento demográfico, tolerância, progresso económico, abertura global, inovação). Entre os seis mais votados, cinco eram negativos. Os dois conceitos mais votados foram a insegurança (30%) e a sobrecarga de serviços públicos (27%). Só em terceiro lugar surgiu um conceito positivo (diversidade cultural, com 23%), logo seguido da conflitualidade social (21%), da criminalidade (19%) e o desemprego (17%).

A fronteira com Marrocos é um dos principais pontos críticos Reduan/EPA

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Em sentido contrário, a experiência pessoal dos espanhóis em relação à imigração é muito mais positiva: a maioria dos inquiridos tem contacto com imigrantes na sua vida quotidiana, seja porque são vizinhos (75,6%), porque contactam com eles em serviços de saúde ou hotelaria (74%), em actividades de lazer (56,3%), no emprego ou estudos (51%) ou ainda no seu círculo de amigos (50,6%). Em todos esses contextos, diz o estudo citado pelo El País, a maioria dos inquiridos tem experiências positivas — até entre os eleitores de partidos de extrema-direita como o Vox e o recém-criado Se Acabó La Fiesta (SALF).

Se a maioria dos inquiridos diz que lhe seria indiferente a existência de imigrantes nos seus círculos mais próximos, há uma variação quando são questionados sobre se gostariam de que os seus filhos casassem com imigrantes: 49% veem com bons olhos ter um genro ou nora de outro país europeu, mas apenas 22,8% e 25,8% aceitariam de bom grado um genro ou nora do Magrebe ou da África subsaariana, respectivamente. Nesta questão, a diferença entre eleitores à esquerda e à direita é mais evidente.

A sondagem, cujos resultados pode ler mais detalhe aqui, revela vários dados adicionais, incluindo o facto de a perspetiva anti-imigração estar a disseminar-se especialmente entre os jovens rapazes da Geração Z, entre os 18 e os 27 anos de idade: por exemplo, 75% acreditam que os imigrantes recebem demasiadas ajudas públicas.

O El País recorda ainda o estudo recente feito pelo Conselho Europeu para as Relações Internacionais, que alertava para umaderiva perigosa rumo a uma concepção étnica da europeidade”. Segundo aquele jornal, vários episódios dos últimos meses na política espanhola mostram como essa concepção também está crescentemente a ganhar adeptos em Espanha, incluindo o caso recente em que um dirigente do Vox atribuiu erradamente um crime violento a um imigrante (viria, depois, a descobrir-se que o autor do crime não tinha qualquer ligação à comunidade imigrante) ou as múltiplas vezes que Alvise Pérez, fundador do SALF, procurou associar vários crimes ao aumento do número de imigrantes em Espanha.

"Toda a gente tem uns filhos, uma casa ou uns avós que são cuidados por uma mulher que vem de um país latino-americano. (...) De facto, todos estamos rodeados de pessoas de origem latino-americana que nos tornam a vida mais fácil." Blanca Garcés, investigadora especializada em migrações

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Entre os eleitores dos partidos da direita (PP) e da extrema-direita (Vox e SALF) — cujos líderes mais vezes repetem discursos que podem ser interpretados como anti-imigração, que vão desde a simples referência ao “efeito chamada” da política de imigração às mais radicais alegações de “invasão” —, a rejeição dos imigrantes é mais significativa: 93,4% dos eleitores do SALF e 86,1% dos eleitores do Vox acreditam que há “demasiados” imigrantes em Espanha. Entre os eleitores dos partidos da esquerda, esta percentagem situa-se em torno dos 25%.

Apesar do retrato traçado por esta sondagem, a investigadora Blanca Garcés, que tem estudado o fenómeno do debate público sobre a imigração em vários países da Europa, tem uma perspectiva relativamente mais optimista sobre a situação em Espanha — embora reconheça que existe discriminação contra os imigrantes no país.

Há discriminação, sim”, explica Blanca Garcés, sublinhando que os imigrantes “estão nos postos de trabalho mais mal pagos do mercado laboral”. Ainda assim, diz a investigadora, os imigrantes “não são considerados um problema”, sobretudo no que diz respeito à experiência pessoal dos espanhóis.Toda a gente tem uns filhos, uma casa ou uns avós que são cuidados por uma mulher que vem de um país latino-americano”, sustenta a académica. Os imigrantes, concretamente os que chegam da América Latina, “não são vistos como uma ameaça, não são vistos como culturalmente distintos, não são vistos como um problema”.

De facto, todos estamos rodeados de pessoas de origem latino-americana que nos tornam a vida mais fácil. Essa é uma das razões pelas quais a imigração, em Espanha, não tem sido um tema especialmente politizado, especialmente visto como algo negativo”, acrescenta Blanca Garcés, considerando que a visão mais positiva dos espanhóis em relação à imigração “tem a ver com o facto de esta imigração, em grande parte, vir da América Latina e ser percepcionada como culturalmente e linguisticamente próxima”. Ao contrário de Portugal, onde tem crescido o número de imigrantes oriundos da Índia, Bangladesh e Nepal, o chamado “Indostão” não surge na lista das principais regiões de origem dos imigrantesembora haja algumas comunidades significativas da Ásia, como os chineses e os paquistaneses. De acordo com Blanca Garcés, estas populações têm uma implantação considerável em alguns bairros, onde são donos de pequenos minimercados, e em profissões como estafetas de entrega de comida.

O Vox, liderado por Santiago Abascal, não surgiu como partido anti-imigração, mas adotou esse discurso posteriormente FERNANDO VILLAR/EPA

(CONTINUA)

 

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