Das reguadas de antigamente.
Refiro, por antecipação paralela, uma história
da minha infância, em que, pequena e vivaça, na minha terceira classe, corrigi
uns colegas matulões, e fui convidada a dar-lhes reguadas nas mãos, no papel de
mestra fictícia, todos nós à roda da mesa da professora – a D. Aurora inflexível,
que provavelmente estava a rir-se intimamente da sua farsa pedagógica. Quem
levou a reguada, fui eu, que preferi chorar, recusando obedecer à professora,
lá na escola de Pinheiro, da vasta eira onde cantávamos e dançávamos, em alegres
rodinhas. As reguadas, hoje, traduzidas em críticas, quer de aplauso quer de
repúdio, na imediatez com que surgem nos vários canais televisivos, mal acabem
os debates, espantam-nos, de facto, pelo repentino de uma formulação que admiramos
ou não, mas que nos parecem de mau gosto, pelo exibicionismo pedante de uma
prática afinal pouco educada, sobre comportamentos que anteriormente tinham merecido
a nossa efusão entrevistadora. Parece-me isso pura peixeirada, tal imediatez de
comentários, que poderiam processar-se ocasionalmente, mais tarde, sem, para
mais, o arreganho do contraste partidário. Mas de facto, assim que termina o
debate, logo nos vários canais surgem exímios comentadores, com a régua ou com
o aplauso segundo a sua erudição e virtude camarada. Concordo, sim, com
ALEXANDRE BORGES, discordando do costume, que me parece de bastante mau gosto. Como
se não houvesse outros assuntos a viabilizar…
A vida é uma caixa de comentários
Estamos a poucos anos de ter
comentadores de comentadores, espaços de comentário onde se analisa os analistas,
a consistência ou inconsistência deles.
ALEXANDRE BORGES Escritor
e argumentista
OBSERVADOR, 17
abr. 2025, 00:2049
De acordo. Certamente, nenhum pai alguma vez ouviu dizer: “Papá, mamã, quando eu
for grande, quero ser comentador.” Não é a carreira que mais enche o olho
sonhador a uma criança. Não é aquele talento que pulsa nas veias e para o qual
se encontra, ou não, explicação (“Ah, já
o avô comentava muito bem…”). Mas a ideia de que o “comentário” seja algo
meramente adjacente ao facto, acessório satélite aposto a um qualquer acto
primordial, também não é inteiramente justa. O termo “comentar” chegou-nos, praticamente, sem estrago desde o
latim original“co-mentare” e significa “pensar com”,
isto é, com base em, a partir de. Toda a filosofia se baseia nesta ideia,
a de que ninguém reflecte a partir do zero, como se não existisse mundo antes,
história, tradição de pensamento. Todos os pensadores, todos os
filósofos, são comentadores, mesmo que para recusar, negar, destruir, o já
pensado. Platão
comentava Sócrates; Aristóteles, Platão; São Tomás de Aquino, Aristóteles. Dá logo
outra dignidade à função. Há muito
que há comentadores; é útil que haja comentadores. Dito isto, não será ir um
pouco longe de mais pôr quatro pessoas a comentar um frente-a-frente entre,
digamos, Inês Sousa Real e Paulo Raimundo? Em cada canal? Quatro adultos?
Quanta terra é que eles cavavam naquela meia hora? E não seria mais útil? Não
estamos a afirmar; só a pensar. Aqueles oito bracinhos meia hora em batatinhas,
hum?
É, provavelmente, uma causa perdida para
a civilização e a garantia de que a indústria dos factos e camisas nunca
perderá fulgor. De eleição para
eleição, há mais canais, com mais comentadores, com mais tempo de comentário.
Antigamente, tínhamos o Nuno Rogeiro para analisar tudo, das guerras no Golfo
Pérsico ao jazz de fusão; hoje, temos a preocupação de garantir que
não noticiamos nada que não seja, depois, filtrado por um painel composto por,
pelo menos, um comentador de cada cor política, género, faixa etária e signo –
e um agnóstico com ascendente em Balança. Para analisar, atenção, não
oráculos religiosos que falam em linguagem altamente simbólica, não para
descodificar mensagens em hebraico antigo, não para traduzir para leigos o
debate entre especialistas em mecânica quântica avançada, não. Para
dissecar o que disse Inês Sousa Real. E Paulo Raimundo.
Aceitando
que é um movimento imparável, podíamos, ao menos, começar a trabalhar na
sofisticação do conceito. Se, no fim, pouco há a dizer e o que importa é dar
uma nota, porque não um júri de patinagem artística que se limitasse a levantar
um cartão com uma nota de 1 a 10? Ou
um mecanismo tipo “The Voice” em que se criava a expectativa para ver se,
digamos, a Ana Gomes virava a cadeira, convencida de que era o Pedro Nuno a
falar e, afinal, era o Luís? Ou
então, adoptar os mecanismos da crítica de arte. Se sentássemos os críticos de
cinema do Público ou do Expresso a ver os debates, era tudo
corrido entre as duas estrelas e a bolinha preta. “A evitar”, “um cliché do princípio ao fim”,
“um Álvaro Cunhal da loja dos 300”, “o mestre Sá Carneiro deve estar às voltas
na tumba”, diriam – e não estariam errados. Já se
fôssemos para os de música, sempre ansiosos por serem os primeiros a descobrir
os próximos Beatles, o resultado seria mais galvanizante: “Rui
Tavares é o Mark Kozelek da esquerda europeísta”, “Rui Rocha, o Jarvis Cocker
por quem os liberais esperavam”, “Pedro Nuno, esse cartaz era uma canção dos
Moloko”.
Estamos viciados em comentadores e
duvido que seja fácil para os comentados. Já
não bastava terem de se preparar para as perguntas do jornalista e estudar o
programa do adversário; os candidatos, agora, têm de treinar a pensar no que
vão dizer dele o João Maria Jonet e a Maria Castelo Branco. E não é só
na política; é no futebol, na actualidade internacional, na vida privada
dissecada nos programas da manhã pelas tertúlias cor-de-rosa onde, basicamente,
se ligou uma câmara de televisão ao salão de cabeleireiro. Existir passou a vir com caixa de comentários; ganha
direito à salvação o que for menos arrasado. Estamos a poucos anos de ter comentadores
de comentadores, espaços de comentário onde se analisa os analistas, a
consistência ou inconsistência do Pedro Marques Lopes, se o Daniel Oliveira foi
pertinente ou mais do mesmo. Até à loucura, numa espiral de comentários que
termine num ruído branco qualquer, tipo frigorífico, que, com sorte, já nem
ouvimos.
Para
a mãe do Forrest Gump, a vida era como uma caixa de chocolates – nunca sabíamos
o que nos ia sair; em 2025, é mais caixa de comentários, nem sempre feitos por
Q.I.s muito superiores ao do bom Forrest. Devolvam-nos o jogo entre
equipas do meio da tabela sem comentários. Só os comentadores que não saibamos
de antemão o que vão dizer. Ou, um dia destes, ainda acabamos a
confundir um comentador com o Presidente da República.
Ah, esperem…
COMENTÁRIOS (de 19)
Rosa
Silvestre: E aqui estamos nós a comentar
o comentário... 😄 O que acho mais extraordinário
no comentário aos debates é que os comentadores têm mais tempo que o próprio
debate. António Lamas: Que maravilha. Espero que
também seja lida por alguns comentadores e jornalistas do Observador
João Floriano > Carlos Chaves: «....... frequentemente com um mandato da esquerda! » Eu penso que são todosde
esquerda. De vez em quando o Rui Calafate lá dá uma guinada para a direita, mas
se fizer a lista dos comentadores habituais da CNN e da SICN, são todos
tombados para a esquerda. Meio Vazio: Não seja
assim, sr. Borges; o que seria de nós - pobres estupores - sem, por
exemplo, o "comentador" Pedro
Marques Lopes?!... Ruço Cascais: Boa reflexão. Na altura das campanhas
eleitorais é pedida uma habilidade aos comentadores que desmascara a missão
oculta por detrás da análise: as notas aos debates. As notas são o
arrancar da máscara. É o Peter Parker a anunciar ao mundo que é o
Homem-Aranha ou o Ron Vara dizer que é o Peter Navarro. As notas reforçam a
relação de intimidade entre o comentador e o público. O meu comentador
que defende as minhas ideias e o meu partido. O meu comentador sempre
sensato com os seus empates. O meu comentador que prefere engolir um
sapo de 5 quilos do que abandonar o seu ódio de estimação. As notas
fazem dos comentadores os treinadores de bancada ou os analistas de balcão com
tremoços à mistura. Mas sim, raivazinhas vão-se instalando entre
comentadores e público. Ultimamente ando com um pó que nem os posso ver
(literalmente, mudo logo de canal) aos seguintes analistas: A Maria Castelo
Branco que eu chamo Maria Morta, o Anselmo Crespo cujo as orelhas não param de
crescer e a narigudoa da Margarida Davim. Depois há o "meu" José
Marques que prima por uma inteligência superior nascida em laboratório através
dos pequenos roedores. Mas há mais. Maria Emília
Ranhada Santos: Muito bom artigo! Realmente é
mesmo assim! Ser comentador parece ser a profissão do futuro, embora ainda não
esteja registada, não oferece necessidade de grande preparação tornando-se à
altura de quem quer ganhar dinheiro sem muitos esforços! E, se isto não mudar,
os donos do mundo tudo farão para que só existam comentadores ensinados por
eles, e que só digam o que eles autorizam! Inventarão filtros cada vez mais
apertados, para que os burros só comam a palha que lhes põe na frente! Como na
China, ou na Rússia, ou na Coreia do Norte, por exemplo!
Carlos Chaves: “Quatro adultos? Quanta terra é que eles
cavavam naquela meia hora? E não seria mais útil? Não estamos a afirmar; só a
pensar. Aqueles oito bracinhos meia hora em batatinhas, hum?” Espectacular caro
Alexandre Borges, tirou-me as palavras da boca, digo isto vezes sem conta
quando vejo e ouço esses manipuladores da informação! Não são comentadores são
sim, manipuladores frequentemente com um mandato da esquerda! Faltou-lhe
considerar na sua magnífica alocução sobre a evolução e sofisticação dos
comentadores a dar notas, que pura e simplesmente é, desaparecerem da nossa
vista! Obrigado pela dica, vou incluir o Forrest Gump na lista dos filmes a
rever nesta Páscoa! Rosa Lourenço: Não resisto. Parabéns pela
ousadia. Realmente já não há paciência para ver TV nacional com tantos
comentadores (especialistas) a tudo e mais alguma coisa. Coxinho: O que torna o artigo do AB
excepcionalmente certeiro e oportuno é que se trata, provavelmente, de um dos
primigénios comentários a comentadores. E além de bem escrito ainda contém uma
carga humorística bem doseada.
José Paulo Castro > Rosa Silvestre: Não são só os comentadores. Se
reparar, em algumas entrevistas o entrevistador fala mais do que o
entrevistado. Exceto se for uma daquelas encomendada, em que deixam o
entrevistado discursar mais do que responder. (O famoso:" ainda bem que me
faz essa questão.") Por outro lado, quando a encomenda é ao contrário, o
entrevistador nem deixa o entrevistado responder e corta-lhe a resposta. João Floriano > Rosa Silvestre: Se fosse só o tempo! O pior
são as ideias ou a falta delas.
Mario Guimaraes: Os comentadores não fazem análises imparciais mas
fazem-no pelo gosto pessoal. Isto é falta de qualidade. Aproximam-se dos
comentadores rascas desportivos. Podiam comentar e ficarem neutros mas não:
acham que a opinião pessoal é importante e a grande maioria são uns pobres
coitados que querem notoriedade. Alguns são mesmo rascas .
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