sexta-feira, 18 de abril de 2025

Como se estivéssemos na escola…


Das reguadas de antigamente.

Refiro, por antecipação paralela, uma história da minha infância, em que, pequena e vivaça, na minha terceira classe, corrigi uns colegas matulões, e fui convidada a dar-lhes reguadas nas mãos, no papel de mestra fictícia, todos nós à roda da mesa da professora – a D. Aurora inflexível, que provavelmente estava a rir-se intimamente da sua farsa pedagógica. Quem levou a reguada, fui eu, que preferi chorar, recusando obedecer à professora, lá na escola de Pinheiro, da vasta eira onde cantávamos e dançávamos, em alegres rodinhas. As reguadas, hoje, traduzidas em críticas, quer de aplauso quer de repúdio, na imediatez com que surgem nos vários canais televisivos, mal acabem os debates, espantam-nos, de facto, pelo repentino de uma formulação que admiramos ou não, mas que nos parecem de mau gosto, pelo exibicionismo pedante de uma prática afinal pouco educada, sobre comportamentos que anteriormente tinham merecido a nossa efusão entrevistadora. Parece-me isso pura peixeirada, tal imediatez de comentários, que poderiam processar-se ocasionalmente, mais tarde, sem, para mais, o arreganho do contraste partidário. Mas de facto, assim que termina o debate, logo nos vários canais surgem exímios comentadores, com a régua ou com o aplauso segundo a sua erudição e virtude camarada. Concordo, sim, com ALEXANDRE BORGES, discordando do costume, que me parece de bastante mau gosto. Como se não houvesse outros assuntos a viabilizar…

A vida é uma caixa de comentários

Estamos a poucos anos de ter comentadores de comentadores, espaços de comentário onde se analisa os analistas, a consistência ou inconsistência deles.

ALEXANDRE BORGES Escritor e argumentista

OBSERVADOR, 17 abr. 2025, 00:2049

De acordo. Certamente, nenhum pai alguma vez ouviu dizer: “Papá, mamã, quando eu for grande, quero ser comentador.” Não é a carreira que mais enche o olho sonhador a uma criança. Não é aquele talento que pulsa nas veias e para o qual se encontra, ou não, explicação (“Ah, já o avô comentava muito bem…”). Mas a ideia de que o “comentário” seja algo meramente adjacente ao facto, acessório satélite aposto a um qualquer acto primordial, também não é inteiramente justa. O termo “comentar” chegou-nos, praticamente, sem estrago desde o latim original“co-mentare” e significa “pensar com”, isto é, com base em, a partir de. Toda a filosofia se baseia nesta ideia, a de que ninguém reflecte a partir do zero, como se não existisse mundo antes, história, tradição de pensamento. Todos os pensadores, todos os filósofos, são comentadores, mesmo que para recusar, negar, destruir, o já pensado. Platão comentava Sócrates; Aristóteles, Platão; São Tomás de Aquino, Aristóteles. Dá logo outra dignidade à função. Há muito que há comentadores; é útil que haja comentadores. Dito isto, não será ir um pouco longe de mais pôr quatro pessoas a comentar um frente-a-frente entre, digamos, Inês Sousa Real e Paulo Raimundo? Em cada canal? Quatro adultos? Quanta terra é que eles cavavam naquela meia hora? E não seria mais útil? Não estamos a afirmar; só a pensar. Aqueles oito bracinhos meia hora em batatinhas, hum?

É, provavelmente, uma causa perdida para a civilização e a garantia de que a indústria dos factos e camisas nunca perderá fulgor. De eleição para eleição, há mais canais, com mais comentadores, com mais tempo de comentário. Antigamente, tínhamos o Nuno Rogeiro para analisar tudo, das guerras no Golfo Pérsico ao jazz de fusão; hoje, temos a preocupação de garantir que não noticiamos nada que não seja, depois, filtrado por um painel composto por, pelo menos, um comentador de cada cor política, género, faixa etária e signo – e um agnóstico com ascendente em Balança. Para analisar, atenção, não oráculos religiosos que falam em linguagem altamente simbólica, não para descodificar mensagens em hebraico antigo, não para traduzir para leigos o debate entre especialistas em mecânica quântica avançada, não. Para dissecar o que disse Inês Sousa Real. E Paulo Raimundo.

Aceitando que é um movimento imparável, podíamos, ao menos, começar a trabalhar na sofisticação do conceito. Se, no fim, pouco há a dizer e o que importa é dar uma nota, porque não um júri de patinagem artística que se limitasse a levantar um cartão com uma nota de 1 a 10? Ou um mecanismo tipo “The Voice” em que se criava a expectativa para ver se, digamos, a Ana Gomes virava a cadeira, convencida de que era o Pedro Nuno a falar e, afinal, era o Luís? Ou então, adoptar os mecanismos da crítica de arte. Se sentássemos os críticos de cinema do Público ou do Expresso a ver os debates, era tudo corrido entre as duas estrelas e a bolinha preta. “A evitar”, “um cliché do princípio ao fim”, “um Álvaro Cunhal da loja dos 300”, “o mestre Sá Carneiro deve estar às voltas na tumba”, diriam – e não estariam errados. Já se fôssemos para os de música, sempre ansiosos por serem os primeiros a descobrir os próximos Beatles, o resultado seria mais galvanizante: “Rui Tavares é o Mark Kozelek da esquerda europeísta”, “Rui Rocha, o Jarvis Cocker por quem os liberais esperavam”, “Pedro Nuno, esse cartaz era uma canção dos Moloko”.

Estamos viciados em comentadores e duvido que seja fácil para os comentados. Já não bastava terem de se preparar para as perguntas do jornalista e estudar o programa do adversário; os candidatos, agora, têm de treinar a pensar no que vão dizer dele o João Maria Jonet e a Maria Castelo Branco. E não é só na política; é no futebol, na actualidade internacional, na vida privada dissecada nos programas da manhã pelas tertúlias cor-de-rosa onde, basicamente, se ligou uma câmara de televisão ao salão de cabeleireiro. Existir passou a vir com caixa de comentários; ganha direito à salvação o que for menos arrasado. Estamos a poucos anos de ter comentadores de comentadores, espaços de comentário onde se analisa os analistas, a consistência ou inconsistência do Pedro Marques Lopes, se o Daniel Oliveira foi pertinente ou mais do mesmo. Até à loucura, numa espiral de comentários que termine num ruído branco qualquer, tipo frigorífico, que, com sorte, já nem ouvimos.

Para a mãe do Forrest Gump, a vida era como uma caixa de chocolates – nunca sabíamos o que nos ia sair; em 2025, é mais caixa de comentários, nem sempre feitos por Q.I.s muito superiores ao do bom Forrest. Devolvam-nos o jogo entre equipas do meio da tabela sem comentários. Só os comentadores que não saibamos de antemão o que vão dizer. Ou, um dia destes, ainda acabamos a confundir um comentador com o Presidente da República.

Ah, esperem…

COMENTÁRIO POLÍTICO      POLÍTICA

COMENTÁRIOS (de 19)

Rosa Silvestre: E aqui estamos nós a comentar o comentário... 😄 O que acho mais extraordinário no comentário aos debates é que os comentadores têm mais tempo que o próprio debate.      António Lamas: Que maravilha. Espero que também seja lida por alguns comentadores e jornalistas do Observador                 João Floriano > Carlos Chaves: «....... frequentemente com um mandato da esquerda! » Eu penso que são todosde esquerda. De vez em quando o Rui Calafate lá dá uma guinada para a direita, mas se fizer a lista dos comentadores habituais da CNN e da SICN, são todos tombados para  a esquerda.                Meio Vazio: Não seja assim, sr. Borges; o que seria de nós - pobres estupores -  sem, por exemplo, o "comentador" Pedro Marques Lopes?!...               Ruço Cascais: Boa reflexão. Na altura das campanhas eleitorais é pedida uma habilidade aos comentadores que desmascara a missão oculta por detrás da análise: as notas aos debates. As notas são o arrancar da máscara. É o Peter Parker a anunciar ao mundo que é o Homem-Aranha ou o Ron Vara dizer que é o Peter Navarro. As notas reforçam a relação de intimidade entre o comentador e o público. O meu comentador que defende as minhas ideias e o meu partido. O meu comentador sempre sensato com os seus empates. O meu comentador que prefere engolir um sapo de 5 quilos do que abandonar o seu ódio de estimação. As notas fazem dos comentadores os treinadores de bancada ou os analistas de balcão com tremoços à mistura. Mas sim, raivazinhas vão-se instalando entre comentadores e público. Ultimamente ando com um pó que nem os posso ver (literalmente, mudo logo de canal) aos seguintes analistas: A Maria Castelo Branco que eu chamo Maria Morta, o Anselmo Crespo cujo as orelhas não param de crescer e a narigudoa da Margarida Davim. Depois há o "meu" José Marques que prima por uma inteligência superior nascida em laboratório através dos pequenos roedores. Mas há mais.              Maria Emília Ranhada Santos: Muito bom artigo! Realmente é mesmo assim! Ser comentador parece ser a profissão do futuro, embora ainda não esteja registada, não oferece necessidade de grande preparação tornando-se à altura de quem quer ganhar dinheiro sem muitos esforços! E, se isto não mudar, os donos do mundo tudo farão para que só existam comentadores ensinados por eles, e que só digam o que eles autorizam! Inventarão filtros cada vez mais apertados, para que os burros só comam a palha que lhes põe na frente! Como na China, ou na Rússia, ou na Coreia do Norte, por exemplo!                    Carlos Chaves:  “Quatro adultos? Quanta terra é que eles cavavam naquela meia hora? E não seria mais útil? Não estamos a afirmar; só a pensar. Aqueles oito bracinhos meia hora em batatinhas, hum?” Espectacular caro Alexandre Borges, tirou-me as palavras da boca, digo isto vezes sem conta quando vejo e ouço esses manipuladores da informação! Não são comentadores são sim, manipuladores frequentemente com um mandato da esquerda! Faltou-lhe considerar na sua magnífica alocução sobre a evolução e sofisticação dos comentadores a dar notas, que pura e simplesmente é, desaparecerem da nossa vista! Obrigado pela dica, vou incluir o Forrest Gump na lista dos filmes a rever nesta Páscoa!                Rosa Lourenço: Não resisto. Parabéns pela ousadia. Realmente já não há paciência para ver TV nacional com tantos comentadores (especialistas)  a tudo e mais alguma coisa.               Coxinho: O que torna o artigo do AB excepcionalmente certeiro e oportuno é que se trata, provavelmente, de um dos primigénios comentários a comentadores. E além de bem escrito ainda contém uma carga humorística bem doseada.                  José Paulo Castro > Rosa Silvestre: Não são só os comentadores. Se reparar, em algumas entrevistas o entrevistador fala mais do que o entrevistado. Exceto se for uma daquelas encomendada, em que deixam o entrevistado discursar mais do que responder. (O famoso:" ainda bem que me faz essa questão.") Por outro lado, quando a encomenda é ao contrário, o entrevistador nem deixa o entrevistado responder e corta-lhe a resposta.         João Floriano > Rosa Silvestre: Se fosse só o tempo! O pior são as ideias ou  a falta delas.          Mario Guimaraes: Os comentadores não fazem análises imparciais mas fazem-no pelo gosto pessoal. Isto é falta de qualidade. Aproximam-se dos comentadores rascas desportivos. Podiam comentar e ficarem neutros mas não: acham que a opinião pessoal é importante e a grande maioria são uns pobres coitados que querem notoriedade. Alguns são mesmo rascas .

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