A MIGUEL ESTEVES
CARDOSO, que conheci em tempos passados como
participante de um programa televisivo, com várias outras figuras que se
destacavam então, MEC um pouco à margem, talvez por um defeito qualquer de
desempenho oral, mas vejo, na Internet, que tem uma intensa vivência literária,
para além dos seus artigos diários nos PÚBLICOS que a minha irmã me passa, e
que religiosamente leio, pelo seu humor crítico, admirando simultaneamente a
variedade dos seus temas breves, mas sempre impregnados de um crítica bastante
altiva contra os portugueses e o seu país, temática da sua ironia contínua,
conquanto breve, nesse jornal – o que, reconhecendo-lhe o jeito crítico, me
incomodou sempre ao sentir a distanciação superior relativamente a este país
que lhe merece tantas vezes orgulhosa troça, talvez pelas suas origens
estrangeiradas e estudos fora, que dele vaidosamente o distanciam, pese embora
a pertinência sagaz do seu sentido crítico.
Eis a entrevista, que extraio do
OBSERVADOR e que nos dá traços das suas experiências biográficas:
“Quantos jovens de 20 anos escrevem sobre o que lhes vai na alma?”, pergunta agora o escritor, confrontado com a sua então evidente obsessão com a foleirice, opiniões políticas controversas (de Salazar a Mussolini), uma ignorância típica da juventude e até algum (para não dizer muito) show-off. “Se tivesse ficado em Portugal nunca tinha escrito aquilo”, confessa. Foi a solidão que o levou “a escrever cartas em vez de viver”, diz ao Observador, por telefone, a partir de Almoçageme, aldeia perto de Colares, Sintra, numa conversa que foi da vida no campo ao elogio à cidade, da comicidade e perigo de Salazar até ao desejo para o próximo Presidente de República (“Gostava que fosse o Paulo Portas”, admite), passando pela irrefreável paixão por Portugal que o assomou desde que foi para terras inglesas. “Pensava que era uma pessoa do mundo, queria ir para Nova Iorque, Paris, mas em Manchester tive uma conversão física e percebi que era portuguesíssimo”.
▲Capa do livro
"Cartas para a Vila Berta", de Miguel Esteves Cardoso (Bertrand
Editora)
Onde
estiveram estas cartas este tempo todo?
Tinha
as cópias em papel químico. Vivi em Portugal toda a minha vida e depois, de
repente, fui para Inglaterra estudar. Aqui tinha uma vida completa, alegre e,
de repente, vi-me lá pobre e sem dinheiro, mas com a minha máquina de escrever.
Dantes só escrevia programas de rádio e poemas, mas porque estava muito
solitário, não tinha os meus amigos… De repente, fico sozinho no norte de
Inglaterra, não conhecia ninguém, não tinha ninguém com quem falar português.
Comecei a escrever as cartas ao Vilela, que era o meu melhor amigo.
E ficou com
uma cópia das cartas.
Ficava
com o papel químico, ficava com uma cópia. Porque orgulhava-me daquilo que
escrevia também. Punha-me bastante naquelas cartas. Estava a escrever prosa
pela primeira vez na vida. Punha o papel químico e guardei as cartas, ficou
tudo numa pasta durante muitos anos. O Vilela ainda por cima não respondia às
cartas, e eu continuava a escrever. Estiveram sempre numa pasta. Depois, muitos
anos mais tarde, parece quase História agora, fui viver para o Estoril com uns
amigos, houve alguém que saiu daquela casa e entrou o Pedro Paixão. Sabe quem é
o Pedro Paixão?
Claro [escritor e amigo de Miguel
Esteves Cardoso].
Ele é que pegou nessas cartas, andou a ver as coisas
todas que havia lá em casa, começou a ler e ficou fascinado. “Ah, isto é muito
bom…” Nunca mais tinha pensado naquilo. Para mim eram só cópias de cartas,
cópias de cartas escritas ao Vilela. Foi a primeira vez que alguém disse que as
leu. A primeira vez que alguém leu, porque também não sei se o Vilela as leu.
Isso foi quando?
Deve ter sido em 1989, 1990. E a partir daí, pronto,
fiquei com a ideia de “se calhar está lá qualquer coisa”. Foi a primeira vez
que escrevi prosa. Quando reli agora mesmo percebi também que pela primeira vez
estava a contar qualquer coisa. Porque estava completamente sozinho, não tinha
ninguém com quem falar português, não tinha amigos, não tinha nada. Não tinha
paisagem, não tinha dinheiro. Percebi que Portugal era a coisa mais bonita,
tive uma conversão terrível. Como a minha mãe é inglesa, eu lia imensos livros
ingleses e lia poucos livros portugueses. Pensava que era uma pessoa do mundo,
queria ir para Nova Iorque, Paris… Mas em Manchester tive uma conversão física
e percebi que era portuguesíssimo. Tive imensas saudades. Foi mesmo uma
conversão física, ao passar em frente de umas portas lá na universidade ouvi
português. Não ouvia português há seis ou sete meses, porque não havia
internet, não havia nada, não conseguia apanhar a rádio. Era um silêncio… Ouvi
alguém: “Amanhã tenho que ir com o guarda-chuva porque vai chover”. Comecei a
chorar. Quase que me esqueci de falar inglês, bolas. Durante 15 dias. Foi uma
coisa terrível. Percebi que Portugal era o meu país, como era lindo, desprezado
e esquecido, essas coisas todas.
Diz que punha
muito de si nas cartas, mas nos primeiros textos que escreveu em jornais, pouco
depois, assumiu sempre o ponto de vista de espectador, tanto nas críticas
musicais e de cinema, mas também nas crónicas no Expresso, no início dos
anos 80. Só nos últimos anos, já no Público, é que o vemos a assumir o
sujeito da escrita. Afinal já o tinha sido aqui, nós é que ainda não o havíamos
lido.
Agora
em maio faz 50 anos que saiu a primeira coisa minha publicada num jornal. 50
anos de colaboração nos jornais, não é pouco. Foi em 75 que um jornal publicou
umas críticas de cinema que tinha escrito. Isso foi exactamente há 50 anos.
Mas, claro, uma pessoa para escrever… Comecei a escrever muito cedo, não é? Mas
escrevia em inglês, e depois escrevia umas coisas de poemas, imensos poemas em
português. Quando escrevia as cartas, pensava assim: este sacana não me
responde às cartas. Mas depois percebi que ele não respondendo até me estava a
ajudar. Porque ainda escrevia mais. Precisava de escrever, não tinha ninguém
com quem falar. Escrevia os meus poemas, continuava a escrever, escrevia mais
poemas do que nunca. Mas a prosa… Nunca tinha percebido a prosa, a prosa para
contar, a prosa jornalística de contar o que se está a passar. Uma pessoa pode
mentir. A solidão é terrível, aquilo tem muitas mentiras. Podia inventar, já
que estava a contar… Em vez de dizer que saí e fui comprar o jornal podia dizer
que saí e passou por mim uma mulher linda ou um velhote. Percebi que podia
inventar e que a diferença entre a ficção e as cartas é a liberdade de escrever
para ter graça. Acho que isso é muito importante.
"Não
tinha noção nenhuma da sorte que tinha, dos privilégios todos que tinha, na
minha adolescência, em tudo. Era um menino rico, vivia numa casa com imensos
livros, não fazia ideia[...]"
Ter graça?
Quando
uma pessoa escreve poemas e julga que é um poeta está a escrever para as
pessoas que gostam de ler poesia ou para a posteridade. Uma pessoa imagina
quando é muito nova que vai morrer e que só depois de morrer é que vão ver os
meus poemas e ver que sou um génio. É típico das crianças, isso. Mas lá em
Manchester, a escrever ao Vilela, percebi o que é escrever para alguém, para o
leitor, propositadamente. Tem que interessar a pessoa, é uma carta, tem que ter
graça. Há muita gente em Portugal que continua a escrever como se fosse para
ninguém, num português incompreensível, não faz o mínimo esforço para
interessar, para fascinar ou para ter graça. Não há esforço. Há aquela ideia
de: “Agora vou despejar a minha alma, vou-me exprimir e que se fodam os leitores”.
Nessas cartas, estava a escrever para uma pessoa que conhecia bem, sabia o que
é que interessava.
Essa coisa linda que é uma carta, para já, é um luxo.
Escrever tanto, estar 10 horas a escrever uma carta que outra pessoa lê em 10
minutos? É um luxo. Nos jornais uma pessoa escreve para a multidão, qualquer
pessoa pode ler. Mas escrever só para uma pessoa, só quando uma pessoa tem
muito tempo e é muito nova. São quase cartas de amor, as cartas de amor fazem a
mesma coisa. Quando uma pessoa escreve uma carta de amor a outra pessoa tem que
acreditar que é uma carta para ela, para ela, Joana, ou para ele, Miguel, e não
uma carta genérica para homens ou mulheres. O genérico, o abstracto, não move
ninguém. Tem que ser dirigido à pessoa que lê. A pessoa quando lê diz assim:
“Isto sou eu”, não são os homens em geral, ou as mulheres em geral, ou whatever.
Como a primeira carta que escreveu à Maria João [sua mulher], para se
conhecerem.
Como as cartas que escrevia à Maria João tinham de ser
para a Maria João, só para a Maria João, não para as mulheres da idade dela ou
as mulheres bonitas. Isso falha, está mal escrito. Uma coisa que diz assim: “Os
teus olhos são não sei quanto”. Isso nota-se muito nas coisas de engate. Só
conheço os anos 80, em que as pessoas diziam: “Então os anjos desceram à
Terra?”. Tudo o que se aplica a toda a gente não funciona. Quando a pessoa quer
escrever uma carta, ou seduzir, que é a mesma coisa, tem de ser específico à
pessoa. A pessoa tem de dizer: “Então, para onde é que tu vais? Vais beber o
teu iced tea com o duplo
limão?” E a pessoa diz: “Ah, sim, isso sou eu, duplo limão sou eu”. Por isso é
que é tão bom escrever cartas, a carta é dirigida àquela pessoa.
A falta de
resposta não mudou o destinatário das cartas? Nunca sentiu que as cartas que
escrevia passaram a ser, a dada altura, para o Miguel?
Sim, é isso mesmo. Porque não havendo resposta,
torna-se perfeitamente literário. Uma pessoa não tendo resposta continua a
escrever. Não estou a escrever para ele saber o que estou a fazer, estou a
escrever também para passar o tempo, para me sentir menos sozinho, para evocar
o que me falta. Aquilo é uma saudade maciça, a saudade da amizade, dos rituais
da amizade, do riso, mas também dos sítios, onde isso se passa, que é Portugal,
que é um país maravilhoso comparado com o norte da Inglaterra. Ou comparado com
tudo. Não tinha noção nenhuma da sorte que tinha, não tinha noção dos
privilégios todos que tinha, na minha adolescência, em tudo. Era um menino
rico, vivia numa casa com imensos livros, não fazia ideia. Uma pessoa não fazia
ideia nesses tempos.
Escreve:
“Portugal é o único país em que só se pode estar, estando fora dele”.
Sim,
porque a maneira como se mitifica… Levei muito tempo para que me passasse
aquela coisa de comer tudo, andava à procura de tudo. Uma pessoa à distância,
ainda em Portugal, com a coisa das saudades, uma pessoa só se lembra das
coisas… Uma pessoa constrói, mesmo os desenhos que se faz, de lembranças, de
viagens, de coisas, torna-se tudo maravilhoso…
Gostava de lhe perguntar pelo
que não é maravilhoso, até porque um dos temas mais presentes neste livro é uma
certa obsessão com a foleirice, com o que é foleiro.
Naquela
idade uma pessoa diz sempre: “É pena que os jovens não escrevam”. Mas, por um
lado, é muito bom que não escrevam, porque ser jovem é ter um excesso de
energia, e naquela idade uma pessoa é insuportável. Como é ignorante, uma
pessoa é insuportável. Aquela coisa infantil do horror do foleiro… Mas é
engraçado que, com o tempo, estou a voltar a essas coisas.
Quando vejo, por exemplo, na música, a dizerem bem dos
ABBA: “Agora tudo vale, o que interessa é gostar e curtir, guilty pleasures!” Percebo que o
foleiro está mais ameaçado do que sempre porque tomou conta de tudo, agora vale
tudo! Já não há nenhuma distinção. Uma pessoa vai ver a música dos anos 1980
que ficou e é só merda. Os Duran Duran, os Depeche Mode, são uma grande merda.
E eles são os melhores da merda, mas então a merda, os Modern Talking… Pessoas
super cultas — que não são, claro, super cultas, porque senão não diziam isso —
que dizem: ah, os ABBA e os Modern Talking, é muito bom. Não é nada muito bom,
é muito mau!
Agora dei uma volta, porque passei uma grande fase em
que dizia: “Não interessa, o foleiro está no olho de quem vê”. Mas não. Assim
como há pessoas maldosas, pessoas malvadas — não nos dá jeito de dizer, mas há
pessoas que são más, e há pessoas que são boas, e a maior parte das pessoas são
assim-assim — também há o feio,
também há pessoas feias. Há pessoas muito foleiras. As festas que há no verão
em Portugal, uma pessoa que viva essas festas, ou que não tenha alternativa,
que se ponha a ouvir a música, a chamada música pimba. Aquilo é a mesma coisa
que uma doença. O que faz mal faz mal. Faz mal ao nosso sentido estético,
ataca-nos o cérebro. Faz ao nosso cérebro o que fazem aos pepinos quando fazem
pickles. Aos pepinos põem vinagre, aquilo empapa-nos a cabeça. Aquilo é mau. É
mesmo o mal, devia ser preso.
"É um
livro em que me reconheço absolutamente. Acho que não mudei absolutamente nada.
O entusiasmo pelas coisas, aquela loucura de um lado para o outro. A energia de
ver um mundo tão grande e tão rico e tão bom. Como é que eu vou meter isso tudo
cá dentro? Falo como se já soubesse tudo o que havia para saber. Mas claro que
sabia que não sabia nada"
Em mais uma
passagem sobre o conceito de foleiro escreve que “a literatura portuguesa é, na
generalidade, a literatura da foleirice”. Ainda concorda?
Não,
já não concordo nada. É preciso ver que não conhecia nada, era tão novo, estava
a conhecer tudo pela primeira vez. Uma das coisas principais, talvez a coisa
principal, quando cheguei lá foi encontrar a biblioteca John Rylands, a
biblioteca de Manchester. Maravilhosa biblioteca, uma pessoa podia andar pela
biblioteca fora, não era preciso requisitar os livros. Andava pelos corredores
todo o dia. Toda a literatura portuguesa li lá, todos os livros, assim todos
encadernados, a poesia toda portuguesa, milhares de livros, ainda por cima
todos novos. Fui tirando um a um. É impossível fazer isso na internet. Ia
tirando os livros, abria, lia uns poemas para ver se gostava e punha logo outra
vez e tirava outros. Numa tarde com oito horas lia praí uns 50 poetas,
rejeitava quase todos.
Neste livro faz uma lista dos
bons escritores portugueses, distingue os “enormes” e os “bonzitos”.
Sim, continuo a achar que aqueles de que gostei continuam a ser aqueles que
são bons.
50 anos
depois, há alguém que gostasse de ter incluído nesta lista?
Não
me lembro da lista. Sei que está lá o Herberto Hélder, o João Miguel Fernandes
Jorge, a Maria Teresa Horta, mas pronto, há muitos que faltam. Muitos grandes.
Disse-me que
não releu estas cartas.
Não.
Fico horrorizado. A energia, a intensidade é tão… É muito show-off. Com 20 anos
dizer: “Eu li isto, fiz aquilo e depois”… É uma coisa de show-off, é a coisa da
ignorância de estar a aprender. Podia dizer que trazia 20 livros por dia para
casa e lia tudo. E no dia seguinte ia lá buscar mais. Era uma riqueza, tipo
Gruta de Aladdin. Embora, pronto, a minha casa já tinha muitos livros. Mas eram
livros do meu pai e livros da minha mãe. Ali era eu que decidia: a literatura
francesa, a portuguesa, a italiana. Podia fazer o que quisesse. É a maior
sensação de riqueza de sempre a de poder mexer nos livros todos. Todos os
livros. Aquilo eram infinitos livros! Uma biblioteca lindíssima onde podia ler
só um bocadinho. Ah, o luxo de ler só um poema e depois fechar um livro e
dizer: dá cá outro.
Voltando às
cartas e à verdade.
Há
muita coisa acrescentada. Há coisas que eu inventava, personagens inventadas. É
uma coisa ultra-literária, mas o Vilela sabia disso. A verdade em si é muito
chata. Uma pessoa contar a verdade: “Vim para aqui, não sei o quê, estive a ler
até às duas da manhã. Depois deitei-me.” É muito chato. Uma pessoa para
escrever, para contar uma coisa, tem que acrescentar um ponto. Não é fazer como
os portugueses que dizem assim: “Aposto que aí acrescentaste um ponto”. Ó, pois
claro que acrescentei. Tive que acrescentar, está tudo mudado para se tornar
giro, olha que porra. “Eu fui ao médico, não sei o quê, ver do joelho, voltei,
doeu-me”. É isso que queres ouvir? Pronto. Então fica contente com essa
história. Uma pessoa tem que dizer que conheceu, mas claro que não conheci.
Essa é a essência da escrita: a liberdade que temos de mentir, de inventar. De
dizer: “Fui e levei uma chapada”. Não levei chapada nenhuma. Mas tem graça ler.
Porque o que se escreve é destinado a ler. E ler tem de ser divertido, tem de
ter graça, tem de ser bonito. Todos os dias uma pessoa tem de pegar nas coisas
bonitas e fixá-las. Torná-las interessantes, torná-las bonitas para quem lê. A
pessoa que lê tem de ser compensada. Porque ler, ainda-por cima hoje em dia,
uma pessoa que se disponha a ler, só a atitude de se sentar com o telemóvel ou
com um livro é uma dádiva. Uma pessoa que se predispõe a ler hoje em dia, em
que há tanta coisa, tem que ser acarinhada. O que lê tem de ser rico e denso. O
texto tem de fazer coisas que nenhum filme pode fazer. O filme não pode nunca
saltar como salta um texto. Podemos saltar de Paris para Viena, para aqui e
para ali, para o gato, para o cão, para o céu, para Deus nosso Senhor. Desce e vem,
tudo ao mesmo tempo.
▲Com 20
anos, Miguel Esteves Cardoso foi estudar Estudos Políticos, em Inglaterra. Para
combater a solidão, agarrava-se à máquina de escrever e escrevia cartas ao
melhor amigo, que vivia em Lisboa (CONTINUA)
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