sexta-feira, 4 de abril de 2025

II -CONCLUSÃO DO TEXTO ANTERIOR

 

Mais globalização, maior fraternidade. E maior libertação dos trabalhos de cócoras.


Espanha viu o número de imigrantes multiplicar-se por dez na década de 2000. A maioria é de Marrocos e da América Latina. O sentimento anti-imigração começou a crescer, mas a criminalidade não subiu.

JOÃO FRANCISCO GOMES Texto

OBSERVADOR, 03 abr. 2025, 19:323

Índice

O boom da imigração em Espanha entre 2000 e 2010

Sentimento anti-imigração sobe e extrema-direita aproveita a boleia

Políticas migratórias mais flexíveis, com oposição da extrema-direita

Criminalidade e imigração? Dados mostram que não há ligação

Segundo a investigadora, não é tão comum em Espanha como noutros países europeus ouvir-se o argumento anti-imigração segundo o qual os imigrantes “roubam” os empregos dos cidadãos nacionais. “Às vezes, é usado o argumento do acesso aos serviços públicos, de quem tem as ajudas, por exemplo nos jardins de infância, no refeitório na escola, no acesso aos hospitais”, exemplifica. “Mas em termos de ‘estão a roubar-nos os trabalhos’, menos.”

Mesmo no que toca ao crescimento da extrema-direita em Espanha, Blanca Garcés destaca que o principal partido daquele campo político, o Vox, não cresceu com base num discurso anti-imigração.

“O Vox não nasceu como partido claramente anti-imigração. Nos primeiros anos do Vox, o tema da imigração não era central. O tema central para o Vox, para a extrema-direita, era o tema territorial, tema da Catalunha, relativamente ao resto de Espanha. O Vox, a extrema-direita, cresceu sobretudo ao início à boleia desta questão”, explica Blanca Garcés, recordando como a perspetiva nacionalista e a oposição à autonomia regional (e especialmente aos anseios de independência da Catalunha) foram determinantes para o crescimento do partido.

"O Vox não nasceu como partido claramente anti-imigração. (...) O tema central para o Vox, para a extrema-direita, era o tema territorial, tema da Catalunha. (...) Entretanto, foi-se adaptando a outras questões e agora, sim, têm o tema da imigração como um tema central. Falam da criminalidade, dizem ‘queremo-los legais, mas não ilegais’ e problematizam o tema do Islão. O Islão como questão e problema cultural, não necessariamente ligado à criminalidade."

Blanca Garcés, investigadora especializada em migrações

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 Entretanto, [o Vox] foi-se adaptando a outras questões e agora, sim, têm o tema da imigração como um tema central. Falam da criminalidade, dizem ‘queremo-los legais, mas não ilegais’ e problematizam o tema do Islão. O Islão como questão e problema cultural, não necessariamente ligado à criminalidade”, explica ainda a investigadora. “Por exemplo, na Alemanha, a extrema-direita esteve muito ligada ao tema da União Europeia, inicialmente eram anti-europeus, anti-UE. Noutros países, a extrema-direita surgiu com partidos de um tema, que era o tema da imigração. No caso de Espanha, o Vox não cresceu a partir deste tema, mas sim a partir das tensões na questão nacional. Pouco a pouco, foi adoptando o tema da imigração.”

Políticas migratórias mais flexíveis, com oposição da extrema-direita

Nos últimos meses, a discussão política sobre a imigração em Espanha concentrou-se, essencialmente, na revisão da regulamentação da lei de imigração, que flexibilizou a regularização daqueles que se encontram ilegais no país. Com as novas regras, aprovadas em Conselho de Ministros em novembro de 2024, o governo espanhol espera conseguir regularizar a situação de cerca de 900 mil imigrantes irregulares nos próximos três anos. O debate dos meses anteriores incluiu, contudo, fortes divisões partidárias sobre questões quentes como o que fazer aos menores não acompanhados ou aos imigrantes que cometeram crimes.

Como explica a investigadora Blanca Garcés, a raiz desta questão está, em parte, nas próprias normas actualmente em vigor em Espanha. O facto de os cidadãos da América Latina poderem entrar em Espanha sem necessidade de visto “explica, em grande parte, a facilidade com que chegam”, uma vez que não existe “uma fronteira fechada”.

“O que acontece é que chegam e têm autorização para ficar durante 90 dias”, explica a académica, que afirma mesmo que “a maioria dos imigrantes em situação irregular chega de forma regular, através dos aeroportos, porque têm esta isenção de visto”. Passados os três meses, se não voltam aos seus países de origem, “ficam em situação irregular” em Espanha. “Chegam como turistas, mas ficam. Ao ficar, passam a estar irregulares, porque não têm visto de residência”, sublinha Blanca Garcés.

A legislação espanhola prevê um modelo especificamente destinado à regularização dos imigrantes em situação irregular — o Arraigo. “Isto mudou recentemente. Até agora, ao fim de três anos a residir irregularmente em Espanha, se tivesse uma oferta de trabalho, poderia regularizar-se através daquilo a que se chama o Arraigo. É um modelo muito específico e muito singular no contexto europeu”, sustenta Blanca Garcés, explicando que se trata de um procedimento que não é automático, mas desencadeado pelo próprio imigrante através de um pedido. “Arraigo vem de raízes. Demonstra que está arraigado e recebe uma autorização de residência.”

Os estrangeiros com autorização de residência podem, posteriormente, aceder à nacionalidade espanhola, após um período de pelo menos dez anos a residir em Espanha com essa autorização. Existem algumas excepções e vias rápidas: por exemplo, os cidadãos que tenham obtido o estatuto de refugiado (cinco anos), os cidadãos ibero-americanos, de Andorra, das Filipinas, da Guiné Equatorial, de Portugal ou de origem judaica sefardita (dois anos) e ainda um conjunto de pessoas que tenham direito à nacionalidade espanhola por outras razões (apenas um ano).

A nova regulamentação,aprovada pelo governo espanhol em novembro, introduziu algumas alterações ao mecanismo de Arraigo, flexibilizando-o. Por exemplo, o tempo de permanência em Espanha necessário para aceder a esta figura jurídica passou de três para dois anos — e as modalidades de Arraigo foram reconfiguradas, havendo diferentes requisitos para imigrantes que tenham vínculos familiares, que se comprometam a receber formação numa área profissional em que exista procura no mercado laboral espanhol ou que tenham um contrato de trabalho, por exemplo.

"Diria que a política de imigração em Espanha é uma política de laissez-faire. Ou seja, muito aberta, sobretudo à chegada dos latino-americanos, para cobrir a procura do mercado laboral." Blanca Garcés, investigadora especializada em migrações

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A nova regulamentação introduziu também modificações nos modelos de reagrupamento familiar, que se tornaram mais flexíveis e abrangentes; nas durações dos vistos (incluindo o visto de procura de trabalho), que aumentaram para um ano; e na protecção dos trabalhadores sazonais, para quem foram criados novos vistos especiais.

A figura do Arraigo, contudo, não é consensual: em várias eleições, a extrema-direita tem-se oposto a esta política de imigração. O Vox, por exemplojá apresentou uma proposta concreta nesse sentido: “Suprimir a instituição do Arraigo como forma de regular a imigração ilegal.” No mesmo programa eleitoral das legislativas de 2019, no capítulo da imigração, surgiam outras medidas radicais, incluindo a construção de um “muro intransponível” em Ceuta e Melilla ou a determinação de que “qualquer imigrante que tenha entrado ilegalmente em Espanha estará impossibilitado, para sempre, de legalizar a sua situação”.

Diria que a política de imigração em Espanha é uma política de laissez-faire. Ou seja, muito aberta, sobretudo à chegada dos latino-americanos, para cobrir a procura do mercado laboral”, sublinha Blanca Garcés, destacando que as recentes alterações à regulamentação da lei da imigração não foram “especialmente politizadas ou questionadas”. A verdade, contudo, é que o Vox chegou a apresentar no parlamento uma moção para pedir ao governo que derrogasse a nova regulamentação e que expulsasse todos os imigrantes que entraram ilegalmente em Espanha.

Situação diferente ocorreu durante o ano passado, quando os partidos políticos espanhóis estiveram bastante divididos a propósito de uma alteração à própria lei da imigração, concretamente ao artigo sobre os menores não acompanhados: o PSOE pretendia implementar a obrigatoriedade darepartição dos menores não acompanhados pelas várias comunidades autónomas (algo que aliviaria especialmente as Canárias, onde há milhares de menores não acompanhados à espera de uma solução), mas a direita e a extrema-direita chumbaram a proposta. Pedro Sánchez apelaria ao PP que se associasse à solução do governo, em vez de se colar ao Vox e de “reproduzir os discursos da direita mais extrema”. Num debate parlamentar em outubro do ano passado, Pedro Sánchez chegou mesmo a acusar o PP e o Vox de xenofobia, embora tenha admitido que a imigração gera “fricções” na sociedade espanhola. “Nós, os espanhóis, somos filhos da migração e não seremos pais da xenofobia”, atirou Sánchez. “Façamos uma política migratória de que os nossos pais se possam sentir orgulhosos; e façamos uma política migratória que garanta o futuro dos seus netos.”

Um ano antes, o Vox já tinha protagonizado uma polémica ao avançar com uma proposta no parlamento para discriminar os imigrantes oriundos de países de maioria muçulmana — concretamente, para “suspender os expedientes de aquisição de nacionalidade espanhola, as autorizações de permanência e de residência e proibir a entrada em Espanha de imigrantes procedentes de países de cultura islâmica, enquanto não possa ser assegurada a sua correta e pacífica integração no nosso território”. A proposta foi amplamente considerada inconstitucional.

À excepção de Marrocos — um país de maioria muçulmana que é o principal país de origem dos imigrantes que chegam a Espanha, pelas razões históricas e sociais já mencionadas —, não constam outros países de maioria muçulmana na lista dos 15 principais países de origem dos imigrantes em Espanha. Ainda assim, devido à sua localização, com especial destaque para as ilhas Baleares, as ilhas Canárias e as cidades de Ceuta e Melilla, Espanha é um dos países europeus mais impactados pelo fluxo de refugiados.

De acordo com a agência da ONU para os refugiados, no final de 2024 havia 423.004 refugiados, 254.050 requerentes de asilo e 8.578 apátridas em Espanha. A principal nacionalidade dos refugiados era a ucraniana, devido à guerra, seguindo-se a venezuelana e a síria. Já no que toca aos requerentes de asilo, eram maioritariamente da Colômbia, Venezuela e Peru. Nos primeiros oito meses de 2024, tinham chegado a Espanha por via marítima um total de 36.062 migrantes, através da rota do Mediterrâneo ocidental e da rota do noroeste africano (Canárias). Espanha é o destino europeu de algumas rotas de refugiados oriundas de lugares como a Síria, a Somália, o Senegal, a Gâmbia, a República Democrática do Congo, a Mauritânia, entre outros países. Em setembro de 2024, havia cerca de 5.200 crianças não acompanhadas em centros para migrantes nas ilhas Canárias.

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As ilhas Canárias são um dos principais destinos de migrantes oriundos de África que se arriscam no Oceano Atlântico em busca de asilo na Europa

Ainda assim, a imigração mais expressiva em Espanha é aquela que chega por vias regulares e acaba por ficar de forma irregular no país, sobretudo com origem na América Latina ou em Marrocos. Ao Observador, a investigadora Blanca Garcés destaca que, no que toca às políticas de imigração, faltou uma adaptação das políticas públicas ao crescimento da procura. “A população aumentou, devido à imigração, e nem sempre isto foi acompanhado por um redimensionamento dos serviços públicos”, revela. “Se aumenta a população em determinados municípios, deve também aumentar-se as escolas, os hospitais, os centros de saúde. E nem sempre foi esse o caso. Parte do problema está aí.

A habitação é um dos maiores problemas, destaca a académica, sublinhando que o acesso à habitação é cada vez mais difícil — e não apenas nas grandes cidades. “Temos uma parte da população a viver numa situação de extrema vulnerabilidade e exclusão social. Esta parte da população que vive em extrema pobreza ou vulnerabilidade, exclusão social, normalmente são migrantes”, diz Blanca Garcés.

“Por exemplo, uma das coisas que vê é que antes os sem-abrigo, as pessoas que viviam na rua, eram pessoas com perfis muito particulares, alcoólicos, gente com vidas difíceis que, por isso, tinham acabado na rua. Agora, vê-se muita gente jovem, inclusivamente famílias a viver na rua, que são de origem migrante. Já não correspondem a este perfil de sem-abrigo de antigamente. São pessoas, inclusivamente, que trabalham, mas que não têm casa. Porque essa é a questão. Podem trabalhar, mas não podem pagar uma casa. O que recebem pelo seu trabalho não é suficiente para pagar uma casa, para aceder a uma casa”, acrescenta ainda.

De acordo com Blanca Garcés, nas questões da habitação há uma grande discriminação direccionada aos imigrantes, uma vez que a maioria das casas é propriedade de privados. “Tem a ver com as suas condições legais — se não tiver uma autorização de residência, vai ser mais difícil que lhe aluguem um apartamento — e com as condições socioeconómicas: se o proprietário do apartamento puder escolher entre alguém que tem um bom salário e alguém que tem um salário baixo e um emprego precário, escolherá quem tem melhores condições”, sublinha.

Criminalidade e imigração? Dados mostram que não há ligação

Foi um caso que marcou o início do ano de 2025 em Espanha: Juan Manuel Badenas, porta-voz do Voz na câmara municipal de Valência, teve de comparecer perante um tribunal para responder por um alegado crime de ódio depois de, no verão passado, ter atribuído falsamente a autoria de um crime a um imigrante. Em causa está um crime ocorrido em julho de 2024 em Valência, um violento homicídio de um homem que foi degolado e esfaqueado com uma faca de cozinha numa zona central da cidade.

Pouco depois do crime, Badenas veio a público alegar que o homicídio não teria ocorrido “se o seu presumível assassino não tivesse entrado em Espanha”. Nas mesmas declarações, lembrou que, desde o início do governo de Pedro Sánchez, entraram em Espanha “300 mil imigrantes ilegais e isso tem de ser revertido; pedimos ao Ministério do Interior que evite a entrada de imigrantes ilegais, especialmente se alguns deles presumivelmente podem ser delinquentes”. Horas depois destas declarações, o suspeito foi detido: um espanhol, sem ligações à imigração, e com cadastro.

"O fenómeno da imigração não está a ter um impacto negativo nem significativo sobre a criminalidade."

Departamento do governo responsável pela estatística criminal, ao El País

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O grupo socialista na câmara municipal avançou com uma queixa contra Badenas por crime de ódio. Em janeiro deste ano, perante o tribunal, Badenas admitiu ser o autor das declarações, mas garantiu que não está contra a imigração e afirmou que estava a ser vítima de uma perseguição política.

O caso ilustra o argumentário que partidos como o Vox e o SALF têm intensificado nos últimos anos, procurando associar à imigração o perigo da criminalidade — um argumentário que, diz o El País, também o PP, de centro-direita, já começou a adoptar. Contudo, os números do Ministério do Interior, (que pode ver no gráfico abaixo), apontam no sentido contrário: olhando para a última década, enquanto a percentagem de população estrangeira em Espanha tem aumentado ligeiramente, a criminalidade (medida em número de infrações por mil habitantes) tem vindo a baixar ligeiramente.

Ao El País, o departamento do governo responsável pela estatística criminal  confirma mesmo que “o fenómeno da imigração não está a ter um impacto negativo nem significativo sobre a criminalidade”.

Um dado habitualmente usado para esta análise é a população prisional em Espanha. De acordo com o jornal ABC, em julho de 2024 havia 58.937 presos no país, dos quais 40.402 (68,6%) eram espanhóis e 18.535 (31,4%) eram estrangeiros. Evidentemente, trata-se de uma sobrerrepresentação dos estrangeiros na população prisional. O mesmo jornal destaca que a principal nacionalidade estrangeira representada é Marrocos (29,5%), o que bate certo com as principais nacionalidades de origem dos imigrantes em Espanha. Seguem-se Colômbia (9,3%), Roménia (7,4%), Argélia (6,7%), República Dominicana (3,3%), Equador (3,3%), Albânia (2,6%), Peru (2,5%) e Senegal (2,1%).

De acordo com o El País, que ouviu vários criminologistas, não é apenas a população imigrante que está sobrerrepresentada na população prisional, mas também outros factores, designadamente a proveniência de zonas pobres do país ou de zonas com elevadas taxas de desemprego. Por outro lado, dizem os especialistas ao mesmo jornal, há uma quantidade significativa de estrangeiros nas prisões espanholas que não são imigrantes, mas estrangeiros envolvidos em redes criminosas internacionais que foram apanhados em Espanha.

“Não se pode negar que há maior representação de população estrangeira nas prisões do que nas ruas, que a proporção é maior, que estão sobrerrepresentados”, assume Blanca Garcés ao Observador. “Mas o importante é perguntar: estão sobrerrepresentados em que tipo de criminalidade? É aqui que entra a pequena delinquência, própria de grupos mais precários e mais vulneráveis.”

A mesma especialista destaca que a extrema-direita em Espanha tem procurado associar a imigração à criminalidade, mas “de forma geral, sem apontar a um determinado grupo”, e acrescenta que este é um problema especialmente premente a nível local, em municípios onde a criminalidade é mais elevada.

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