No desgosto. No medo, certas leituras, como as citadas, contribuindo
para enriquecermos a nossa visão do mundo, um mundo de tanto desgosto em roda,
de que procuramos fugir, no refúgio do nosso passado de recordações, de diverso
calibre, o bom e o mau, afinal, como sementes de tamanho vário. Mas a bagunça
nos acompanha, ao olharmos em redor, vendo o dinheiro como bênção – para os que
o têm e para os que o desejam – e o espalhafato em redor das vidas alheias,
sobretudo das que lutam por ele, que é nele que reside a autoridade e a força
com que constroem o seu mundo de poder – na vida real, como na de ficção.
Quem Vai Limpar a Bagunça? 100 Anos de Gatsby
Como Fitzgerald conclui no final, "eles eram apenas pessoas descuidadas...destruíam coisas e criaturas e
depois recuavam de volta para o seu dinheiro ou amplo descuido.
P. JOÃO BASTO Sacerdote,
membro da equipa formadora do Seminário Diocesano de Viana do Castelo
OBSERVADOR, 11 abr. 2025, 00:18
As parábolas
são, talvez, algo que nos faz recordar imediatamente o Cristianismo. Para a maior
parte de nós, o bom samaritano, o filho pródigo, a ovelha perdida, o grão de
mostarda são, ao mesmo tempo, um fantasma e uma provocação, como são coragem,
protesto e indignação. Mas quando Jesus pergunta, “a que havemos de comparar o reino de Deus
ou em que parábola o podemos apresentar?”, lança uma exigência não terminada, que continua a
precisar de ser traduzida.
Passaram ontem 100 anos da publicação do Great
Gatsby. Hoje
vivemos alienados no alarme das distopias. Fala-se de Orwell e de Burgess, como de água no deserto. Mas, em 2025, ao lado de Stendhal
e de Kafka, só
o livro de Fitzgerald pode assumir o lugar de parábola indiscutível.
Como reflecte Daniel Marguerat, uma parábola não serve para instruir,
mas para perturbar. Desestabiliza,
antes de querer ilustrar. E no caso deste livro centenário, a história da
mulher que, confrontada com a sua infelicidade conjugal, regressa ao casamento,
matando acidentalmente com o carro do amante – Jay Gatsby – a amante do marido,
fugindo, em seguida, com este, acabando por abandonar Gatsby à sua sorte, rasga
as miopias de quem vê a crueldade do mundo pronta a assumir a forma da
vigilância permanente e injustificada.
Como Fitzgerald conclui no final, “eles eram apenas pessoas
descuidadas…destruíam coisas e criaturas e depois recuavam de volta para o seu
dinheiro ou amplo descuido, ou o que quer que os mantivesse juntos, e deixavam
as outras pessoas limparem a bagunça que eles haviam criado”.
Em
GreatGatsby, como hoje, talvez o grande protagonista não seja Tom,
Daisy, Jay ou Nick, mas o dinheiro,
o sonho de todos sermos, para usar uma expressão do romance, “ricos juntos”. Não por
acaso, Daisy pergunta a certo passo, numa inocência totalmente inconsciente,
“o que vamos fazer hoje à
tarde? O que vamos fazer o resto das nossas vidas?”
Neste
sentido, Gatsby recorre tanto a personagens que representam o velho dinheiro,
os célebres bandidos com uma biblioteca, que se anunciam como profetas, quando
são, na verdade, os mais ferozes predadores; mas, também, outras tantas que
representam o novo dinheiro, que embora luminoso e sonoro, talvez lido como o
retrato de uma sociedade aberta, só se adquire pela criminalidade, mascarada
sempre por aspirações redentoras. Cada vez mais vivemos entalados
entre estes dois polos. Certamente por isso, entre a mansão de Gatsby e Nova Iorque, Fitzgerald descreveu a
existência de um vale de cinzas, onde qualquer glamour se eclipsa. Para ele,
a distinção fundamental não é entre ricos e pobres, é entre quem destrói e pode
fugir impunemente e entre quem destrói e fica abandonado.
Depois da tragédia, que leva à morte de
Gatsby – quando falámos de literatura o spoiler nunca é um perigo – o narrador
desabafa que “nós
prosseguimos, barcos contra a corrente, empurrados incessantemente de volta ao
passado”. De facto, é indesmentível: há hoje um
progresso que é uma ilusão, uma construção, um delírio, uma fantasia; como há
um pensamento contra a maré que não é resistência, é autorreferencialidade.
Jesus contava parábolas.
Fitzgerald também. Gatsby é a nossa ovelha perdida. Hoje, ninguém vai
procurá-lo. Todos querem ser ricos juntos. Mas alguém vai sempre morrer
sozinho.
FIM
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