sexta-feira, 11 de abril de 2025

E assim se vai vivendo


No desgosto. No medo, certas leituras, como as citadas, contribuindo para enriquecermos a nossa visão do mundo, um mundo de tanto desgosto em roda, de que procuramos fugir, no refúgio do nosso passado de recordações, de diverso calibre, o bom e o mau, afinal, como sementes de tamanho vário. Mas a bagunça nos acompanha, ao olharmos em redor, vendo o dinheiro como bênção – para os que o têm e para os que o desejam – e o espalhafato em redor das vidas alheias, sobretudo das que lutam por ele, que é nele que reside a autoridade e a força com que constroem o seu mundo de poder – na vida real, como na de ficção.

Quem Vai Limpar a Bagunça? 100 Anos de Gatsby

Como Fitzgerald conclui no final, "eles eram apenas pessoas descuidadas...destruíam coisas e criaturas e depois recuavam de volta para o seu dinheiro ou amplo descuido.

P. JOÃO BASTO Sacerdote, membro da equipa formadora do Seminário Diocesano de Viana do Castelo

OBSERVADOR, 11 abr. 2025, 00:18

As parábolas são, talvez, algo que nos faz recordar imediatamente o Cristianismo. Para a maior parte de nós, o bom samaritano, o filho pródigo, a ovelha perdida, o grão de mostarda são, ao mesmo tempo, um fantasma e uma provocação, como são coragem, protesto e indignação. Mas quando Jesus pergunta, “a que havemos de comparar o reino de Deus ou em que parábola o podemos apresentar?”, lança uma exigência não terminada, que continua a precisar de ser traduzida.

Passaram ontem 100 anos da publicação do Great Gatsby. Hoje vivemos alienados no alarme das distopias. Fala-se de Orwell e de Burgess, como de água no deserto. Mas, em 2025, ao lado de Stendhal e de Kafka, só o livro de Fitzgerald pode assumir o lugar de parábola indiscutível.

Como reflecte Daniel Marguerat, uma parábola não serve para instruir, mas para perturbar. Desestabiliza, antes de querer ilustrar. E no caso deste livro centenário, a história da mulher que, confrontada com a sua infelicidade conjugal, regressa ao casamento, matando acidentalmente com o carro do amante – Jay Gatsby – a amante do marido, fugindo, em seguida, com este, acabando por abandonar Gatsby à sua sorte, rasga as miopias de quem vê a crueldade do mundo pronta a assumir a forma da vigilância permanente e injustificada.

Como Fitzgerald conclui no final, eles eram apenas pessoas descuidadas…destruíam coisas e criaturas e depois recuavam de volta para o seu dinheiro ou amplo descuido, ou o que quer que os mantivesse juntos, e deixavam as outras pessoas limparem a bagunça que eles haviam criado”.

Em GreatGatsby, como hoje, talvez o grande protagonista não seja Tom, Daisy, Jay ou Nick, mas o dinheiro, o sonho de todos sermos, para usar uma expressão do romance, “ricos juntos. Não por acaso, Daisy pergunta a certo passo, numa inocência totalmente inconsciente, “o que vamos fazer hoje à tarde? O que vamos fazer o resto das nossas vidas?

Neste sentido, Gatsby recorre tanto a personagens que representam o velho dinheiro, os célebres bandidos com uma biblioteca, que se anunciam como profetas, quando são, na verdade, os mais ferozes predadores; mas, também, outras tantas que representam o novo dinheiro, que embora luminoso e sonoro, talvez lido como o retrato de uma sociedade aberta, só se adquire pela criminalidade, mascarada sempre por aspirações redentoras. Cada vez mais vivemos entalados entre estes dois polos. Certamente por isso, entre a mansão de Gatsby e Nova Iorque, Fitzgerald descreveu a existência de um vale de cinzas, onde qualquer glamour se eclipsa. Para ele, a distinção fundamental não é entre ricos e pobres, é entre quem destrói e pode fugir impunemente e entre quem destrói e fica abandonado.

Depois da tragédia, que leva à morte de Gatsby – quando falámos de literatura o spoiler nunca é um perigo – o narrador desabafa que “nós prosseguimos, barcos contra a corrente, empurrados incessantemente de volta ao passado”. De facto, é indesmentível: há hoje um progresso que é uma ilusão, uma construção, um delírio, uma fantasia; como há um pensamento contra a maré que não é resistência, é autorreferencialidade.

Jesus contava parábolas. Fitzgerald também. Gatsby é a nossa ovelha perdida. Hoje, ninguém vai procurá-lo. Todos querem ser ricos juntos. Mas alguém vai sempre morrer sozinho.

FIM

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