quarta-feira, 16 de abril de 2025

Marcha atrás

 

Nas propostas de Trump, que, como toda a gente, avança ou recua, às vezes com o apoio de amigos. Um texto de Edgar Caetano, naturalmente complexo, mas de interesse, mesmo para os leigos do “como vai o mundo”.

O banqueiro, a China, os republicanos ou o "castelo de cartas" no mercado de dívida. Quem fez Trump recuar nas tarifas?

Secretário do Tesouro terá avisado Trump para enorme tensão nos mercados (uma tensão em que a China pode ter tido um dedo). Tarifas começaram a ser vistas com cepticismo por republicanos do Congresso.

EDGAR CAETANO: Texto

OBSERVADOR, 11 abr. 2025, 00:45

Índice

Terá a China dinamitado o (alegado) plano de Trump ao “despejar” obrigações dos EUA no mercado?

“As pessoas estavam a ficar ansiosas”. Mercado de dívida esteve à beira de catástrofe?

Um dos banqueiros mais poderosos do mundo falou (e disse que recessão era “provável”)

A persuasão do secretário do Tesouro (que terá estado perto de se demitir) e as brechas que se abriram entre os republicanos

O recuo de Trump nas “tarifas recíprocas” impostas aos vários países (com excepção da China, cujas tarifas foram ainda mais agravadas) terá começado com um voo do seu secretário do Tesouro, Scott Bessent, de Washington para a Flórida. Bessent, que agora elogia publicamente Trump por ter planeado todo este processo, interrompeu o fim de semana de golfe do Presidente dos EUA para o avisar de que as bolsas iriam ter uma “segunda-feira negra” caso não houvesse uma mudança de estratégia.

Dias antes, no final da semana passada, os mercados accionistas acumularam fortes perdas mas a maior razão para alarme estava noutro fórum na negociação dos títulos do Tesouro norte-americano, que mostrava que os investidores começavam a olhar para “todos os activos denominados em dólares com desconfiança”, nas palavras de um analista. E o facto de os momentos de maior pressão nesses títulos acontecerem durante a noite (nos EUA) levantou suspeitas de que a China poderia estar a vender quantidades significativas de dívida pública norte-americana.

A subida dos juros dos Treasuries, que deitava por terra um (alegado) plano da administração Trump para fazer baixar os custos do Estado federal com a dívida pública, arriscava, também, provocar a implosão de um recanto dos mercados financeiros que poderia ter consequências imprevisíveis – até porque esse “recanto” já movimenta algo como um bilião de dólares em investimentos alavancados em crédito, segundo o Banco de Inglaterra.

Perante o risco de um colapso nos mercados financeiros, na quarta-feira de manhã, Trump terá ligado a televisão e viu na Fox um dos mais influentes banqueiros do mundo (presidente do JPMorgan Chase) dizer que a Casa Branca tinha de fazer alguma coisa, já que uma recessão tinha passado a ser “o cenário mais provável”. Minutos depois, escreveu na sua rede social, a Truth Social, que “este é um óptimo momento para comprar acções” e, algumas horas depois, a “pausa” de 90 dias tornou-se oficial – também através da Truth Social.

Terá a China dinamitado o (alegado) plano de Trump ao “despejar” obrigações dos EUA no mercado?

Logo após o anúncio das “tarifas agravadas”, no “Dia da Libertação” (2 de abril), alguns especialistas especularam que o plano da administração Trump poderia ter segundas intenções. Além das receitas que a cobrança das tarifas podia dar ao orçamento federal (que tem um défice anual superior a 6%), o que poderia estar na cabeça dos conselheiros do Presidente seria um plano elaborado para baixar os custos que os EUA têm de pagar para gerir a dívida pública.

Como é que ia fazer-se isso, de acordo com os proponentes desta teoria? Por um lado, provocar uma “guerra comercial” levaria, como se comprovou, a uma descida nos mercados accionistas. Mesmo que estes tivessem quedas relevantes, as fortes valorizações dos últimos anos dariam alguma margem de manobra à administração Trump para desdramatizar uma correcção negativa nos índices accionistas.

Muito do dinheiro que saísse das acções acabaria, como é habitual em momentos de queda das bolsas, por fluir para o mercado de obrigações, visto como um activo mais seguro – especialmente os títulos de dívida norte-americana que, apesar do elevado endividamento público norte-americano, continuam a ser vistos como o activo mais seguro do mundo. É o mercado maior do mundo, com 29 biliões (milhões de milhões) de dólares emitidos, e um pilar fundamental dos mercados financeiros mundiais.

Essa procura extra pelas obrigações contribuiria para fazer subir o respectivo preço – e, nas obrigações, quanto mais sobe o preço mais se comprime o juro implícito. Ou seja, criava-se assim condições para que o Tesouro norte-americano pudesse emitir dívida a um juro mais baixo.

Num estado federal tão endividado como o dos EUA, que precisa de emitir grandes quantidades de nova dívida para ir “rolando” aquela que vai atingindo a maturidade e sendo reembolsada aos investidores, cada ponto-base conta. Os EUA já estão a suportar uma taxa superior a 4% a 10 anos (com a taxa de inflação em apenas 2,8%), pelo que desde o início do mandato a administração Trump tem como objectivo baixar estes custos de financiamento (é, também, por isso que Trump quase diariamente pede ao presidente da Reserva Federal dos EUA para baixar as taxas de juro).

Os juros das obrigações federais dos EUA caíram após o “Dia da Libertação”. Mas, depois, inverteram o rumo. FONTE: TradingEconomics

Nos primeiros dias após o “Dia da Libertação”, o plano – se este era, de facto, o plano (ou parte dele)estava a correr de feição. Os juros das obrigações federais (os Treasuries) baixaram da vizinhança dos 4,2%/4,3% até aos 3,9%, o que faz uma diferença gigante naquilo que os EUA têm de pagar para se financiar. As estimativas apontam para que por cada ponto percentual de juro adicional na emissão de dívida há um custo de90 mil milhões de dólares.

Porém, sobretudo a partir do início desta semana, a tendência inverteu-se e com grande velocidade. No espaço de dois dias, as taxas de juro não só regressaram aos valores das semanas anteriores como continuaram a subir – até perto dos 4,5%. Se é verdade que a administração tinha este plano, então ele, aí, terá começado a correr mal.

Cada ponto percentual de juro significa mais 90 mil milhões em custos na dívida

O que causou essa inversão é uma incógnita: algum maior optimismo nos mercados de acções, que se sentiu em alguns momentos no início desta semana, poderá ter contribuído para a queda (do preço) dos Treasuries. Outra explicação, mais técnica, pode estar relacionada com investimentos complexos que nos últimos anos se geraram no mercado de obrigações (ver ponto seguinte).

Mas o facto de os maiores momentos de descida no preço (e subida dos juros) dos Treasuries terem ocorrido enquanto os norte-americanos dormiam levou a que se especulasse que a China, um grande investidor na dívida pública dos EUA, poderia estar a vender quantidades significativas de títulos nos mercados.

Nenhum responsável político nem nenhum meio de comunicação social confirmou essa hipótese, mas os rumores nos fóruns financeiros online intensificaram-se nos últimos dias. A edição electrónica da revista Forbes deu eco a esses rumores e escreveu que “a China poderá estar a despejar Treasuries“.

“Os juros dos títulos do Tesouro americano têm subido acentuadamente —não durante a sessão bolsista, mas durante a noite, quando os mercados estrangeiros estão abertos”, escreveu a Forbes, salientando que “esses picos durante a noite são mais do que apenas ruído do mercado – podem ser o sinal mais claro até agora de que a China está discretamente — mas deliberadamente — a vender títulos do Tesouro americano”.

Principal visada nas críticas de Donald Trump, a China teria um incentivo natural para fazer tudo ao seu alcance para dinamitar as políticas do Presidente dos EUA. A China já chegou a ter mais de 1,3 biliões de dólares em dívida norte-americana mas estima-se que essa exposição ronde, atualmente, os 759 mil milhões, o nível mais baixo desde 2009.

Negociação dos Treasuries durante a noite (nos EUA) reforçou as suspeitas de que Xi Jinping poderia ter dado ordem de venda de grandes quantidades de Treasuries. XINHUA / Zhang Ling/EPA

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Pequim não poderá vender muitos Treasuries demasiado rapidamente (e, muito menos, publicitar muito esse movimento) porque isso poderia desestabilizar também o seu próprio mercado financeiro. Mas uma venda “silenciosa” poderá ter ajudado a instigar a pressão sobre Trump, deixando-o numa posição de maior vulnerabilidade.

A ser verdade, esse movimento terá levado o Presidente dos EUA a recuar nas tarifas de um modo geralporém, em relação à China, aconteceu o inverso: Trump agravou as tarifas aplicadas às importações da China para um valor ainda mais elevado, de 125% (145% se acrescentadas às tarifas de 20% que já tinham sido aplicadas nos últimos meses).

“As pessoas estavam a ficar ansiosas”. Mercado de dívida esteve à beira de catástrofe?

Embora o presidente Donald Trump tenha conseguido resistir às fortes quedas no mercado de acções, quando o mercado de títulos também começou a enfraquecer era apenas uma questão de tempo até que ele desistisse da aplicação das tarifas exorbitantes”, afirmou Paul Ashworth, economista-chefe para os EUA ao serviço da consultora financeira londrina Capital Economics, logo que foi conhecida a “pausa” nas tarifas.

Foi, segundo a CNN, o “medo de uma catástrofe nos mercados obrigacionistas” que levaram Trump a suspender a aplicação das tarifas (excepto à China). A mudança súbita de opinião por parte do Presidente dos EUA poderá ter sido devida não a um aumento gradual dos juros dos Treasuriese as implicações disso para o custo da dívida norte-americana a prazomas, sim, ao risco de um colapso nos mercados financeiros, com epicentro no mercado de dívida.

O recuo de Trump tem gerado algumas comparações com o episódio protagonizado por Liz Truss, a primeira-ministra britânica com o mandato mais curto de sempre (44 dias), em que também foram os mercados obrigacionistas a encostar o governo à parede, levando-o a uma mudança das políticas económicas controversas. No caso de Truss, porém, mesmo com o recuo, a primeira-ministra que sucedeu a Boris Johnson acabou por não ter condições para continuar no poder, depois de perder a confiança de vários dos seus deputados.

Neste caso, em particular, o que a rápida subida dos juros dos Treasuries terá feito foi desestabilizar uma parte dos mercados financeiros que é pouco conhecida mas que, pela sua complexidade (e alavancagem), é muito sensível a momentos de rápida desvalorização dos títulos do Tesouro norte-americano. Em causa está o chamado “Basis Trade“, uma prática de mercado que cresceu nos últimos anos e que envolve apostas complexas, com recurso a financiamento, nas pequenas diferenças entre os títulos do Tesouro e os contratos futuros associados a esses mesmos títulos.

Essa prática do mercado, onde os chamados hedge funds (fundos de cobertura de risco) são os principais intervenientes, cresceu em importância nos últimos anos. E, segundo a Bloomberg, que cita números do JPMorgan, já poderá envolver algo como 400 mil milhões de dólaresmas é impossível calcular exactamente quanto dinheiro está em causa neste “recanto” do mercado. Em novembro, o Banco de Inglaterra fez uma estimativa ainda mais volumosa, admitindo que um bilião de dólares poderia estar neste mercado – o que levou o jornal The Telegraph a falar num “castelo de cartas” que podia ruir a qualquer momento, causando graves riscos para a economia global.

Banco de Inglaterra estimou que um bilião de dólares poderia estar envolvido no "basis trade" – o que levou o jornal The Telegraph a falar num "castelo de cartas". SARAH YENESEL/EPA

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(CONTINUA)

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