Nas propostas de Trump, que, como toda a gente, avança ou recua, às
vezes com o apoio de amigos. Um texto de Edgar Caetano, naturalmente complexo,
mas de interesse, mesmo para os leigos do “como vai o mundo”.
O banqueiro, a China, os republicanos ou
o "castelo de cartas" no mercado de dívida. Quem fez Trump recuar nas
tarifas?
Secretário
do Tesouro terá avisado Trump para enorme tensão nos mercados
(uma tensão em que a China pode ter tido um dedo). Tarifas começaram a ser vistas com cepticismo por republicanos do
Congresso.
EDGAR CAETANO: Texto
OBSERVADOR, 11
abr. 2025, 00:45
Índice
Terá a China dinamitado o (alegado)
plano de Trump ao “despejar” obrigações dos EUA no mercado?
“As pessoas estavam a ficar
ansiosas”. Mercado de dívida esteve à beira de catástrofe?
Um dos banqueiros mais poderosos do
mundo falou (e disse que recessão era “provável”)
O
recuo de Trump nas “tarifas recíprocas” impostas aos vários países (com excepção da China, cujas tarifas
foram ainda mais agravadas) terá começado com um voo do
seu secretário do Tesouro, Scott Bessent, de
Washington para a Flórida. Bessent, que agora elogia publicamente Trump por
ter planeado
todo este processo, interrompeu o fim de semana de golfe do Presidente
dos EUA para o avisar de que as bolsas iriam ter uma “segunda-feira negra” caso
não houvesse uma mudança de estratégia.
Dias antes, no final da semana passada,
os mercados accionistas acumularam fortes perdas mas a maior razão para alarme estava
noutro fórum – na negociação dos títulos do Tesouro norte-americano,
que mostrava que os investidores começavam a olhar para “todos os activos denominados em dólares com desconfiança”, nas
palavras de um analista. E o facto de
os momentos de maior pressão nesses títulos acontecerem durante
a noite (nos EUA) levantou
suspeitas de que a China poderia estar a vender quantidades
significativas de dívida pública norte-americana.
A subida
dos juros dos Treasuries, que deitava por
terra um (alegado) plano da administração Trump para fazer baixar os custos do
Estado federal com a dívida pública, arriscava, também, provocar a implosão
de um recanto dos mercados financeiros
que poderia ter consequências imprevisíveis – até porque esse “recanto” já movimenta algo como um bilião de dólares
em investimentos alavancados em crédito, segundo o Banco de Inglaterra.
Perante o risco de um colapso nos mercados financeiros, na quarta-feira
de manhã, Trump terá ligado a televisão e viu na Fox um dos mais influentes
banqueiros do mundo (presidente do JPMorgan Chase) dizer que a Casa Branca tinha de fazer alguma coisa,
já que uma recessão tinha passado a ser “o cenário mais provável”. Minutos
depois, escreveu na sua rede social, a Truth Social, que
“este é um óptimo momento para comprar acções” e, algumas horas depois, a
“pausa” de 90 dias tornou-se oficial – também através da Truth
Social.
Terá a China dinamitado o (alegado)
plano de Trump ao “despejar” obrigações dos EUA no mercado?
Logo após
o anúncio das “tarifas agravadas”, no “Dia da Libertação” (2 de abril), alguns especialistas especularam que o plano da administração Trump poderia
ter segundas intenções. Além das receitas que a cobrança das tarifas podia
dar ao orçamento federal (que tem um défice anual superior a 6%), o
que poderia estar na cabeça dos conselheiros do Presidente seria um plano
elaborado para baixar os custos que os EUA têm de pagar para gerir a dívida
pública.
Como é que ia fazer-se isso, de acordo com os proponentes desta
teoria? Por um lado, provocar uma
“guerra comercial” levaria, como se comprovou, a uma descida nos mercados accionistas. Mesmo que estes tivessem quedas
relevantes, as fortes valorizações dos últimos anos dariam alguma margem de
manobra à administração Trump para desdramatizar uma correcção negativa nos
índices accionistas.
Muito
do dinheiro que saísse das acções acabaria, como é habitual em
momentos de queda das bolsas, por fluir para o mercado de obrigações, visto como um activo mais seguro –
especialmente os títulos de dívida norte-americana que, apesar do elevado
endividamento público norte-americano, continuam a ser vistos como o activo mais seguro do
mundo. É o
mercado maior do mundo, com 29 biliões (milhões de milhões) de dólares
emitidos, e um pilar fundamental dos mercados financeiros mundiais.
Essa
procura extra pelas obrigações contribuiria para fazer subir o
respectivo preço – e, nas obrigações, quanto mais sobe o preço mais se comprime
o juro implícito. Ou seja, criava-se assim condições para que o
Tesouro norte-americano pudesse emitir dívida a um juro mais baixo.
Num estado federal tão endividado como o dos EUA, que precisa de emitir grandes quantidades de
nova dívida para ir “rolando” aquela que vai atingindo a maturidade e sendo
reembolsada aos investidores, cada ponto-base conta. Os EUA
já estão a suportar uma taxa superior a 4% a 10 anos (com a taxa de inflação em
apenas 2,8%), pelo que desde o início do mandato a administração Trump tem como
objectivo baixar estes custos de financiamento (é, também, por isso que Trump
quase diariamente pede ao presidente da Reserva Federal dos EUA para baixar as
taxas de juro).
Os juros das
obrigações federais dos EUA caíram após o “Dia da Libertação”. Mas, depois,
inverteram o rumo. FONTE: TradingEconomics
Nos primeiros dias após o “Dia da Libertação”, o plano – se este era, de facto, o plano (ou parte dele) – estava a correr de feição. Os juros das obrigações federais (os Treasuries)
baixaram da vizinhança dos 4,2%/4,3% até aos 3,9%, o que faz uma diferença gigante naquilo
que os EUA têm de pagar para se financiar. As
estimativas apontam para que por cada ponto percentual de juro adicional na emissão
de dívida há um custo de90 mil milhões de dólares.
Porém, sobretudo a partir do início
desta semana, a tendência inverteu-se e com grande velocidade. No espaço de dois dias, as taxas de juro
não só regressaram aos valores das semanas anteriores como continuaram a subir
– até perto dos 4,5%. Se é verdade que a administração tinha este plano, então
ele, aí, terá começado a correr mal.
Cada ponto percentual de juro
significa mais 90 mil milhões em custos na dívida
O que causou essa inversão é uma incógnita:
algum maior optimismo nos mercados de acções, que se
sentiu em alguns momentos no início desta semana, poderá ter contribuído para a queda (do preço) dos Treasuries. Outra
explicação, mais técnica, pode estar relacionada
com investimentos complexos que nos últimos anos se geraram no mercado de
obrigações (ver ponto seguinte).
Mas o facto de os maiores
momentos de descida no preço (e subida dos juros) dos Treasuries terem ocorrido
enquanto os norte-americanos dormiam levou a que se especulasse que
a China, um grande investidor na dívida pública dos EUA,
poderia estar a vender quantidades significativas de títulos nos mercados.
Nenhum responsável político nem nenhum meio de comunicação social
confirmou essa hipótese, mas os rumores nos fóruns
financeiros online intensificaram-se
nos últimos dias. A edição electrónica
da revista Forbes deu eco a esses rumores e escreveu que “a China poderá estar a despejar Treasuries“.
“Os juros dos títulos do Tesouro
americano têm subido acentuadamente —não durante a sessão bolsista, mas durante
a noite, quando os mercados estrangeiros estão abertos”, escreveu
a Forbes, salientando que “esses picos
durante a noite são mais do que apenas ruído do mercado – podem ser o sinal
mais claro até agora de que a China está discretamente — mas deliberadamente — a
vender títulos do Tesouro americano”.
Principal visada nas críticas de Donald Trump, a China teria um
incentivo natural para fazer tudo ao seu alcance para dinamitar as políticas do
Presidente dos EUA. A China já chegou a ter mais de 1,3 biliões de dólares em
dívida norte-americana mas estima-se que essa exposição ronde, atualmente,
os 759 mil milhões, o nível mais baixo desde 2009.
▲Negociação
dos Treasuries durante a noite (nos EUA) reforçou as suspeitas de que Xi
Jinping poderia ter dado ordem de venda de grandes quantidades de Treasuries.
XINHUA / Zhang Ling/EPA
Índice (…)
Pequim não poderá vender muitos Treasuries
demasiado rapidamente (e, muito menos, publicitar muito esse movimento) porque
isso poderia desestabilizar também o seu próprio mercado financeiro. Mas
uma venda “silenciosa” poderá ter ajudado a instigar a pressão sobre Trump,
deixando-o numa posição de maior vulnerabilidade.
A ser verdade, esse movimento terá levado o Presidente dos EUA a
recuar nas tarifas de um modo geral – porém, em
relação à China, aconteceu o inverso: Trump agravou as tarifas aplicadas às importações da China para um
valor ainda mais elevado, de 125% (145% se acrescentadas às tarifas de 20% que
já tinham sido aplicadas nos últimos meses).
“As pessoas estavam a ficar
ansiosas”. Mercado de dívida esteve à beira de catástrofe?
“Embora
o presidente Donald Trump tenha conseguido resistir às fortes quedas no mercado
de acções, quando o mercado de títulos também começou a enfraquecer era apenas
uma questão de tempo até que ele desistisse da aplicação das tarifas
exorbitantes”, afirmou Paul Ashworth, economista-chefe para os EUA ao serviço da
consultora financeira londrina Capital Economics, logo que foi conhecida a
“pausa” nas tarifas.
Foi, segundo
a CNN, o “medo de uma
catástrofe nos mercados obrigacionistas” que levaram Trump a suspender a
aplicação das tarifas (excepto à China). A mudança súbita de opinião por parte do
Presidente dos EUA poderá ter sido devida não a um aumento gradual dos juros
dos Treasuries – e as implicações disso para o custo da dívida
norte-americana a prazo – mas, sim, ao risco de um colapso nos mercados financeiros,
com epicentro no mercado de dívida.
O recuo de Trump tem gerado algumas comparações com o episódio protagonizado por Liz
Truss, a primeira-ministra britânica com o mandato mais curto de sempre (44
dias), em
que também foram os mercados obrigacionistas a encostar o governo à parede,
levando-o a uma mudança das políticas económicas controversas. No caso de Truss, porém,
mesmo com o recuo, a primeira-ministra que sucedeu a Boris Johnson
acabou por não ter condições para continuar no poder, depois de perder a confiança de vários dos seus
deputados.
Neste caso, em particular, o que a
rápida subida dos juros dos Treasuries terá feito foi desestabilizar uma parte
dos mercados financeiros que é pouco conhecida mas que, pela sua complexidade
(e alavancagem), é muito sensível a momentos de rápida desvalorização dos
títulos do Tesouro norte-americano. Em
causa está o chamado “Basis Trade“,
uma prática de mercado que cresceu nos últimos anos e que envolve apostas
complexas, com recurso a financiamento, nas pequenas diferenças entre os
títulos do Tesouro e os contratos futuros associados a esses mesmos títulos.
Essa prática do mercado, onde os
chamados hedge funds (fundos de cobertura de risco) são os principais intervenientes,
cresceu em importância nos últimos anos. E, segundo a
Bloomberg, que cita números do JPMorgan, já poderá envolver
algo como 400 mil milhões de dólares – mas
é impossível calcular exactamente quanto dinheiro está em causa neste “recanto”
do mercado. Em novembro, o Banco de Inglaterra fez uma estimativa ainda
mais volumosa, admitindo que um bilião de dólares poderia estar neste mercado – o que
levou o jornal The Telegraph a falar num “castelo de cartas” que
podia ruir a qualquer momento,
causando graves riscos para a economia global.
▲Banco
de Inglaterra estimou que um bilião de dólares poderia estar envolvido no
"basis trade" – o que levou o jornal The Telegraph a falar num "castelo
de cartas". SARAH YENESEL/EPA
DONALD TRUMP ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA
AMÉRICA MUNDO
PRESIDENTE TRUMP MERCADOS FINANCEIROS
ECONOMIA COMÉRCIO EXTERNO
(CONTINUA)
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