«Se cá nevasse fazia-se cá
ski», dizia-se em jeito aliterativo, cantou-se em tempos, mantém-se vivo na
actualidade, por pura inveja, pois não podemos esquiar, a não ser em pista
artificial, nas asneiras da nossa condição, ou nas calçadas à portuguesa dos
nossos estatelanços.
São três os textos de João
Miguel Tavares que aponto, frutos das suas indignações, que bem denunciam a
frontalidade e o bom senso do articulista que é, o que nos dá prazer, embora às
vezes com alguma reserva. É o caso do primeiro texto - «A estátua de Vieira e o racismo
português» – cuja frase - «é absolutamente verdade que uma triste memória herdada do
Estado Novo ainda insiste em considerar o colonialismo português como
excepcional em matéria de integração e “humanidade” – uma tese ridícula que
deve ser combatida com todas as forças, até porque estamos a falar de
acontecimentos que têm cinco ou seis décadas e de muita gente que ainda está
viva» - peca por tolo preconceito em moda.
Não sei o que leva tão levianamente JMT
a considerar tão drasticamente o colonialismo português como falho de
humanidade, sem lançar um olhar de apreço também por quem trabalhou nessas
colónias, desbravando, ensinando, cultivando, e afinal dando mais amor a esses
que ajudou a erguer, do que por aqui se faz, no azedume de controvérsias pouco
educadas, com progressiva violência dos costumes dos homens e das mulheres, cada
vez mais falhos de educação e de sentido do dever. Como professora que fui
nessas terras, prezo-me de ter sempre respeitado esses homens que depois de um
dia de trabalho se sentavam à noite nas suas carteiras no interesse de
conquistar as luzes de algum saber, que outros, mais abastados, adquiriram mais
profundo, discrepâncias que em toda a parte houve e há. Mas os machimbombos e
outros meios de transporte transportavam igualmente brancos e pretos, sem as
distinções que havia no apartheid. Li alguns desses textos que refere J. M.
Tavares sobre o racismo português de pessoas que do colonialismo português só
apontaram os defeitos, em parcialidade atrevida e de conveniência, feita de
falso amor unilateral e demagógico, ansioso da simpatia desses que julgam defender
e a quem nada mais transmitiram do que ódio pelo tal branco racista segundo a
sua oca definição, de que o próprio Miguel Torga se fez igualmente eco, após
apressada viagem a Moçambique, como escrevi em tempos em “Anuário. Memórias
Soltas”.
São prova também de falta de amor pátrio desses tais
que tão bem descreve J.M.T. os textos seguintes, II - «Sócrates não merece cair sozinho», III-
«Uma
comédia chamada Estado português» sobre os casos das nossas tristezas, das nossas
ambições e das nossas misérias morais e físicas já bastas vezes
descritas.
I- A estátua de Vieira e o racismo português
João Miguel Tavares Público,
10 de Outubro de 2017
A conversa em torno da escravatura e do racismo
português começou a subir de tom em Abril deste ano,
quando Marcelo Rebelo de Sousa, numa vista à ilha de Gorée, no Senegal (um
antigo entreposto de escravos), resolveu declarar que Portugal tinha
reconhecido a injustiça da escravatura ao aboli-la em parte do seu território
ainda no tempo do Marquês de Pombal. Dias depois, numa
carta aberta, numerosos intelectuais repudiaram as declarações do Presidente da
República, essencialmente por duas razões: 1) por não ter havido um pedido
de desculpas oficial pela prática do esclavagismo; 2) por tais palavras
“reavivaram o branqueamento da opressão colonial implícito na visão do projeto
colonial português”.
Como cada vez mais
acontece nestes temas, os factos históricos são triturados na Bimby da
indignação, resultando daí uma mistela impossível de digerir por quem aprecie
discussões contextualizadas. Facto histórico: é absolutamente verdade que uma
triste memória herdada do Estado Novo ainda insiste em considerar o
colonialismo português como excepcional em matéria de integração e “humanidade”
– uma tese ridícula que deve ser combatida com todas as forças, até porque
estamos a falar de acontecimentos que têm cinco ou seis décadas e de muita
gente que ainda está viva. Mistela incomestível saída da Bimby da
indignação: quando se começa a exigir em 2017 declarações de perdão a um
Presidente da República a propósito de tráfico negreiro terminado há 200 anos,
aquilo que estamos a fazer não é a repor a memória histórica mas a cair na
enésima variação da culpa do homem branco, uma tendência crescente que deve
ser combatida com a mesma força que as suavizações do colonialismo português.
O historiador João
Pedro Marques tem-se fartado de publicar artigos avisados sobre este tema, cuja
leitura aconselho (por exemplo: “Pedir perdão pela escravatura? Três razões
para não ir por aí”), mas desde que Marcelo se esqueceu de fazer o seu acto de contrição
que a questão do esclavagismo e do racismo português tem vindo a subir de tom
entre as elites culturais. Joana Gorjão Henriques, uma das subscritoras da
carta aberta (e autora do livro Racismo em Português), assinou uma longa série de
artigos no PÚBLICO significativamente intitulados “racismo
à portuguesa”. E Mamadou Ba, outro dos subscritores, foi agora o
promotor da patética manifestação
contra a estátua do padre António Vieira,
alvo de uma contra-manifestação de extrema-direita em defesa de uma obra com
três índios tupi.
Infelizmente, e como é cada vez mais
habitual, as reivindicações justas misturam-se com exigências absurdas,
isolando defensores de boas causas na bolha cada vez mais delirante das
políticas de identidade. É fácil perceber porquê: se qualquer pessoa com olhos
na cara reconhece a existência de um problema de ascensão social entre os
portugueses de origem africana; qualquer pessoa com os miolos no sítio e duas
leituras do padre António Vieira reconhece, com a mesma facilidade, que Vieira
é o pior português do século XVII para escolher como exemplo de racista e
“esclavagista selectivo”. Os processos históricos deviam ter uma regra
semelhante à lei dos direitos de autor: passados 70 anos sobre determinado
acontecimento, ninguém tem mais direito a reivindicar o pagamento do que quer
que seja. Nem assunções de culpa. Nem pedidos de perdão. Nem exigências de
indemnização. Nada. É pura e simplesmente ridículo andar a pedir desculpa pelos
actos do tetravô.
II
- Sócrates não merece cair sozinho -
Público,
11 de Outubro de 2017
Não se enganem:
aquilo que ficámos a conhecer não foi a acusação de José Sócrates, mas a
acusação de um regime inteiro. Um regime composto por um povo alheado e
dependente, um poder corrupto, uma justiça amedrontada e um jornalismo manso.
Sem esta triste conjugação de pobres qualidades, José Sócrates poderia sempre
ter sido eleito em 2005, mas jamais seria reeleito em 2009. É evidente que
existe gente indecorosa em qualquer parte do mundo, mas nos países bem
frequentados as instituições não falecem todas ao mesmo tempo. Infelizmente,
durante a era Sócrates, tudo faliu, até finalmente falir o país. Tirando duas
ou três dúzias de teimosos que insistiram obsessivamente que o rei ia nu,
demasiadas pessoas em lugares de responsabilidade ou não viram o que se estava
a passar, por serem pouco espertas, ou não quiseram ver, por serem pouco
honestas. Neste momento marcante da História de Portugal, em que um
ex-primeiro-ministro é acusado de 31 crimes de corrupção, fraude fiscal,
branqueamento de capitais e falsificação de documento, convém recordar que José
Sócrates não caiu da tripeça por causa dos portugueses, que finalmente
perceberam quem ele era. Caiu por causa da crise internacional, da falência do
país e da vinda da troika. Sócrates obteve 36,6% dos votos em 2009 (mais
de dois milhões de pessoas), já depois da revelação da licenciatura fraudulenta
e das manobras para impedir a publicação de notícias; já depois da exibição do
DVD do caso Freeport onde Charles Smith declarava que ele era corrupto; já
depois de correr com Manuela Moura Guedes do programa de informação mais visto
da TVI por não apreciar o estilo e as reportagens. E mesmo após a crise
internacional, a falência do país e a vinda da troika, José Sócrates
ainda conseguiu obter 28,6% de votos para o PS – 1,57 milhões de portugueses.
Em 2015, depois de quatro anos de brutal austeridade, António Costa obteve somente
mais 180 mil votos do que José Sócrates em 2011. José Sócrates
acusado de 31 crimes e de acumular 24 milhões de euros na Suíça. Advogados
de Sócrates dizem que acusação é “romance vazio de factos e provas” As
fases-chave da Operação Marquês
Sócrates foi um
extraordinário caso de popularidade, não só entre o povo, mas sobretudo entre
as elites. E são estas elites que hoje em dia me preocupam, porque os
ex-apoiantes de Sócrates continuam por aí como se nada fosse, nos blogues, nos
jornais, nas empresas, no PS, no governo. Muitos dos que acham que os
portugueses têm o dever moral de pedir desculpa por acontecimentos do século
XVII, não vêem qualquer necessidade de pedir desculpa por acontecimentos de
2017. Não há qualquer acto de contrição por terem apoiado incansavelmente um
homem que a cada três meses era suspeito de fraude, corrupção e atentado ao
Estado de Direito, e que nunca, jamais, apresentou qualquer justificação
decente para aquilo de que era acusado. Dir-me-ão: Sócrates ainda não está
condenado. Pois não. Mas reparem como o entusiasmo dos seus defensores
esmoreceu desde a noite da detenção (21 de Novembro de 2014) até ao dia da
acusação (11 de Outubro de 2017). A verdade é esta: as acusações são demasiado
fortes e as explicações demasiado fracas. Daí Sócrates estar cada vez mais
isolado. Contudo, o julgamento que se aproxima não pode esgotar-se nele. É
sobre Sócrates, sobre Salgado, sobre Vara, sobre Bava, sobre Bataglia, e sobre
um regime construído por inúmeros ex-socratistas, que agora saem de cena na
esperança de que esqueçamos o papel que desempenharem ao longo dos anos. Eu não
esqueço. Aqui estarei para lembrar que Sócrates não ascendeu sozinho, não
governou sozinho e, acima de tudo, não merece cair sozinho.
III -Uma comédia chamada Estado Português - Público, 16
de Outubro de 2017
Quando tudo corre
mal, o Estado Todo Poderoso descobre subitamente que compete a cada cidadão
desenrascar-se sozinho. Foi o secretário de Estado da Administração Interna,
Jorge Gomes, quem o disse: “Têm de ser as próprias comunidades a ser
proativas e não ficarmos todos à espera que apareçam os nossos bombeiros e
aviões para nos resolver os problemas. Temos de nos autoproteger.” A
ministra repetiu a mesma ideia: “As comunidades têm de se tornar mais
resilientes às catástrofes.” Secretário de Estado e ministra só se esqueceram
de acrescentar este detalhe: muitas das vítimas deste domingo morreram a tentar
fazer isso mesmo – a tentar salvar sozinhas as suas casas, os seus armazéns, ou
simplesmente as suas vidas. Trinta e seis (à hora a que escrevo) não
conseguiram.
Se sacudir a água do
capote servisse para apagar as chamas já não havia fogos em Portugal.
O governo que nos desgoverna mete o nariz em tudo o que pode, e no próximo ano
até vai controlar, para efeitos fiscais, o sal que comemos. Mas quando se trata
de assumir a responsabilidade por mais uma catástrofe de dimensões absurdas, a
mensagem socialista inspira-se naqueles que antigamente classificava como
“fanáticos neoliberais”. O secretário de Estado aconselha-nos a sair da nossa
zona de conforto. A ministra produz uma variação do célebre “ai aguenta,
aguenta”. O primeiro-ministro garante não ter uma “varinha mágica” que possa
resolver a situação e que andar por aí a exigir demissões de ministros é coisa
“infantil”. As boas notícias são consequência do enorme mérito do governo. As
más notícias são azares da mãe natureza e do aquecimento global. Quem discordar
é uma criança. Constança Urbano de Sousa, antes de nos informar que não teve
férias, repetiu um par de vezes que estávamos perante “uma situação
absolutamente extraordinária”. A ministra passou o dia a fazer o playback de
Pedrógão Grande. Só que o disco está riscado. Se uma tragédia acontece duas
vezes em quatro meses ela não é absolutamente extraordinária. E não sendo – nem
sequer faltaram os carros calcinados em Oliveira do Hospital –, isso significa
que o Estado voltou a falhar na mais básica das tarefas: proteger a vida dos
seus cidadãos. António Costa fez tudo para que ninguém perdesse demasiado tempo
a ler o relatório de Pedrógão Grande. Não só fez declarações públicas sem o ter
lido na totalidade (foi o próprio quem o admitiu), como o timing da
sua divulgação (pós-eleições autárquicas, orçamento para 2018, acusação a José
Sócrates) teve como consequência um débil impacto público. Infelizmente para
ele, e para todos nós, a natureza trocou-lhe as voltas.
Por isso, é
fundamental lembrar que as conclusões do relatório não subscrevem a sua
narrativa favorita sobre os fogos. Sim, é verdade que muitos dos problemas são
estruturais e vão demorar anos a ser corrigidos. Mas é igualmente verdade que o
relatório aponta para falhas muito concretas na coordenação da Protecção Civil,
na não-antecipação da fase Charlie, no atraso na evacuação das aldeias, na
falta de informação das populações, na ignorância científica de quem combate o
fogo, nas nomeações de boys para a Protecção Civil. Nada disto tem a ver
com pinheiros e eucaliptos. Tudo isto tem a ver com responsabilidades políticas
– que Costa ignora olimpicamente, como se viu no seu discurso. “O mais fácil
para mim seria a demissão”, disse a ministra da Administração Interna. Por
favor, faça o mais fácil, e vá-se embora de vez.
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