Uma “História” saracoteada, a deste artigo de José Pacheco Pereira, trinta
items de abordagem exemplificativa da vaidade e pequenez humanas, que o
Tempo se encarregará de minimizar nos termos das contingências próprias de
todas as evoluções, até mesmo as do tempo sazonal apagador de fogos ou
aplainador de ventos e de inundações catastróficos. E o “Come chocolates, pequena suja”
repõe no nosso espírito a “Tabacaria” de Álvaro de Campos, na justificação de
todas as relatividades.
Todavia, apesar de tudo o que exemplificou com a sua ironia, Pacheco
Pereira ignorou a força avassaladora de um porvir chinês, ao que consta e já se
demonstra, na invasão e assentamento das lojas chinesas de fancaria a cada
esquina, uma China eficiente, profusa, blandiciosa, sorridente, disciplinada
mas distante, o vendedor da loja imóvel no seu lugar, ou falando ao telefone,
indiferente, seguro de que ali não será assaltado, o visor abrangendo os
espaços da sua loja arrumada e a abarrotar, cada comprador trazendo reverentemente
as compras ao seu balcão de que se pagará sem erros de multibanco ou de
dinheiro em caixa, mudo, sereno, desprezador, superior, dono do mundo, sem fazer
ondas.
É algo, isto da China avassaladora do mundo ocidental, que assenta como
pesadelo no meu pensamento adorador do rincão pátrio, onde tantos nomes vão
passando que o glorificaram ou não, e volto a ler o segundo texto – de João
Miguel Tavares – que repõe o meu sentimento de bem-estar, no retrato – com
direito a foto – de uma personalidade que nos transmite confiança ainda, no
bicho-homem: o de Pedro Passos Coelho, que, todavia, nunca foi do agrado
de José Pacheco Pereira, que tudo fez para o derrubar. Talvez por não
ser tão culto como ele, Pacheco Pereira, Homo Sapiens este, e Passos
Coelho apenas o Homo Faber prático, ou Homo apenas, nome de que
deriva a Hombridade, seu apanágio.
OPINIÃO
Por que é que a história é sempre surpresa
Daqui a 20
anos nada disto estará de pé, umas vezes para melhor, mas mais provavelmente
para pior.
14 de Outubro de 2017
Coloquem-se a 20 anos de
distância, por volta do início do século, um átomo no curso da história, e
vejam bem se era possível imaginar alguma destas coisas:
1. José Sócrates, antigo
primeiro-ministro português, está acusado de mais de 30 crimes. Mesmo que sejam
provados dez dos 30, irá passar muitos anos na cadeia. O que é que pensava a
Pátria dele? Elegeu-o para primeiro-ministro duas vezes e condecorou-o com a
Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique.
2. Ricardo Salgado,
anteriormente conhecido como o “dono disto tudo”, está acusado de mais de 20
crimes. Mesmo que só sejam provados dez dos 20, irá passar muitos anos na
cadeia. O que pensava a Pátria e o mundo dele? Tem um doutoramento honoris
causa e várias condecorações nacionais e estrangeiras, muita gente
tinha medo dele e ainda mais gente devia-lhe favores. Ele sabe disso.
3. Zeinal Bava, o gestor
modelo, premiado com todos os prémios, apontado como exemplo à juventude
tecnologicamente afoita, está acusado de cinco crimes. Mesmo que apenas metade
seja provada, poderá passar vários anos na cadeia. O que pensava a Pátria dele?
Tem um doutoramento honoris causa, e a Pátria condecorou-o com a
Grã-Cruz da Ordem do Mérito Empresarial.
4. Henrique Granadeiro,
considerado um dos grandes gestores portugueses e com uma longa carreira cívica
e política, está acusado de oito crimes. Mesmo que apenas metade seja dada como
provada, pode passar alguns anos na cadeia. O que pensava a Pátria dele?
Bebia-lhe os vinhos e condecorou-o com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo.
5. De Carlos Manuel
Santos Silva, a Pátria não pensava nada, porque não sabia quem era. Surpresa! O
homem ganhava milhões e era muito amigo de José Sócrates e nós não sabíamos.
6. Armando Vara não é
exemplo para aqui chamado, porque a Pátria pensava dele o mesmo que pensa
agora, mas não deixou entretanto de lhe atribuir a Grã-Cruz da Ordem do Infante
D. Henrique.
7. Portugal é governado
por um governo de maioria de esquerda. Não interessa muito a fórmula, mas é
uma variante de Frente Popular.
8.O PCP perdeu Almada.
9. Depois de Jerónimo de
Sousa ter estabilizado o partido pós-Cunhal e pós-URSS, o PCP conhece pela
primeira vez uma crise estrutural, de influência, votos, linguagem e
organização. A crise não resulta da “geringonça”, bem pelo contrário. A
“geringonça” adiou a crise.
10. O PSD tem menos votos
em Lisboa do que o CDS.
11. Os dois maiores
partidos, o PS e o PSD, são os mesmos. À sua frente estão (ou virão a estar)
pessoas que era previsível terem esse futuro político já em 2000. Mas esta
continuidade de forças e pessoas é mais surpreendente do que parece. Quer o que
muda, quer o que não muda pode ser surpresa.
12. Existe pela primeira
vez depois de 1974 uma direita extrema que não é uma extrema-direita. Os temas
não são os mesmos, a linguagem não é a mesma, é elitista e, felizmente, não
sabe ser populista. Pelo menos até agora. Recruta nos jovens educados, de boas
famílias e maus costumes sociais.
13. O Parlamento português
perdeu os seus poderes principais sem ninguém dar por ela, nem existir qualquer
arremedo de protesto.
14. Portugal não tem nem
política financeira própria, nem política de defesa, nem política externa. É um
protectorado da União Europeia, numa altura em que a União Europeia não sabe
como se proteger a si própria quanto mais os seus Estados vassalos.
15. No papel há CPLP, na
realidade não há.
16. Nos suplementos
culturais que ainda sobram nos jornais, há imensa cultura portuguesa. Na
realidade, não há quase nada, para não dizer que não há nada. Há uma ou outra
excepção nas artes de execução e performance, que dependem de
personalidades, mas a criação original escasseia, para não dizer que não
existe.
17. O português mais
conhecido no mundo continua a ser um jogador de futebol.
18. Há cada vez mais
portugueses a estudar mandarim e espanhol. Não há muitos a estudar alemão. A
Pátria continua a ter apenas um olho aberto.
19. Nos EUA, o Presidente
é Trump, uma personagem única. Podia encher-se esta página com qualificativos
pouco amáveis, mas, até por isso, é uma boa ilustração da história como
surpresa.
20. O mundo é hoje mais
perigoso do que era, não porque exista um agravamento objectivo das tensões
internacionais, muitas das quais já existiam há 20 anos. É muito mais perigoso
porque a qualidade dos que mandam baixou significativamente. Kim Jong-un não é
Kim Il-sung, nem muito menos Trump é George Bush, nem pai nem filho.
21. O Irão não é a Coreia
do Norte. A Coreia do Norte é simples, difícil de lidar, mas simples. O Irão
tem milhares de anos de civilização, é um país muito mais sofisticado do que se
pensa, tecnologicamente mais desenvolvido, e é uma potência regional e religiosa.
A Arábia Saudita sabe disso, Trump não.
22. A União Europeia não tem
nenhuma direcção política. Já não há eixo franco-alemão, o Reino Unido vai sair
e ninguém sabe muito bem como, e existe um caos miudinho um pouco por todo o
lado.
23. Putin sabe muito bem o
que quer. Isso faz uma diferença abissal de Trump, que quer apenas um espelho
que nunca lhe diga que há alguém melhor do que ele.
24. A faca e o automóvel
(ou o camião) são as armas preferidas do terrorismo apocalíptico.
25. O uso pelos russos da
manipulação da opinião através das redes sociais e da ciberguerra é um
desenvolvimento da velha técnica soviética da desinformatzia, e
nesse sentido não é nem novidade nem surpresa. O que é surpresa é a dimensão do
seu sucesso, como se viu nas últimas eleições nos EUA.
26. O principal
reservatório do populismo moderno nos países industrializados e democráticos
são as redes sociais.
27. O telefone inteligente
é o device com maior capacidade de mudança na sociabilidade
comum. Mudou quase tudo no espaço social das pessoas que têm dinheiro para os
comprar e usar. Há uns anos pensava-se que seriam os computadores, certos
aspectos da Internet, ou os robôs.
28. Há muito mais gente
convencida que tem poder, quando não o tem. Esta ilusão permite formas muito
eficazes de manipulação social, cultural e política.
29. Há muito mais gente
ignorante, convencida que não o é, porque sabe mexer numa pequena parte das
funcionalidades dos devices que usa. Aqueles que nem nessa
pequena parte sabem mexer embasbacam-se com a capacidade dos outros e
ajudam-nos a convencer que apenas “substituíram saberes”. Esta fractura tende a
ser geracional e solidifica o crescimento da ignorância. Esta ilusão permite
formas muito eficazes de manipulação social, cultural e política.
30. A História com H
grande acabou, a história sem H grande está, como desde que há homens, de boa
saúde e cheia de surpresas. Daqui a 20 anos nada disto estará de pé, umas vezes
para melhor, mas mais provavelmente para pior. Sempre foi assim. Aproveitem enquanto
dura.
OPINIÃO
2011-2015 ≠ 2005-2011
Passos Coelho fez três coisas extraordinárias como primeiro-ministro, que
basicamente consistiram em não fazer coisa alguma.
14 de
Outubro de 2017
Na passada segunda-feira,
Fernanda Câncio escreveu um texto intitulado “Obrigada, Pedro Passos Coelho” que me provocou curiosas sensações. O texto começava
assim: “Tenho lido nos últimos dias vários elogios a Passos Coelho. É normal.
Compreensível que os adeptos e amigos lamentem a sua saída da liderança do PSD
e mais compreensível ainda que queiram consolá-lo na derrota. Já mais difícil é
aceitar o conteúdo de tais odes.” E vai daí, sustentada na sua excelente
memória e na solidez da sua pesquisa, ela elencou uma longa série de erros
políticos, promessas incumpridas e falhas de carácter, deixando Passos Coelho
reduzido a pó. No último parágrafo, um lamento: “Lamento: não tenho prazer em
zurzir em quem está de saída, mas o que é demais é demais.”
Como eu concordo que o que é
demais é demais, fiquei a olhar para aquela longa lista de maldades e asneiras
passistas e não encontrei forma de negá-las: a maior parte delas era, de facto,
verdadeira. Passos fez tudo aquilo e cometeu todos aqueles erros. Como se
justifica, então, que eu seja um dos que gostaria de o consolar na hora da
derrota? Cheguei à conclusão que cada um de nós tende a valorizar em excesso as
qualidades das pessoas que nos agradam, e a desvalorizar em excesso as
qualidades das pessoas que nos desagradam. Desta vez, a Fernanda só viu os
defeitos. Defeitos justos, com certeza, mas que não pintam o quadro todo. Por
isso, faço hoje questão de sublinhar aqui as principais qualidades de Passos
Coelho, não só porque elas ajudam a compreender o presente, mas também porque
explicam as enormes diferenças em relação ao passado.
Passos Coelho fez três
coisas extraordinárias como primeiro-ministro, que basicamente consistiram em
não fazer coisa alguma. Foram três simples, mas magníficos, “nãos”. 1) Passos
Coelho não se intrometeu na comunicação social. 2) Passos Coelho não se
intrometeu na justiça. 3) Passos Coelho não ajudou Ricardo Salgado. Pode
parecer pouca coisa a Fernanda Câncio, mas é muitíssimo. Reparem: não há
aqui troika, nem liberalismo. Apenas respeito pela decência num
regime democrático. Nesse campo tão importante, Passos merece os mais rasgados
elogios, numa ruptura abençoada com o tenebroso arco 2005-2011.
Claro que esses “não” foram
um pouco mais complexos. Enquanto Miguel Relvas esteve no governo houve
intromissões na comunicação social. Mas Relvas caiu em virtude de uma falsa
licenciatura, assumida numa auditoria promovida por Nuno Crato — logo aqui há
um mundo de diferenças. E Miguel Poiares Maduro, que o substituiu, teve um
papel fundamental na transformação da RTP, resgatando-a das mãos do governo.
No campo da justiça, Passos
Coelho escolheu para procuradora-geral da República Joana Marques Vidal, que
merece a nossa eterna gratidão. Mais um “não” magnífico: ela não se intrometeu
nas investigações. Note-se que o Ministério Público não andou atrás de
socialistas — andou atrás de todos os que fossem justificadamente suspeitos.
Miguel Macedo demitiu-se por causa de um processo judicial e não se ouviu um
pio no PSD. Respeito total pela separação de poderes.
Finalmente, a queda de
Ricardo Salgado. Duvido muito que ele não fosse amparado pelo socialista de
plantão em São Bento. E isso jamais esquecerei. A longa lista de críticas que
Fernanda Câncio faz a Passos Coelho é justíssima. No entanto, ela comete o erro
de se focar excessivamente no acessório, ignorando tudo o que de mais
importante aconteceu à sua volta.
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