terça-feira, 24 de outubro de 2017

Cavalo morto


É inútil bater-lhe para o espicaçar ou fazer reviver.
Quem nasceu na aldeia e dela emigrou em busca de trabalho e futuro, não deixa de vir lá construir uma casa e um jardim, para a sua reforma ou para as suas férias, no apego ao seu passado, talvez, na ostentação da sua prosperidade também, perante aqueles que os viram nascer e que permaneceram na obscuridade do seu viver de sempre, cada vez mais desleixado no desbravar dos torrões, que um subsídio escasso mal compensa, mas que a inércia do envelhecimento e da solidão justifica. Atacam-se os governos e as suas políticas de desertificação dos espaços rurais, a que os caminhos de ferro emprestavam a sua utilidade e beleza, e as escolas animavam, desaparecidas estas a favor dos agrupamentos escolares distantes, que os autocarros agora interligam. Por vezes o café de alguma modernidade vem substituir a taberna menos requintada do espaço exclusivamente masculino anterior, mas a vila próxima concentra os vários serviços e os seus supermercados justificam a retirada da mercearia e do talho anteriores, dos espaços rurais, que as novas casas embelezam, mas, desertas dos donos, não contribuem para a rentabilidade dos empreendimentos comerciais nas aldeias, as estradas e os automóveis facilmente levando à vila concentracionária de serviços vários.
Não, não se trata de dormitórios, essas aldeias, como as terras que ladeiam as cidades, e onde são vários os espaços de reunião para o prazer da bica solitária ou acompanhada - embora escassos os que poderiam contribuir para uma maior amplitude cultural dos habitantes, (espaços em bibliotecas, por exemplo, onde o apelo à leitura fosse ponto de encontro e de debate de opiniões, favorecedores de um maior dinamismo cultural entre as nossas gentes a que o nosso racismo cultural, exigindo centros elitistas para as reuniões de cultura, pouco contribui para o alargamento cultural, numa democracia rebelde a horizontes outros que não sejam os do interesse próprio e da reivindicação pessoal).
O certo é que, como aponta Bagão Félix e os seus comentadores, cada vez mais as cidades concentram as populações, e de preferência as do litoral dos prazeres estivais, nelas centrados os serviços de maior envergadura, que as políticas mais protegem, os campos abandonados aos matos do seu isolamento e, afinal, da sua destruição. Um texto admirável de lucidez e indignação, este de Bagão Félix, como apontam os seus comentadores, acrescentando as achegas do seu próprio saber. Mas eu julgo que todos nós, que nos fixámos nas cidades, embarcados nos nossos gostos ou interesses, só nos lembramos de que as terras ardem, por altura dos fogos, tal como faz o Sr. Presidente que realça, sorrindo, para alguém queixoso, a importância do seu aparecimento e da sua figura solidária.

Público, 23 de Outubro de 2017
A aldeia desprezada até ao tutano
Perda de vidas e de haveres de trabalho árduo em vilas e aldeias de Portugal são a mais negra expressão de uma “modernidade” injusta, discriminatória e divisória. Nesta “modernidade” a cidade esmaga a aldeia, o interior esvazia-se e o litoral atafulha-se, o consumo desenfreado erradica a poupança geracional, a exaltação do novo definha o respeito pelo velho, a memória esvai-se na ditadura do presente e até o valor útil da vida se hierarquiza e a morte é desigual.
Um qualquer grupo pago pelo Estado (ou seja, nós) reclama, grita, faz greve, tem tempo mediático, para no fim, recolher os frutos. Os pobres, os velhos, as pessoas sós, os artesãos e pequenos agricultores sem férias, não têm esse poder da rua. Nem muito, nem pouco. A sua escassa apetência eleitoral (até as sondagens os ignoram) torna-os politicamente irrelevantes. Não têm voz ou a sua voz não chega ao poder. E as notícias dão mais importância a uma qualquer parvoíce urbana do que à genuinidade rural.
Tudo em nome de um utilitarismo pérfido e injusto e de um economismo desumanizado. A aldeia deixou de ter extensão de serviços essenciais públicos, posto de saúde, policial e dos correios, agência bancária, escola, estradas e transportes facilitadores, sinal televisivo e redes de telecomunicações estáveis. Como se podem fixar jovens onde os quase únicos empregos são os do poder local (partidários) e de IPSS? O que se espera quando se fecha uma escola porque não é “rentável” ou se atrasa uma minudente infraestrutura básica porque é muito custosa per capita? Agora tudo online, que importa se o aldeão não sabe trabalhar com as maquinetas? O mundo virtual de amanhã segregou o mundo real de ontem, o deles. Lá, já quase não se nasce, o lar de idosos cresce e o cemitério aumenta.
As leis da economia utilitarista têm prevalecido brutalmente sobre as leis da Natureza. O campo está submetido a uma indisfarçável cultura do descarte, da indiferença e da insensibilidade, apenas abanada por dramas como os que agora aconteceram, com compulsivos anúncios de medidas, às vezes, para mais tarde jazerem esquecidas. A aldeia é ofendida por quem governa na e para a cidade: “têm de ser mais proactivos”, “não me faça rir a esta hora”, “têm de ser resilientes” (esse anglicismo de cidade, parvo, distante e ora em moda, que, na aldeia, felizmente, não entendem). A aldeia é dizimada pela “via rápida” da política impositiva do actualismo, que despreza a política do tempo que está para além do tempo eleitoral ou da sondagem seguinte. Somos mais dotados em tecnologia, mas mais pobres em humanismo e em Natureza. Discutimos até à náusea 0,1% do PIB que não representa mais 1,4 euros por mês para cada habitante, ao mesmo tempo que, só neste século, 2.530.000 hectares foram destruídos, sem que o tal PIB tenha dado sinal de alarme. E porquê? Porque este indicador não considera a depreciação do “capital natural”. Se tal sucedesse, a destruição de floresta teria provocado diminuição sensível do PIB, tal qual uma família fica mais pobre depois da devastação da sua propriedade. E, aí, outro galo cantaria na política e nos políticos dos números e das estatísticas.
Bem resumiu o Presidente da República na sua notável, sábia e humanista intervenção: “olhar para os dramas de pessoas de carne e osso com a distância das teorias, dos sistemas ou das estruturas […] é passar ao lado do fundamental que é o que vai na alma dos portugueses”
Ou como escreveu Tolstoi: se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”. O problema é que há muita gente e políticos que não sabem o que é a aldeia, dizem que não têm orçamento para a tinta e a universalidade não passa dos seus liliputianos gabinetes.

Dois comentários
1º- Estamos governados por quem não se interessa. Por políticos de esplanada. Por um conjunto de oportunistas que chegaram ao poder por caminhos que os envergonham. Estão instalados em Lisboa e não tencionam ir onde os problemas existem. Sujar o fato com cinzas e velhos mal-cheirosos? Não, obrigado. Marcelo deu um exemplo magistral de humanidade ao ir falar com as pessoas. Não lhes foi resolver problema nenhum em concreto. Foi-lhes mostrar que o país está solidário com eles, ainda que o Governo não esteja. E conseguiu fazer a diferença na vida daquelas pessoas. Só falta Costa e os seus camaradas perceberem o que é que significa perder tudo o que se tem na vida.
2º - Mais um interessante e oportuno texto do caro Félix. “em nome de um utilitarismo pérfido e injusto e de um economismo desumanizado” as pessoas do interior são desprezadas e empurradas de lá para fora… e depois vêm os mesmos “utilitarismo e economismo” hipócritas com dispendiosos programas propagandeados para levar pessoas a fixarem-se no interior. Faz-me lembrar a hipocrisia malabarista da produção de sumo de fruta seguida da venda da fibra porque afinal faz falta, ou da venda de pinho sangrado seguida da venda do verniz senão a madeira estraga-se. Ainda hoje no radio um autarca de Oliveira do Hospital falava nisso, exemplificou com uma escola que foi fechada por ter só dezasseis alunos… e que só num ano houve meia dúzia de pais que mudaram de habitação para seguirem os filhos na cidade… e pergunta se só uma descarga de um avião não pagaria um ano do professor nessa aldeia.

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