domingo, 22 de outubro de 2017

Chinesices


Provavelmente como qualquer outro cidadão do meu país, sobre a era de progresso turístico que aí vinha, já me tinha perguntado se sempre veio, apesar dos fogos e das mortes, pois não mais se ouvira falar disso, centrados que estávamos a ver o fogo e os abraços e os discursos do Presidente televisionados, de apoio à dor, demarcado dos outros governantes, na sua indignação de afectos e egocentrismo, ou, provavelmente no seu íntimo desejo de mudança, de um governo de falsos remendos cosidos com alinhavos. Sentia engulhos de vergonha, nesse anseio miserabilista de que se mantivessem os propósitos dos turistas de virem viver para o país onde melhor se vivia, boa gente que somos, e sem terrorismo daquele de que se falara, mas se deixou de falar momentaneamente, na abjecção dos nossos novos incêndios devastadores. Se os turistas se retirassem, mal estaríamos, apesar de António Costa continuar a dançar na corda bamba do seu equilibrismo de fachada e de promessas a cumprir. Malditos incêndios que vieram lançar por terra as expectativas turísticas, fortalecedoras da nossa economia, no país que alguém reconhecera livre da situação de lixo em que vivera.
António Barreto, como sempre, descreve com beleza frásica e clareza de argumento, tais estados de alma, tais sucessos gloriosos, para logo deslizar pelo matagal das várias posturas e demarcações dos companheiros de jornada, nos cinismos das suas jogadas, ou no novo atamancar de mais remendos governativos convincentes, calças de ganga abrindo-se em rasgões a revelar peles de hipotéticos êxtases libidinosos.
E termina com a foto da perfeição, da beleza e bem-estar num país de ameaça, que vai galgando a conquistar. Que têm os incêndios do nosso raquitismo a ver com isso? O verdadeiro incêndio está para vir, na perfeição da sua frieza, que se vai instalando, avassalando os espaços com sabedoria e mansidão… chineses…

E lucevan le stelle...
António Barreto
DN, 22/10/17
No céu brilhavam as estrelas! Os portugueses distinguiam-se em várias modalidades desportivas. Os cruzeiros internacionais chegavam cada vez mais ao porto de Lisboa. Aumentava o número de estrangeiros que desejavam viver em Portugal. Abriam hotéis todos os dias. A temporada turística era maior do que a estação de Verão.
Estava tudo a correr tão bem! As agências internacionais tinham-se finalmente rendido à justeza da política do governo. A economia crescia. O desemprego baixava. A exportação aumentava. Os investimentos estrangeiros batiam à porta. O Novo Banco estava vendido. O Orçamento negociado: o Bloco gabava-se de tudo o que era bom, mesmo do que não era obra sua. O PCP exigia tudo o que já obtivera. O governo tinha folga para dar ao Bloco e ao PCP o que queriam.
Apesar de a CGTP resmungar e a Fenprof vociferar, reinava a paz social. Magistrados e enfermeiros juntavam-se aos sectores laborais em luta, mas sem ameaça. O Bloco e o PCP defendiam a solução de governo. O PSD entrava em crise de liderança e, com eleições dentro de alguns meses, deixava o governo em paz. O julgamento de Sócrates anunciava-se para mais tarde e cada vez desaparecia mais a ligação daquele malfadado governo ao Partido Socialista e aos actuais governantes. As ligações perigosas reveladas pelo processo Sócrates podiam esperar. Os fantasmas de Lula, Chávez e Maduro deixavam de ameaçar. O julgamento de Ricardo Salgado parecia estar cada vez mais longe, dissolvendo-se no tempo as interacções daquele grupo com os governos, especialmente os socialistas. Pensava-se que era fácil arranjar uma explicação para o insólito desaparecimento de Tancos e a extravagante aparição da Chamusca. Manhãs gloriosas e noites tranquilas! Não é possível pedir mais! Brilhavam as estrelas! E muitos nunca se tinham sentido tão felizes!
Eis senão quando...  Parece uma tempestade perfeita! Tudo ruiu, a confiança e a esperança. A epifania terminou bruscamente. Ao revelarem a incompetência das instituições, a impreparação dos serviços e talvez o clientelismo da Protecção Civil, os fogos de Verão destruíram a confiança reinante. Os relatórios de Pedrógão deixaram a Administração de rastos. A segunda vaga de incêndios gerou perplexidade e insegurança. Mais de uma centena de mortes mostraram a vulnerabilidade de um país, a fragilidade de um povo e a incompetência de um Estado.
Os co-responsáveis por este governo, Bloco e PCP, depressa declararam que nada tinham que ver com a Protecção Civil e que os verdadeiros culpados eram os governos de direita. Depois de perderem as eleições autárquicas, os comunistas decidiram atacar. O Bloco também e entendeu chegado o momento de rever a sua posição e pensar no futuro.
Hábil e habilidoso, como é reputado, o primeiro-ministro preparou-se para gerir a crise, como hoje se diz: arrumar as crises parciais, dissolver as mais graves, puxar pelas coisas boas, dilatar no tempo as más, adiar problemas, prometer subsídios e anunciar medidas e dinheiro. Mas essa é a gestão de crise dos burocratas e dos políticos de laboratório. Está tudo certo, menos o imprevisto, o vital, o sofrimento, a confiança... E faltam sinceridade e prontidão. E, algures, uma réstia de humanidade.
A verdade é que quase não há quem pense a floresta, raros consideram as árvores, poucos estudam os incêndios. O governo preocupa-se com o Orçamento, os seus aliados e as notícias nos jornais. António Costa pensa em Lisboa e Bruxelas. Os socialistas são urbanos e interessam-se pelo governo. Os comunistas são urbanos e alentejanos. O Bloco é urbano e litoral. O PSD está desgarrado. O CDS não tem força. A direita sonha com negócios, os socialistas com startups e os comunistas com nacionalizações. O governo tem mais que fazer. Os autarcas desesperam e garantem que não têm poder nem meios, mas raros se fizeram ouvir durante o ano. Parece que só o Presidente Marcelo fez o que tinha a fazer e fez tudo o que podia. O Presidente e os bombeiros.

As minhas fotografias
ANTÓNIO BARRETO
Família chinesa diante da Cidade Proibida, com soldados, turistas e Mao

Tudo o que ali está parece harmonioso! A pacificada Tiananmen, uma das maiores praças do mundo, repleta de turistas nacionais e estrangeiros, três gerações de uma família feliz com a sua sorte, soldados rígidos e hieráticos e o retrato kitsch de um dos maiores ditadores da história contemporânea. Nesta semana de Outubro, o congresso do Partido Comunista Chinês, o maior do mundo, confirmou o seu chefe, Xi, elegeu a sua direcção, estabeleceu que as políticas de Xi passassem a ser "o pensamento do presidente Xi", autoproclamou-se a maior economia do mundo, garantiu que a China seria democrática, poderosa, culta, desenvolvida e bela em 2050. Mais, revelou estar a construir a maior frota marítima do mundo, as maiores centrais nucleares do mundo e o maior exército do mundo. Apesar de ser também o país mais poluidor do mundo, decidiu manter-se no Acordo de Paris e criticou o governo americano por ter saído. 

Nenhum comentário: