domingo, 15 de outubro de 2017

“Vistes, acaso, aquele a que a minha alma ama?»


Verso de A ESPOSA do CÂNTICO DOS CÂNTICOS, mas poderia aplicar-se ao CASO DOS CASOS, e tinha que ser no nosso pequeno país, de um fado como cântico vibrante de paixões fortes. José Manuel Fernandes, Rui Ramos e Alberto Gonçalves exploram o assunto, em acumulação de achegas esclarecedoras, tantas vezes anteriormente focadas, sobre as andanças socráticas e outras a elas circunscritas, desejosos aqueles justos de prosseguimento e ressarcimento, embora Alberto Gonçalves, na sua aversão contra uma sociedade débil, prima antes o gatilho contra os tais que preferem defendê-lo – Constança Cunha e Sá – ou que debandam, receosos de que o céu lhes caia em cima, por participação na vinha tenebrosa.
Não sei se a seriedade de alguns conseguirá inverter uma situação de corrupção há muito evidenciada, destruidora dos alicerces de honorabilidade em que deveria assentar um país digno de o ser.  Mas a visibilidade que rodeia ainda o ex-ministro Sócrates, chamando-o à liça para as suas justificações televisivas, mostra que tudo não passará de farsa, uma vez mais. Para protelar, para resguardar, não uma, mas muitas cabeças dos que habitualmente se esgueiram pela porta dos fundos. “Porque os teus amores são mais deliciosos que o vinho” (Cântico dos Cânticos de Salomão, I, 2).
A montanha não pariu um rato
José Manuel Fernandes       OBSERVADOR, 11/10/2017
O que o despacho de acusação nos mostra é que este não é um mero caso de Justiça, é muito mais do que isso. Mostra até onde chegou a concentração de poder e a sofreguidão do duopólio Sócrates-Salgado.
São quatro mil páginas que ainda exigem tempo para ser digeridas. Mas tudo o que delas já resulta não deixa lugar a muitas dúvidas: a investigação do Ministério Público demorou muitos meses, mas produziu acusações pesadas e sólidas.
Desde o dia em que José Sócrates foi detido no aeroporto de Lisboa sabíamos que não seria fácil. O que logo nessa altura se percebeu sobre a complexidade da teia em que se apoiava e os mecanismos usados para disfarçar a forma como lhe chegava o dinheiro era suficiente para perceber que os investigadores teriam um trabalho árduo e que, se era fácil demonstrar que o antigo primeiro-ministro tinha um modo de vida de todo incompatível com o que declarava serem os seus rendimentos, ou os seus “empréstimos”, seria muito mais difícil provar a relação entre esse dinheiro e decisões que tivesse tomado enquanto primeiro-ministro.
Quase três anos depois, muitas contas bancárias passadas a pente fino e uma investigação que se alargou a outros centros de poder – em especial o que tinha à frente o antigo “dono disto tudo”, Ricardo Salgado –, temos hoje um despacho de acusação com pés e cabeça. Vai ser possível provar tudo em tribunal? Veremos, conhecendo como conhecemos a dificuldade de o fazer no nosso país (e antecedentes históricos como os casos Isaltino e BPN). Mas há que reconhecer que o Ministério Público foi muito mais longe do que alguma vez fora no passado.
Será, no entanto, um erro reduzir este caso à sua componente jurídica e à troca de argumentos entre advogados e juristas. O que este despacho de acusação nos revela – no fundo, o que esta investigação trouxe à luz do dia – foram os detalhes de como o concubinato entre o poder político e o poder económico criou o caldo de cultura ideal para projectos de poder que não olham a meios nem têm limites éticos.
Nos anos em que José Sócrates foi primeiro-ministro assistiu-se em Portugal a um esforço de concentração de poder sem paralelo na nossa história democrática. O primeiro-ministro não tolerava quem lhe fizesse frente, fosse no partido, fosse no Governo, fosse na comunicação social, fosse até na economia.
A memória dos povos tende a ser curta, a minha não. Recordo-me bem daquele que foi, porventura, o primeiro sinal de que Sócrates atropelaria quem fosse preciso atropelar para alcançar os seus objectivos: a nomeação de Armando Vara para a administração da Caixa Geral de Depósitos, uma nomeação que foi o pretexto próximo para a demissão do seu primeiro ministro das Finanças, Campos e Cunha. Colocou na CGD um amigo e cúmplice, Armando Vara – e hoje começamos a conhecer, graças a este processo, até onde ia essa cumplicidade –, e ao mesmo tempo via-se livre de uma voz incómoda no Conselho de Ministros.
Também me recordo bem como foi controlando ou desvitalizando os organismos independentes, do regulador da comunicação social ao da energia; como meteu no bolso – não consigo encontrar termo melhor – o presidente do Supremo Tribunal de Justiça e o procurador-geral da República, que lhe prestariam inestimáveis serviços noutros casos em que esteve envolvido (lembram-se da destruição das escutas?); como tratava a comunicação social, chegando a conseguir que a notícia sobre a sua licenciatura, dada inicialmente pelo Público que eu então dirigia, fosse silenciada durante uma semana; como intimidava os que discordavam dele dentro do PS, uma história ainda por contar; ou ainda como comandava ferreamente, a partir do seu gabinete, toda a comunicação do executivo.
Mais importante e mais relevante, não posso esquecer a forma como os seus trataram de tomar conta do sistema bancário, com o assalto do BCP, para onde passou o sempre inestimável Armando Vara; e como depois disso usou esse poder para tentar fechar um dos poucos órgãos de informação que então o incomodavam, o Sol; como procurou instrumentalizar a PT para que esta comprasse a TVI e calasse uma jornalista desalinhada; como usava as “golden shares”, nessa PT ou na EDP, para prosseguir os seus projectos mitómanos; e por aí adiante.
Neste percurso deu-se um cruzamento improvável de interesses: os de um primeiro-ministro todo-poderoso com o chefe de uma família de banqueiros habituada, porventura como nenhuma outra família em Portugal, ao concubinato com o poder. O que resultou desse cruzamento de interesses resultou num desastre para Portugal – a queda do Grupo Espírito Santo quando desapareceu o amparo dos contribuintes e a virtual destruição de um grupo como a PT, engolida por um negócio ruinoso no Brasil que fora imposto pelo próprio José Sócrates.
Esta espécie de “duovirato” durou vários anos, envenenou a política portuguesa, contaminou o sistema económico e contribuiu para uma claustrofobia que poucos tiveram a frontalidade de denunciar. Só a crise acabaria por separar o “animal feroz” do “dono disto tudo”, mas nessa altura a dimensão dos problemas já escapara ao controlo e à capacidade de ambos.
Agora que conhecemos o “saco azul” por onde passaram muitos dos milhões que olearam estas relações, os seus negócios e os seus interesses, é importante ter bem presente que, antes de o dinheiro circular, havia quem prosseguisse uma concentração de poder que não era boa para o nosso sistema democrático e que era péssima para o nosso tecido económico. E quem pudesse levar vida de rico sem ter rendimentos legítimos para isso.
Estou convicto que aquilo que já sabemos, tal como aquilo que o Ministério Público já pode mostrar para sustentar a acusação, é apenas uma parte, porventura uma pequena parte, dos abusos que foram cometidos na busca de mais e mais poder – ou de mais e mais dinheiro. Sinceramente gostaria de não me enganar quando penso que a procissão ainda vai no adro. Isto é, que os muitos segredos que esta teia ainda tem por revelar não ficarão esquecidos e serão um dia revelados.
De resto, este foi um bom dia para a nossa democracia. Não por essa democracia ter tido um primeiro-ministro que caiu desgraçadamente nas malhas da Justiça – mas por a Justiça ter feito o seu trabalho, sem se intimidar e sem esmorecer. Que assim possa continuar a acontecer.
II - Sócrates só pode ser julgado pela história?
Rui Ramos         OBSERVADOR, 13/10/2017
Tivemos um primeiro ministro cujas despesas pessoais eram pagas secretamente por um dos empresários com mais contratos com o Estado. Quando é que os políticos nos vão dizer o que pensam disto?
Perante a acusação contra José Sócrates e Ricardo Salgado, a nossa oligarquia fecha-se em copas: temos de esperar pelo fim do julgamento. Na quarta-feira, alguém fez contas: o julgamento nunca começaria antes de 2019, não acabaria antes de 2025 e, com os recursos, o caso só transitaria em julgado aí por 2030. Não sei se será assim, mas há precedentes para tais vagares. Ora, se aplicarmos a regra, muito querida da oligarquia, de que não podemos pedir a um político uma palavra ou uma linha sobre o assunto enquanto o caso estiver a ser tratado “no lugar próprio”, isto significaria que o regime, confrontado com o maior escândalo da sua história, poderia fingir que nada aconteceu até pelo menos 2030. Como será o mundo daqui a treze anos? Vamos entender-nos: a coberto do processo judicial e da invocação perversa e imprópria de princípios constitucionais como a separação de poderes e de figuras jurídicas como a presunção de inocência, há quem espere reduzir a mais grave indignidade deste regime a uma questão de interesse meramente histórico.
Temos mesmo de esperar pela sentença? Não, por três razões. Primeiro, porque o princípio da separação, que salvaguarda a autonomia de cada poder do Estado, e a presunção de inocência, que garante os direitos do cidadão perante o Estado, não existem para condicionar a liberdade de expressão e impedir o debate público, fundado na opinião legitimamente formada pelos cidadãos a partir da informação disponível.
Segundo, porque aquilo que já foi admitido por José Sócrates em público é mais do que suficiente para uma crise de regime: Portugal teve um primeiro ministro cujas despesas pessoais eram secretamente pagas pelo administrador de uma das empresas que mais contratos obteve do Estado durante o seu governo. No mundo, tem havido grandes escândalos por muito menos. É preciso aguardar por 2030 para os nossos políticos terem opinião sobre isto?
Terceiro, porque este não é só um caso de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais. É um caso, segundo a acusação, de uma conspiração entre um primeiro-ministro e o presidente de um dos maiores bancos para controlarem o Estado, a economia e a comunicação social em Portugal. Sobre a corrupção, a fraude fiscal e o branqueamento de capitais julgará, em relação a cada um dos acusados, o tribunal. Mas sobre o suposto projecto de domínio político-financeiro e a aparente dificuldade das instituições para o prevenir, quem deve falar desde já, no que diz respeito ao regime, senão os políticos?
A razão da nossa oligarquia para se calar é óbvia. Há demasiada gente na política e nos seus arredores que fez carreira com um líder agora acusado de 31 crimes. Mas bastar-lhes-á aguardar pela sentença “com tranquilidade”? Não é legítimo pedir-lhes uma explicação? Por exemplo, nunca tiveram uma dúvida, quando sabemos que sempre houve suspeitas? A propósito dos abusos sexuais do produtor Harvey Weinstein, discute-se agora na América a “cultura de cumplicidade” que o teria protegido durante anos. Não deveríamos nós estar a discutir a “cultura de cumplicidade” que parece haver à volta da corrupção e do abuso do poder na democracia portuguesa? Uma cultura feita de indiferença ética, de comunhão na ganância e de um sentimento de impunidade alimentado, de alto a baixo, pela promiscuidade no Estado, pela dificuldade de provar estes crimes e por votações como as de Oeiras.
A justiça dirá se alguém merece multas e prisões; a política deveria dizer outra coisa: se alguém ainda merece a nossa confiança. Não podemos esperar por 2030. A História os julgará? Mas essa é a prerrogativa dos ditadores, como o general Franco, que, enquanto caudilho de Espanha, “só respondia perante Deus e a História”. É assim que os nossos oligarcas também já pensam: que só a História os poderá julgar?
III - Sócrates & Companhia Ilimitada
Alberto Gonçalves           OBSERVADOR, 14/10/2017
Na quinta-feira à noite, a sra. dona Constança Cunha e Sá explicou na TVI o principal motivo pelo qual a acusação de José Sócrates não vale a atenção de pessoas ilustres: não trouxe, cito, “surpresas”. Pelos vistos, trinta e um crimes não bastaram à referida jornalista, que aparentemente gostaria que o antigo primeiro-ministro fosse acusado de coisas inusitadas como o abuso de pinguins ou o roubo de tubos de escape. Na verdade, a sra. dona Constança Cunha e Sá gostaria que José Sócrates não fosse acusado de todo.
Tratou-se de um raro e bonito momento de solidariedade para com o menino que sonhava com ventoinhas e apartamentos em Paris. Em tempos, faltava pouco para que o fervor dos devotos por José Sócrates suscitasse imolações pelo fogo. Hoje, os devotos assobiam para o lado e, à cautela, preferem que o indivíduo se imole sozinho. Nem a lepra assustava assim. Uma rápida consulta às capelinhas virtuais da seita apenas encontra silêncio e distracções. Enquanto os “media”, com discrição e fastio, davam as novas da “Operação Marquês”, no blogue do peru emproado que enfiou o “engenheiro” na Sorbonne discorria-se em volta de “Che” Guevara: em Outubro de 2017, até a associação a um psicopata parece comprometer menos do que a intimidade com o “autor” de “A Confiança no Mundo”. E este é um mero exemplo. Por regra, e à semelhança dos milhões movimentados nas negociatas, os amigos de José Sócrates sumiram sem rasto nem vergonha.
O facto é tanto mais notável quanto os amigos de José Sócrates eram imensos. Alguns, fiéis à força, continuam a fazer-lhe companhia nas quatro mil páginas do processo. A maioria passeia-se sorridente. Sorridente e amnésica. Se o pacote de acusados constitui uma amostra razoável da oligarquia que regularmente enxovalha o país, convém notar que, por definição, as amostras deixam o resto de fora.
E o resto é demasiada gente. A gente dos “media”, nulidades amestradas que José Sócrates inventou ou desenterrou para o servir. A gente do comentário “isento”, sob nome próprio ou pseudónimo, cujas avenças cresciam de modo directamente proporcional à beatificação do amo e senhor. A gente dos negócios que prosperava à sombra da criatura e retribuía a prosperidade com juros. A gente da “justiça”, indivíduos com pilosidade auricular que garantiam a impunidade do benemérito que lhes arranjou emprego. A gente das “relações pessoais”, um folclórico grupo de familiares, namoradas e espontâneos que cirandava em redor de dinheiro facílimo. Sobretudo a gente da política, que subiu com José Sócrates, conspirou com ele e zelosamente lhe amparava os delírios.
É possível que essa gente não tenha sabido de nada, dado por nada, reparado em nada, desconfiado de nada, participado em nada. É possível que essa gente constitua o maior aglomerado nacional de débeis mentais desde a inauguração de Rilhafoles. É possível, e nesse caso seria um acto de mera comiseração e humanidade remover essa gente do convívio com os demais, a bem de uns e dos outros. É possível, e não se deve ficar tranquilo quando, ao inventariar a tralha “socrática” que continua a infestar lugares de decisão ou influência, imaginarmos que Portugal pode ser pasto de idiotas terminais. Ou então não é possível, e a intranquilidade aumenta.
Se calhar, não é realmente possível que essa gente não tenha experimentado o vestígio de uma suspeita, ou estranhado a folia, ou mesmo colaborado nela. E se calhar não é possível não saber que, além de obviamente ilegal, a folia acontecia à custa dos cidadãos “comuns” que essa gente finge defender em cada uma das suas descaradas intervenções. Em qualquer das hipóteses, essa gente não merece andar por aí em paz, ou porque é clinicamente incapaz disso, ou porque é moralmente indigna.

E, no entanto, é preciso repetir: essa gente anda em paz. Para cúmulo, também manda em paz, e com o exacto tipo de descontracção e alcance que José Sócrates tentou sem conseguir. Por morrer uma andorinha, ou ser julgada uma quadrilha, não acaba o regabofe. A acusação do “animal feroz” e fauna restante, do honradíssimo sr. Salgado aos portentosos gestores Bava e Granadeiro, é, para as suas inúmeras vítimas, um instante de alívio “formal”. Mas, em última instância, é só uma pedrita leve no charco de compadrios que aqui passa por regime. Salvo fogachos, na sua repulsiva natureza o regime está bem e muitos – agora incluindo certamente o próximo líder do PSD – recomendam-no. E os apreciadores farão, como costumam fazer, bom proveito.

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