Verso de A ESPOSA do CÂNTICO
DOS CÂNTICOS, mas poderia aplicar-se ao CASO DOS CASOS, e
tinha que ser no nosso pequeno país, de um fado como cântico vibrante
de paixões fortes. José Manuel Fernandes, Rui Ramos e Alberto Gonçalves exploram
o assunto, em acumulação de achegas esclarecedoras, tantas vezes anteriormente
focadas, sobre as andanças socráticas e outras a elas circunscritas, desejosos aqueles
justos de prosseguimento e ressarcimento, embora Alberto Gonçalves, na
sua aversão contra uma sociedade débil, prima antes o gatilho contra os tais
que preferem defendê-lo – Constança Cunha e Sá – ou que debandam,
receosos de que o céu lhes caia em cima, por participação na vinha tenebrosa.
Não sei se a seriedade de
alguns conseguirá inverter uma situação de corrupção há muito evidenciada,
destruidora dos alicerces de honorabilidade em que deveria assentar um país
digno de o ser. Mas a visibilidade que rodeia
ainda o ex-ministro Sócrates, chamando-o à liça para as suas justificações
televisivas, mostra que tudo não passará de farsa, uma vez mais. Para protelar,
para resguardar, não uma, mas muitas cabeças dos que habitualmente se esgueiram
pela porta dos fundos. “Porque os teus amores são mais deliciosos que o
vinho” (Cântico dos Cânticos de Salomão, I, 2).
A montanha não pariu um rato
José Manuel
Fernandes OBSERVADOR,
11/10/2017
O que o despacho de acusação
nos mostra é que este não é um mero caso de Justiça, é muito mais do que isso. Mostra
até onde chegou a concentração de poder e a sofreguidão do duopólio
Sócrates-Salgado.
São quatro mil
páginas que ainda exigem tempo para ser digeridas. Mas tudo o
que delas já resulta não deixa lugar a muitas dúvidas: a investigação do
Ministério Público demorou muitos meses, mas produziu acusações pesadas e
sólidas.
Desde o dia em que José
Sócrates foi detido no aeroporto de Lisboa sabíamos que não seria fácil. O que
logo nessa altura se percebeu sobre a complexidade da teia em que se apoiava e
os mecanismos usados para disfarçar a forma como lhe chegava o dinheiro era
suficiente para perceber que os investigadores teriam um trabalho árduo e que,
se era fácil demonstrar que o antigo primeiro-ministro tinha um modo de vida de
todo incompatível com o que declarava serem os seus rendimentos, ou os seus
“empréstimos”, seria muito mais difícil provar a relação entre esse dinheiro e
decisões que tivesse tomado enquanto primeiro-ministro.
Quase três anos depois,
muitas contas bancárias passadas a pente fino e uma investigação que se alargou
a outros centros de poder – em especial o que tinha à frente o antigo “dono
disto tudo”, Ricardo Salgado –, temos hoje um despacho de acusação com pés e
cabeça. Vai ser possível provar tudo em tribunal? Veremos, conhecendo como
conhecemos a dificuldade de o fazer no nosso país (e antecedentes históricos
como os casos Isaltino e BPN). Mas há que reconhecer que o Ministério Público
foi muito mais longe do que alguma vez fora no passado.
Será, no entanto, um erro
reduzir este caso à sua componente jurídica e à troca de argumentos entre advogados
e juristas. O que este despacho de acusação nos revela – no fundo, o que esta
investigação trouxe à luz do dia – foram os detalhes de como o concubinato
entre o poder político e o poder económico criou o caldo de cultura ideal para
projectos de poder que não olham a meios nem têm limites éticos.
Nos anos em que José
Sócrates foi primeiro-ministro assistiu-se em Portugal a um esforço de
concentração de poder sem paralelo na nossa história democrática. O
primeiro-ministro não tolerava quem lhe fizesse frente, fosse no partido, fosse
no Governo, fosse na comunicação social, fosse até na economia.
A memória dos povos tende a
ser curta, a minha não. Recordo-me bem daquele que foi, porventura, o primeiro
sinal de que Sócrates atropelaria quem fosse preciso atropelar para alcançar os
seus objectivos: a nomeação de Armando Vara para a administração da Caixa Geral
de Depósitos, uma nomeação que foi o pretexto próximo para a demissão do seu
primeiro ministro das Finanças, Campos e Cunha. Colocou na CGD um amigo
e cúmplice, Armando Vara – e hoje começamos a conhecer, graças a este processo,
até onde ia essa cumplicidade –, e ao mesmo tempo via-se livre de uma voz
incómoda no Conselho de Ministros.
Também me recordo bem como
foi controlando ou desvitalizando os organismos independentes, do regulador da
comunicação social ao da energia; como meteu no bolso – não consigo encontrar
termo melhor – o presidente do Supremo Tribunal de Justiça e o procurador-geral
da República, que lhe prestariam inestimáveis serviços noutros casos em que
esteve envolvido (lembram-se da destruição das escutas?); como tratava a
comunicação social, chegando a conseguir que a notícia sobre a sua
licenciatura, dada inicialmente pelo Público que eu então dirigia, fosse
silenciada durante uma semana; como intimidava os que discordavam dele dentro
do PS, uma história ainda por contar; ou ainda como comandava ferreamente, a
partir do seu gabinete, toda a comunicação do executivo.
Mais importante e mais
relevante, não posso esquecer a forma como os seus trataram de tomar conta do
sistema bancário, com o assalto do BCP, para onde passou o sempre inestimável
Armando Vara; e como depois disso usou esse poder para tentar fechar um dos
poucos órgãos de informação que então o incomodavam, o Sol; como procurou
instrumentalizar a PT para que esta comprasse a TVI e calasse uma jornalista
desalinhada; como usava as “golden shares”, nessa PT ou na EDP, para prosseguir
os seus projectos mitómanos; e por aí adiante.
Neste percurso deu-se um
cruzamento improvável de interesses: os de um primeiro-ministro
todo-poderoso com o chefe de uma família de banqueiros habituada, porventura
como nenhuma outra família em Portugal, ao concubinato com o poder. O que
resultou desse cruzamento de interesses resultou num desastre para Portugal – a
queda do Grupo Espírito Santo quando desapareceu o amparo dos contribuintes e a
virtual destruição de um grupo como a PT, engolida por um negócio ruinoso no
Brasil que fora imposto pelo próprio José Sócrates.
Esta espécie de “duovirato”
durou vários anos, envenenou a política portuguesa, contaminou o sistema
económico e contribuiu para uma claustrofobia que poucos tiveram a frontalidade
de denunciar. Só a crise acabaria por separar o “animal feroz” do “dono disto
tudo”, mas nessa altura a dimensão dos problemas já escapara ao controlo e à
capacidade de ambos.
Agora que conhecemos o
“saco azul” por onde passaram muitos dos milhões que olearam estas relações, os
seus negócios e os seus interesses, é importante ter bem presente que, antes de
o dinheiro circular, havia quem prosseguisse uma concentração de poder que não
era boa para o nosso sistema democrático e que era péssima para o nosso tecido
económico. E quem pudesse levar vida de rico sem ter rendimentos legítimos para
isso.
Estou convicto que aquilo que
já sabemos, tal como aquilo que o Ministério Público já pode mostrar para
sustentar a acusação, é apenas uma parte, porventura uma pequena parte, dos
abusos que foram cometidos na busca de mais e mais poder – ou de mais e mais
dinheiro. Sinceramente gostaria de não me enganar quando penso que a
procissão ainda vai no adro. Isto é, que os muitos segredos que esta teia ainda
tem por revelar não ficarão esquecidos e serão um dia revelados.
De resto, este foi um bom
dia para a nossa democracia. Não por essa democracia ter tido um
primeiro-ministro que caiu desgraçadamente nas malhas da Justiça – mas por a
Justiça ter feito o seu trabalho, sem se intimidar e sem esmorecer. Que assim
possa continuar a acontecer.
II - Sócrates só pode ser
julgado pela história?
Rui Ramos OBSERVADOR, 13/10/2017
Tivemos um primeiro
ministro cujas despesas pessoais eram pagas secretamente por um dos empresários
com mais contratos com o Estado. Quando é que os políticos nos vão dizer
o que pensam disto?
Perante a acusação contra
José Sócrates e Ricardo Salgado, a nossa oligarquia fecha-se em copas: temos
de esperar pelo fim do julgamento. Na quarta-feira, alguém fez contas: o
julgamento nunca começaria antes de 2019, não acabaria antes de 2025 e,
com os recursos, o caso só transitaria em julgado aí por 2030. Não sei
se será assim, mas há precedentes para tais vagares. Ora, se aplicarmos
a regra, muito querida da oligarquia, de que não podemos pedir a um político
uma palavra ou uma linha sobre o assunto enquanto o caso estiver a ser tratado
“no lugar próprio”, isto significaria que o regime, confrontado com o maior
escândalo da sua história, poderia fingir que nada aconteceu até pelo menos
2030. Como será o mundo daqui a treze anos? Vamos entender-nos: a
coberto do processo judicial e da invocação perversa e imprópria de princípios
constitucionais como a separação de poderes e de figuras jurídicas como a
presunção de inocência, há quem espere reduzir a mais grave indignidade deste
regime a uma questão de interesse meramente histórico.
Temos mesmo de esperar pela
sentença? Não, por três razões. Primeiro, porque o princípio da
separação, que salvaguarda a autonomia de cada poder do Estado, e a
presunção de inocência, que garante os direitos do cidadão perante o Estado,
não existem para condicionar a liberdade de expressão e impedir o debate
público, fundado na opinião legitimamente formada pelos cidadãos a partir da
informação disponível.
Segundo, porque
aquilo que já foi admitido por José Sócrates em público é mais do que
suficiente para uma crise de regime: Portugal teve um primeiro ministro
cujas despesas pessoais eram secretamente pagas pelo administrador de uma das
empresas que mais contratos obteve do Estado durante o seu governo. No mundo,
tem havido grandes escândalos por muito menos. É preciso aguardar por 2030 para
os nossos políticos terem opinião sobre isto?
Terceiro, porque
este não é só um caso de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais.
É um caso, segundo a acusação, de uma conspiração entre um primeiro-ministro e
o presidente de um dos maiores bancos para controlarem o Estado, a economia e a
comunicação social em Portugal. Sobre a corrupção, a fraude
fiscal e o branqueamento de capitais julgará, em relação a cada um dos
acusados, o tribunal. Mas sobre o suposto projecto de domínio
político-financeiro e a aparente dificuldade das instituições para o prevenir,
quem deve falar desde já, no que diz respeito ao regime, senão os políticos?
A razão da nossa oligarquia
para se calar é óbvia. Há demasiada gente na política e nos seus arredores que
fez carreira com um líder agora acusado de 31 crimes. Mas bastar-lhes-á
aguardar pela sentença “com tranquilidade”? Não é legítimo pedir-lhes uma
explicação? Por exemplo, nunca tiveram uma dúvida, quando sabemos que sempre
houve suspeitas? A propósito dos abusos sexuais do produtor Harvey
Weinstein, discute-se agora na América a “cultura de cumplicidade” que o teria protegido durante anos.
Não deveríamos nós estar a discutir a “cultura de cumplicidade” que parece
haver à volta da corrupção e do abuso do poder na democracia portuguesa? Uma
cultura feita de indiferença ética, de comunhão na ganância e de um sentimento
de impunidade alimentado, de alto a baixo, pela promiscuidade no Estado, pela
dificuldade de provar estes crimes e por votações como as de Oeiras.
A justiça dirá se alguém
merece multas e prisões; a política deveria dizer outra coisa: se alguém ainda
merece a nossa confiança. Não podemos esperar por 2030. A História os
julgará? Mas essa é a prerrogativa dos ditadores, como o general Franco, que,
enquanto caudilho de Espanha, “só respondia perante Deus e a História”. É assim
que os nossos oligarcas também já pensam: que só a História os poderá julgar?
III - Sócrates &
Companhia Ilimitada
Alberto
Gonçalves OBSERVADOR,
14/10/2017
Na quinta-feira à noite, a
sra. dona Constança Cunha e Sá explicou na TVI o principal motivo pelo qual
a acusação de José Sócrates não vale a atenção de pessoas ilustres: não
trouxe, cito, “surpresas”. Pelos vistos, trinta e um crimes não bastaram
à referida jornalista, que aparentemente gostaria que o antigo
primeiro-ministro fosse acusado de coisas inusitadas como o abuso de pinguins
ou o roubo de tubos de escape. Na verdade, a sra. dona Constança Cunha e Sá
gostaria que José Sócrates não fosse acusado de todo.
Tratou-se de um raro e
bonito momento de solidariedade para com o menino que sonhava com ventoinhas e
apartamentos em Paris. Em tempos, faltava pouco para que o fervor dos
devotos por José Sócrates suscitasse imolações pelo fogo. Hoje, os devotos
assobiam para o lado e, à cautela, preferem que o indivíduo se imole sozinho.
Nem a lepra assustava assim. Uma rápida consulta às capelinhas virtuais
da seita apenas encontra silêncio e distracções. Enquanto os “media”, com
discrição e fastio, davam as novas da “Operação Marquês”, no blogue do peru
emproado que enfiou o “engenheiro” na Sorbonne discorria-se em volta de “Che”
Guevara: em Outubro de 2017, até a associação a um psicopata parece comprometer
menos do que a intimidade com o “autor” de “A Confiança no Mundo”. E este é um
mero exemplo. Por regra, e à semelhança dos milhões movimentados nas
negociatas, os amigos de José Sócrates sumiram sem rasto nem vergonha.
O facto é tanto mais notável
quanto os amigos de José Sócrates eram imensos. Alguns, fiéis à força,
continuam a fazer-lhe companhia nas quatro mil páginas do processo. A maioria
passeia-se sorridente. Sorridente e amnésica. Se o pacote de acusados constitui
uma amostra razoável da oligarquia que regularmente enxovalha o país, convém
notar que, por definição, as amostras deixam o resto de fora.
E o resto é demasiada
gente. A gente dos “media”, nulidades amestradas que José Sócrates inventou ou
desenterrou para o servir. A gente do comentário “isento”, sob nome próprio ou
pseudónimo, cujas avenças cresciam de modo directamente proporcional à
beatificação do amo e senhor. A gente dos negócios que prosperava à sombra da
criatura e retribuía a prosperidade com juros. A gente da “justiça”, indivíduos
com pilosidade auricular que garantiam a impunidade do benemérito que lhes
arranjou emprego. A gente das “relações pessoais”, um folclórico grupo de
familiares, namoradas e espontâneos que cirandava em redor de dinheiro
facílimo. Sobretudo a gente da política, que subiu com José Sócrates, conspirou
com ele e zelosamente lhe amparava os delírios.
É possível que essa gente
não tenha sabido de nada, dado por nada, reparado em nada, desconfiado de nada,
participado em nada. É possível que essa gente constitua o maior aglomerado
nacional de débeis mentais desde a inauguração de Rilhafoles. É possível, e
nesse caso seria um acto de mera comiseração e humanidade remover essa gente do
convívio com os demais, a bem de uns e dos outros. É possível, e não se deve
ficar tranquilo quando, ao inventariar a tralha “socrática” que continua a
infestar lugares de decisão ou influência, imaginarmos que Portugal pode ser
pasto de idiotas terminais. Ou então não é possível, e a intranquilidade
aumenta.
Se calhar, não é realmente
possível que essa gente não tenha experimentado o vestígio de uma suspeita, ou
estranhado a folia, ou mesmo colaborado nela. E se calhar não é possível não
saber que, além de obviamente ilegal, a folia acontecia à custa dos cidadãos
“comuns” que essa gente finge defender em cada uma das suas descaradas
intervenções. Em qualquer das hipóteses, essa gente não merece andar por aí
em paz, ou porque é clinicamente incapaz disso, ou porque é moralmente indigna.
E, no entanto, é preciso repetir:
essa gente anda em paz. Para cúmulo, também manda em paz, e com o exacto
tipo de descontracção e alcance que José Sócrates tentou sem conseguir. Por
morrer uma andorinha, ou ser julgada uma quadrilha, não acaba o regabofe. A
acusação do “animal feroz” e fauna restante, do honradíssimo sr. Salgado aos
portentosos gestores Bava e Granadeiro, é, para as suas inúmeras vítimas, um
instante de alívio “formal”. Mas, em última instância, é só uma pedrita leve no
charco de compadrios que aqui passa por regime. Salvo fogachos, na sua
repulsiva natureza o regime está bem e muitos – agora incluindo certamente o
próximo líder do PSD – recomendam-no. E os apreciadores farão, como costumam
fazer, bom proveito.
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