Eles têm razão, Alberto Gonçalves
e Maria João Avillez, na indignação que o primeiro expõe sem concessões, na sua
forma costumeira, que ao país igualmente
não perdoa, pela castração da indiferença generalizada, ou exibicionistamente
exposta, perante o desastre, demonstrador de uma má governação, ab initio, que
acaba em imolações pelo fogo, porque as políticas para satisfazer os grupos de
apoio à sua governação usurpada desleixaram ou diminuíram responsabilidades em
serviços indispensáveis à saúde e à própria vida do povo e do país.
Mas o rebanho que somos
continua a aceitar, como se nada acontecera, e Costa continuará a governar,
ancorado nos seus cúmplices, cujos rabos não ardem porque não são de palha,
como os nossos, que aceitamos o despotismo dos Tartufos, na nossa ânsia pela
côdea que aparentemente nos é por eles distribuída. Maria João Avillez igualmente se
rebela, e tudo isso é em vão. São textos de amargura, que vêm ao encontro da
raiva impotente de alguns de nós. Todavia, contrariamente ao que informa a
jornalista, não creio que a intervenção do Senhor Presidente da República, agora, faça mudar o rumo deste país dócil. Tipo “Muito barulho para
nada”.
INCÊNDIOS
I- O dr. Costa é mau demais para ser mentira
OBSERVADOR, 21/10/2017
O que não faz sentido é que o dr. Costa se julgue no direito de
governar pessoas minimamente saudáveis ou de conviver com elas. Como não faz
sentido que esta apatia com fronteiras se suponha um país.
Se fosse uma personagem de ficção, o dr. Costa seria exagerado e o seu
autor arrasado pela crítica. Ninguém acreditaria em criatura tão primária e
paródica. O dialecto é demasiado pobre. O oportunismo é demasiado infantil. O
provincianismo é demasiado caricatural. O descaramento é demasiado forçado. A
ambição é demasiado brutal. A manha é demasiado ostensiva. O ridículo é
demasiado evidente. A perversidade é demasiado tosca. O estilo é demasiado
repulsivo. A boçalidade é demasiado boçal. A desumanidade é demasiada, ponto.
Tudo no dr. Costa, das roupas aos risos e dos truques às palavras (digamos), se
confunde com um boneco, ou o estereótipo superficial de um político grotesco.
O dr. Costa, em suma, é mau demais para ser mentira. Infelizmente, como
estamos em Portugal, é péssimo o suficiente para ser verdade. E a crítica da
especialidade, que alucinadamente começou por atribuir ao homem inconcebíveis
virtudes, ainda não terminou de venerá-lo – apenas conteve a veneração durante
a semana, já que, parecendo que não, cento e tal mortos sempre impõem algum
recato.
É certo que nos longos anos que leva de “carreira”, que aliás recorda
com misterioso orgulho, não faltam provas do – desculpem o termo – carácter do
dr. Costa. Porém, a fim de evitar canseiras, a trágica cronologia dos incêndios
de 2017 chega e sobra para fundamentar um argumento.
A título de contexto, há o passado do dr. Costa na Administração
Interna, onde cometeu a proeza de agravar trapalhadas herdadas do dr. Santana
e, com típica leveza (para dizer o mínimo), consagrou o SIRESP às três pancadas
e, por influência de um amigo e da impunidade, adquiriu os portentosos Kamov. E
há o radioso momento em que, semanas antes do último Verão, o dr. Costa trocou
as chefias da Protecção Civil por amigos (ele tem muitos) de reconhecida
competência. E há Pedrógão Grande. E há a resposta do dr. Costa às vítimas de
Pedrógão Grande, abandonadas a protectores que não protegem, um sistema de
segurança que não funciona e helicópteros que não voam enquanto Sua Excelência
desfilava calções e compaixão numa praia espanhola. E há a conversa fiada e as
promessas reles que o dr. Costa despejou sobre os escombros de uma das maiores
calamidades registadas do género. E há, quatro meses depois, uma calamidade
quase idêntica em dimensão e incúria. E há a criminosa arrogância do dr. Costa,
que, inchado pela vitória nas “autárquicas”, redobrou o desdém face aos
que o maçam com ninharias (“Ó
minha senhora, não me faça rir a esta hora”). E há a pedagógica “comunicação”
ao país, na qual exibiu um cinismo que, em cérebro superior ao de um laparoto,
talvez sugerisse indícios de psicopatia. E há a demissão, em último recurso, da
ministra da Administração Interna, uma inutilidadezinha versada em disparates,
e o tapete de que o dr. Costa se serviu para esconder o lixo. E há a
substituição da ministra em prol de um amigo do dr. Costa (não disse que são
imensos?), garanhão celebrizado por chamar “frígida” a uma adversária. E há,
sobretudo, a reacção apressada ao ralhete do prof. Marcelo, encenada numa
sessão parlamentar em que o dr. Costa tentou fingir que chorava e conseguiu
demonstrar aos distraídos o indivíduo extraordinariamente lamentável que de
facto é.
E agora? Nada de especial. É verdade que, ao mesmo tempo que os fiéis
do dr. Costa hesitavam entre louvar o dr. Costa, simular críticas que
“legitimassem” louvores futuros ou culpar Trump e o PSD pelas chamas, meia
dúzia de socialistas confessaram embaraço tardio e parte do povo resmungou
impropérios. Mas só. Recentemente, na Galiza, quatro cadáveres carbonizados
bastaram para que multidões saíssem à rua. Por cá, as exéquias fazem-se na
televisão: nem uma centena e tanto de mortos remove os portugueses de casa. E
em será em casa que, se não houver bola, na terça-feira os portugueses
assistirão à moção de censura do CDS ser rejeitada pelos votos do PS, do PCP e
do BE. Faz sentido. O dr. Costa alcançou o poder amparado em organizações
historicamente indiferentes, ou até avessas, à vida humana. É natural, e um
retrato adequado da personagem, que o preserve por igual via. Quem aceita o
assassínio de milhões nunca se incomodaria perante dezenas de baixas
descartáveis e remotas. Isto faz, repito, sentido. O que não faz sentido é que
o dr. Costa se julgue no direito de governar pessoas minimamente saudáveis ou
sequer de conviver com elas. O que não faz sentido é que a sociedade que tolera
ou defende tamanho monumento à baixeza se imagine civilizada. O que não faz
sentido é que esta apatia com fronteiras se suponha um país.
Nota de rodapé:
Numa medida que já tardava, o PCP impôs ao Parlamento a protecção legal
do arroz carolino. Além de também ser a minha gramínea favorita, folgo em ver
os camaradas ortodoxos arriscarem o trilho do puritanismo até agora reservado
aos camaradas heterodoxos do BE e a uma dúzia de camaradas envergonhados do PS.
Por outro lado, deve reconhecer-se que a gloriosa experiência dos comunistas em
matéria de dietas não nasceu hoje: há por ali sapiências ancestrais que tornam
o emagrecimento inevitável. São muitos anos a virar frangos, ou, mais
precisamente, a trocá-los por senhas de racionamento.
II- Sr. primeiro-ministro não me faça chorar. A
hora nenhuma.
OBSERVADOR, 18/10/2017
1. Segunda, feira,
16 horas, Museu Guimet, Paris. A exposição de 113 obras primas em oiro vindas
da Ásia acabava nesse dia e eu sentira subitamente saudades das várias idas ao
sudoeste asiático, em trabalhos encomendados pela Gulbenkian. Resolvi entrar no
museu. Na segunda ou terceira sala, o telemóvel clica, era preciso desligá-lo,
tinha-me esquecido, mas ao fazê-lo vi um nome no écran, abri o sms: “os mortos
dos fogos já iam em trinta e um”.
Fiquei parada a meio da
sala, os fogos? Outra vez? Quais fogos? Com o estômago colado ás costas,
procurei um banco, sentei-me, que fazer? Agarrar no telefone e perguntar,
perguntar… Trinta mortos? Mas como era possível e onde e quando? Três dias
antes, quando saíra de Lisboa, fazia muito calor, a previsão era de mais ainda
mas havia apenas, um incêndio, salvo erro em Gouveia. Parti afoita, continuei
afoita, tanto mais que coincidência – como ninguém da minha família próxima se
encontrava por estes dias em Portugal, deixei sem remorso o país numa espécie
de entre-parêntesis e nunca mais soube de nada. (Além disso Emmanuel Macron
dava a sua muito esperada primeira entrevista televisiva desde que há cinco
meses entrara no Elyseu, o que me fez abrir outro parêntesis, pôr Paris lá
dentro e entreter-me apenas com a media francesa: atrelada às suas incessantes
pré-dissecações e devorando sofregamente vaticínios e prognósticos do que diria
o Presidente francês, e como e porquê)
Mas agora parada dentro do
museu era como se a vida se reduzisse a um confuso novelo de perguntas e
respostas, enquanto aqueles budas de oiro e aqueles animais mitológicos me pareciam
subitamente grotestos e me passara qualquer vontade de sequer continuar a
viagem com eles. Também percebi que naquele momento o gosto do regresso a casa
iria dar lugar á pena e ao luto. Pela segunda vez em três meses tive vergonha,
pela segunda vez em três meses rezei por portugueses que jamais vira, inocentes
apanhados na rede do mais obsceno fracasso, na mais obscena
desresponsabilização.
2. No regresso, no aeroporto, vários
écrans televisivos espalham, Orly fora, por corredores e salas de embarques,
imagens dantescas, “Portugal”. Há gente que se aproxima e fixa, incrédula, o
écran. O país a arder, daqui a pouco não há país. Volto a sentir vergonha.
3. Há gente que não serve.
Independentemente da sua competência, tendo-a ou não, não tem aquilo que desenha
um carácter e exibe uma lisura de procedimentos e que vem sempre á tona em
qualquer circunstancia da vida, boa ou má. Esse misto de seriedade,
sensibilidade, integridade, critério, que pode explicar um ser humano. Não
tenho palavras para definir ou sequer caracterizar a reacção de Constança
Urbano de Sousa aos pedidos de que a tirem de vez da nossa frente: um ácido,
despudorado, inqualificável desabafo sobre a falta de férias que brutalmente
nos expôs a nudez da sua revolta por não ter ido para a praia. E os mortos,
tiveram férias? E os pais, os filhos, os netos dos mortos, foram de férias?
A sua actuação na tragédia
dos incêndios — quer no primeiro acto quer agora no segundo – foi como um
imenso mar de incompetência onde ela diariamente se afogava. Nunca deveria ter
sido selecionada; ao primeiro tropeção poderia ter sido gentilmente mandada
para donde viera, (foi óbvio muito cedo o gritante erro de casting da sua
escolha). Mas Constança foi ficando. Como se nada fosse, como se nada tivesse
importância, como quem decide ficar mais um bocado com os amigos, num sítio
onde se sente bem. Sucede que a partir de agora todas as dúvidas nos serão
permitidas sobre se terá sido um erro ou um crime a sua permanência. Posso
(relutantemente) tomar como bom que no final de Setembro ainda não se soubesse
que a meio de Outubro viriam de novo altíssimas temperaturas. Mas dispensar com
pressa homens, máquinas e aviões com a seca em curso e depois do verão e
incêndios que houve? A memória dos mortos e o sofrimento dos vivos merecia
maior dignidade. Neste último acesso de calor que se abateu sobre o país, a
mais simples noção de responsabilidade, a mais elementar decência, um mínimo de
respeito pelos portugueses, reclamaria um imenso alerta e outra prevenção. Foi
o contrário: fecharam-se os incêndios como os banheiros fecham a época numa
praia.
Também ficou claro que
António Costa acha que despedir a ministra seria fazer um favor à oposição em
vez de perceber que era um favor ao país. Não alcançou que Portugal lhe
mereceria esse gesto. Como um sinal, como um desagravo, como um pedido de
desculpa que nunca se lhe ouviu e já lá vão mais de cem mortos. Pedrogão não
foi ontem. Não parece estarmos a lidar com gente que sirva.
4. O
primeiro-ministro disse (disse?) que “seguramente situações como as de domingo
vão repetir-se”. Seria conveniente que explicasse até quantos mortos precisa
ele que elas se repitam para que jamais voltem a repetir-se?
Senhor primeiro-ministro
não faça chorar, por favor. E se possível a hora nenhuma.
5. Julgo que o Presidente da República, pelas
palavras ditas ontem, mostrou ter a clara noção do que tem às costas. Tem o
país inteiro. Portugal não sabe para onde virar-se, na sua aflição desnorteada,
na sua raiva contida, na sua perplexidade muda. Tardou, é certo. Marcelo Rebelo
de Sousa demorou a mostrar-nos que não apreciava o estado das coisas que chocam
e enlutam Portugal desde o início do verão, mas foi finalmente firme. Quase
cortante. Cem mortos são cem mortos e ocorreram no seu mandato. Não podia
continuar a esgotar-se em selfies. A dizer que “tudo tinha sido feito”como
desgraçadamente o ouvimos dizer em Pedrogão. A refugiar-se nos seus habituais
cálculos para ver “para onde isto cai”, ou sequer em esperas de mais um ou dois
“relatórios independentes” (e de que serviram?). E mesmo que a segunda
tragédia, pela sua horrível natureza de “repetição”, lhe exija ainda mais
abraços (e ainda bem que ele sabe dá-los tão comovidamente) é preciso que o
abraço leve consigo a decisão de mais decência e menos falhanço. Que tanto
abraço sirva para mais alguma coisa do que o remake de um breve consolo num
instantâneo televisivo triste.
6. Ignorando
eu naturalmente os próximos episódios da saga governamental, tudo nos indica
que o que quer que se siga politicamente será, como é óbvio, fruto do discurso
presidencial de ontem e menos – ou nada – da vontade política do chefe do
governo. E que pouco que o primeiro-ministro e os seus pares socialistas devem
ter gostado: “deste” Marcelo e do que ele lhes disse.
Agora é que começou outra história.
Nenhum comentário:
Postar um comentário