Parece-me
muito lúcido o artigo seguinte, de Rui Ramos, sobre as políticas
sucessivas de desprezo pelo interior do país que culminaram nos incêndios e
mortes de gente e de gados, em arrepiantes demonstrações de incapacidade e impotência
de um país lançado aos bichos, apesar dos discursos ocos da demagogia
governativa, ou talvez antes como consequência desses.
E,
todavia, não quero crer no absurdo de tanta indigência mental de uma política que
abandona os terrenos da agricultura e a pesca, em vez de desenvolver o interior
do país com o apelo a uma industrialização enriquecedora, acompanhando o
progresso agrícola e piscícola, mau grado as estradas que se construíram para
esse efeito, ou talvez antes para o comodismo das tendências turísticas da
nossa preguiça nacional.
Mas
os governos não têm culpa de todo o falhanço, são muitos os responsáveis pelo
empobrecimento do país, pela fraudulência dos desvios desses dinheiros emprestados
para engrandecer o país e que afinal o apoucaram e emporcalharam. Veremos o que se segue. Eles aí
andam, os senhores que apoucaram o país de tanta impotência sempre, até na
aplicação da justiça, empeçados nos nós das urdiduras que as tentativas
de modernização geram sempre nos becos sem saída das nossas falcatruas.
Ninguém vai salvar o “país rural”
27/10/2017
A pretexto da floresta, o governo vai tornar a vida ainda
mais difícil às populações rurais. A Idade Média foi o tempo dos povoadores.
Vivemos agora no tempo dos despovoadores.
Parece que os incêndios tiveram o efeito das antigas
campanhas publicitárias que prometiam “um Portugal desconhecido que espera por
si”. Esse Portugal é o “país rural”, que a oligarquia se propõe agora salvar.
Desculpem se não consigo ver aqui as políticas de um Estado funcional, mas
apenas o palavreado leviano de um regime demagógico.
A partir dos anos 50, a tecnocracia nacional, ainda
instalada na ditadura salazarista, mas já a pensar na integração europeia,
convenceu-se de que a “província”, tal como o “ultramar”, só tinha
desvantagens. As colónias de África eram uma fonte de guerra e isolamento
diplomático, e o interior do país, um viveiro de famílias pobres, a deprimir as
estatísticas. Pior: África e a província eram as âncoras do salazarismo.
Desenvolver e democratizar Portugal pressupunha, portanto, trocar a África pela
Europa, e a província pelas cidades do litoral. Foi o que aconteceu, no caso do
interior do país por meio da emigração e do desmantelamento europeu do
proteccionismo agrícola e industrial. Nos vales e montanhas da província, a
população rareou e envelheceu. O território,
embora atravessado por vias rápidas, foi abandonado a um matagal pomposamente
designado por “floresta”. O desnível de riqueza acentuou-se:
o PIB da Área Metropolitana de Lisboa representa 110% da média da UE, mas o do
Norte só equivale a 64%, o do Centro, a 68% e o do Alentejo, a 73%.
Durante décadas, as rotundas do “poder autárquico”
maquilharam o declínio do “Portugal profundo”. Miguel Torga foi o porta-voz
literário desse país “telúrico”, oposto a “Lisboa”. Acontece que a
capital, apesar da localização dos ministérios, nem por isso foi poupada. Antes
dos turistas e da nova lei das rendas, largas manchas da cidade chegaram a ser
uma massa suja de prédios a ruir, lojas esvaziadas pelos centros comerciais da
periferia, e bairros tão desertificados e envelhecidos como as aldeias
serranas. Nem faltavam os incêndios, como o do Chiado em 1988.
Porquê? Porque também os bairros de Lisboa estavam
associados à pobreza e aos constrangimentos que despejavam as aldeias. O
Portugal de hoje resultou de uma enorme deslocação de população à procura de
melhor vida – melhor vida que não estava nas montanhas, nem, até há pouco
tempo, no centro histórico da capital.
Vai agora ser diferente? Não basta mais uma “reforma da
floresta”, tal como nunca bastou mais uma citação “telúrica” de Torga. O mato
português é um vasto cemitério de reformas florestais. O “país rural” precisa
de gente: mais gente, e gente com meios e liberdade para investir. Ora, a pretexto da prevenção dos fogos,
o governo prepara-se para dificultar ainda mais a vida no sertão do país. Não é de espantar. À oligarquia repugna
tudo o que signifique menos controle e menos impostos, isto é, menos lugares
para a clientela.
Em Lisboa, a liberalização e o turismo começaram a recuperar a cidade, mas a
maioria social-comunista já só fala em congelar, taxar e dissuadir — talvez
ainda chegue à proibição neo-zelandeza de vender casas a estrangeiros. Para
a província, António Costa lembrou-se de restaurar o antigo regime colonial das
culturas obrigatórias, privando os nativos do rendimento dos eucaliptos, e
ameaçando-as de expropriação. O pretexto é a “floresta”, a alcatifa verde que o
citadino vê deslizar à volta quando passa na autoestrada. Mas sabemos o que a
estatização valeu ao Pinhal de Leiria. O resultado, como já tanta gente previu,
será um campo com ainda menos gente e, portanto, com mais fogos. A Idade
Média foi o tempo dos povoadores. Vivemos agora no tempo dos despovoadores.
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