terça-feira, 31 de outubro de 2017

O maior cancro


Parece-me muito lúcido o artigo seguinte, de Rui Ramos, sobre as políticas sucessivas de desprezo pelo interior do país que culminaram nos incêndios e mortes de gente e de gados, em arrepiantes demonstrações de incapacidade e impotência de um país lançado aos bichos, apesar dos discursos ocos da demagogia governativa, ou talvez antes como consequência desses.
E, todavia, não quero crer no absurdo de tanta indigência mental de uma política que abandona os terrenos da agricultura e a pesca, em vez de desenvolver o interior do país com o apelo a uma industrialização enriquecedora, acompanhando o progresso agrícola e piscícola, mau grado as estradas que se construíram para esse efeito, ou talvez antes para o comodismo das tendências turísticas da nossa preguiça nacional.
Mas os governos não têm culpa de todo o falhanço, são muitos os responsáveis pelo empobrecimento do país, pela fraudulência dos desvios desses dinheiros emprestados para engrandecer o país e que afinal o apoucaram e emporcalharam. Veremos o que se segue. Eles aí andam, os senhores que apoucaram o país de tanta impotência sempre, até na aplicação da justiça, empeçados nos nós das urdiduras que as tentativas de modernização geram sempre nos becos sem saída das nossas falcatruas.

Ninguém vai salvar o “país rural”
27/10/2017
A pretexto da floresta, o governo vai tornar a vida ainda mais difícil às populações rurais. A Idade Média foi o tempo dos povoadores. Vivemos agora no tempo dos despovoadores.

Parece que os incêndios tiveram o efeito das antigas campanhas publicitárias que prometiam “um Portugal desconhecido que espera por si”. Esse Portugal é o “país rural”, que a oligarquia se propõe agora salvar. Desculpem se não consigo ver aqui as políticas de um Estado funcional, mas apenas o palavreado leviano de um regime demagógico.
A partir dos anos 50, a tecnocracia nacional, ainda instalada na ditadura salazarista, mas já a pensar na integração europeia, convenceu-se de que a “província”, tal como o “ultramar”, só tinha desvantagens. As colónias de África eram uma fonte de guerra e isolamento diplomático, e o interior do país, um viveiro de famílias pobres, a deprimir as estatísticas. Pior: África e a província eram as âncoras do salazarismo. Desenvolver e democratizar Portugal pressupunha, portanto, trocar a África pela Europa, e a província pelas cidades do litoral. Foi o que aconteceu, no caso do interior do país por meio da emigração e do desmantelamento europeu do proteccionismo agrícola e industrial. Nos vales e montanhas da província, a população rareou e envelheceu. O território, embora atravessado por vias rápidas, foi abandonado a um matagal pomposamente designado por “floresta”. O desnível de riqueza acentuou-se: o PIB da Área Metropolitana de Lisboa representa 110% da média da UE, mas o do Norte só equivale a 64%, o do Centro, a 68% e o do Alentejo, a 73%.
Durante décadas, as rotundas do “poder autárquico” maquilharam o declínio do “Portugal profundo”. Miguel Torga foi o porta-voz literário desse país “telúrico”, oposto a “Lisboa”. Acontece que a capital, apesar da localização dos ministérios, nem por isso foi poupada. Antes dos turistas e da nova lei das rendas, largas manchas da cidade chegaram a ser uma massa suja de prédios a ruir, lojas esvaziadas pelos centros comerciais da periferia, e bairros tão desertificados e envelhecidos como as aldeias serranas. Nem faltavam os incêndios, como o do Chiado em 1988.
Porquê? Porque também os bairros de Lisboa estavam associados à pobreza e aos constrangimentos que despejavam as aldeias. O Portugal de hoje resultou de uma enorme deslocação de população à procura de melhor vida – melhor vida que não estava nas montanhas, nem, até há pouco tempo, no centro histórico da capital.
Vai agora ser diferente? Não basta mais uma “reforma da floresta”, tal como nunca bastou mais uma citação “telúrica” de Torga. O mato português é um vasto cemitério de reformas florestais. O “país rural” precisa de gente: mais gente, e gente com meios e liberdade para investir. Ora, a pretexto da prevenção dos fogos, o governo prepara-se para dificultar ainda mais a vida no sertão do país. Não é de espantar. À oligarquia repugna tudo o que signifique menos controle e menos impostos, isto é, menos lugares para a clientela. Em Lisboa, a liberalização e o turismo começaram a recuperar a cidade, mas a maioria social-comunista já só fala em congelar, taxar e dissuadir — talvez ainda chegue à proibição neo-zelandeza de vender casas a estrangeiros. Para a província, António Costa lembrou-se de restaurar o antigo regime colonial das culturas obrigatórias, privando os nativos do rendimento dos eucaliptos, e ameaçando-as de expropriação. O pretexto é a “floresta”, a alcatifa verde que o citadino vê deslizar à volta quando passa na autoestrada. Mas sabemos o que a estatização valeu ao Pinhal de Leiria. O resultado, como já tanta gente previu, será um campo com ainda menos gente e, portanto, com mais fogos. A Idade Média foi o tempo dos povoadores. Vivemos agora no tempo dos despovoadores.


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