De Alberto Gonçalves,
com a sanha costumeira do analista social, não hipócrita e com a suficiente
dose de formação mental para pôr o dedo nas feridas de um povo de “uma nação
a entristecer”, sem outro ideal que não seja o debruçado sobre o umbigo próprio.
De José Pacheco Pereira, a lição teórica do mestre, que nos
interessa conhecer sobre a ideologia apensa ao anterior PSD, que Passos Coelho
afastou de si, obediente a imposições externas da nossa necessidade, e que a ele,
P. P., não interessam minimamente reconhecer, desde sempre. De João Miguel
Tavares, no rasto analista do primeiro articulista, o rigor de uma
análise inteligente e honesta, que reconhece em Costa os motivos da
sua continuação no poder, por longos anos. Para mim, Pedro Passos Coelho foi o
homem diferente, na sua determinação de honradez, coragem e brio patriótico, de voz ampla, a condizer.
1º Texto : A noite das facas rombas
7/10/2017
De Soares a Cavaco, houve
políticos tão detestados quanto Pedro Passos Coelho. Não houve ninguém
detestado por gente tão infalivelmente repulsiva, por tantas nulidades tão
pouco recomendáveis.
Pedro Passos Coelho não
perdeu as “autárquicas”. Tecnicamente porque não concorreu às ditas, e porque
os cidadãos que preferem o cacique A ao cacique B não o fazem por vontade de
castigar as “cedências” à “troika” ou premiar a “prosperidade” da Frente de
Esquerda. Simbolicamente porque “a maior derrota eleitoral da história do PSD”,
conforme decretaram especialistas em matemática aplicada a interesses
partidários, limitou-se a repetir os pífios resultados de 2013. Apesar
disso, Pedro Passos Coelho assumiu as responsabilidades que inúmeros
irresponsáveis garantiam serem as dele e, por cansaço ou estratégia, anunciou a
saída. Sei de derrotados que aproveitam as entrelinhas da lei para se fingirem
vencedores. Pelo menos um, em quem a manha ocupa o lugar da vergonha, chegou a primeiro-ministro.
E sobre o carácter, ou a decência se quiserem, estamos conversados.
Mudemos de conversa, então.
Nunca falei com Pedro Passos Coelho. Nunca conheci Pedro Passos Coelho. Que me
lembre, vi-o uma única ocasião, de relance durante trabalho jornalístico no
congresso do PSD em que ele se candidatou pela primeira vez à liderança,
alegadamente sob o patrocínio do sinistro dr. Ângelo Correia. Decorridos
estes anos, e tudo o que nestes anos aconteceu, tenho de Pedro Passos Coelho a
melhor impressão que consigo ter de um político.
Não é uma impressão por
aí além. Partilho com diversos pensadores, de Auberon Waugh a Jerry Seinfeld, a
convicção de que qualquer sujeito que se acha destinado a orientar a vida dos
outros sofre de sérios distúrbios psiquiátricos. Na melhor das
hipóteses, um político é um oportunista que, na ausência de competências úteis,
procura orientar a própria vida, e se as coisas correrem bem, a de familiares e
amigos. Para político, Pedro Passos Coelho não me parece terrível. Sendo
difícil avaliar o seu egocentrismo ou os seus escrúpulos, não é difícil
avaliá-lo pelo sentimento que prepotentes sortidos ou trafulhas incontinentes
lhe dedicam: o ódio puro.
Enquanto governante, os
trabalhos de Pedro Passos Coelho oscilaram entre o fundamental e o desperdício,
ou entre o “não” ao sr. Salgado do BES e a incapacidade de proceder, salvo
fogachos, à mítica reforma do Estado. Por comparação, já não é mau. O mau
transforma-se em sofrível e o sofrível quase em bom quando se levam em conta as
reacções alheias, e principalmente quando se levam em conta os autores das
reacções. De Soares a Cavaco, houve políticos tão detestados quanto Pedro
Passos Coelho. Não houve ninguém detestado por gente tão infalivelmente
repulsiva. A fúria que o homem suscita em determinadas criaturas mede, com
curiosa exactidão, a baixeza das mesmas.
A baixeza e,
reconheça-se, o empenho. Desde tempos imemoriais que abundantes
indivíduos consagram as respectivas existências a exibir em público o incómodo
que Pedro Passos Coelho lhes provoca. No governo e, para mim
surpreendentemente, na débil oposição, aquele que tantos juravam morto foi
capaz de desnortear os laparotos e as laparotas que, em províncias de gabarito,
passam por – não se riam – “elite”. É essa a maior proeza de Pedro Passos
Coelho, e o seu maior talento: irritar nulidades pouco recomendáveis.
Nada mudou até Domingo. Na
noite eleitoral, as manchetes, as “leituras” e as opiniões estavam escritas e
pensadas antes dos factos. As televisões encheram-se de “personalidades” convidadas
para repetir o que repetem sempre: a urgência de Pedro Passos Coelho ir embora,
por razões que as “personalidades” omitem sob falsos pretextos. Os habituais
“históricos” do PSD, que na novilíngua que merecemos são os principais
entusiastas do arranjinho no poder, invocaram Sá Carneiro e, com o dedinho em
riste, clamaram pela necessidade de regenerar o PSD e promover a estabilidade.
Ou, se se desmanchar o pobre jargão da seita, reduzir o PSD a um capacho e
abrir caminho ao “sistema”. O “sistema”, desculpem o eufemismo, não aprecia
obstáculos.
Alguma coisa mudou depois
de Domingo. Os factos ajudaram e, definitiva ou provisoriamente, Pedro Passos
Coelho pôs enfim a trouxa nas larguíssimas costas. Só um tolo esperaria dele a
salvação das almas. Mas só um cego não o via como uma compensação, pequenina e
isolada que hoje fosse, à perigosa miséria do resto. Sem ele, o resto é
tudo. E tudo, na esquerda que manda e na “direita” que aspira partilhar o
mando, é o caldo de fraude, saque, brutalidade e arrogância a que se
convencionou chamar socialismo. Muitos portugueses, dos que
recebem as migalhas aos que as distribuem, aparentemente gostam. Desconfio que
Pedro Passos Coelho não é um deles. Por isso perdeu. E se custa perder, custa o
dobro perder para vencedores assim.
2º Texto de OPINIÃO :
A doença que está a encolher o PSD
José Pacheco Pereira
Público, 3 de
Outubro de 2017,
1. Quem acompanhe o que tenho escrito nos
últimos anos não se surpreenderá com o que está a acontecer no PSD. Não digo
isto para proclamar que tinha razão, mas, infelizmente para o partido e para os
seus militantes, tinha de facto razão. O PSD está numa crise profunda, que não
é conjuntural, mas estrutural, e não data de agora. Se nada for feito pelos
seus militantes, o PSD mudará de carácter consolidando a sua deriva à direita,
tentado pelo populismo, e terá um tamanho médio. Deixou de ser um grande
partido para ser um partido médio, numa área em que tinha conseguido resistir à
erosão política, as autarquias. O primeiro passo eleitoral da crise foram as
autárquicas de 2013, e o último foram as de 2017, mas, mesmo quando se analisa
a vitória em coligação com o CDS em 2015, já havia sinais de erosão política,
com a perda de muitos votos e da maioria absoluta. Essa erosão era patente nas
sondagens e nos estudos de opinião que mostravam a perda de valor da “marca”
PSD, isto para utilizar a linguagem que agora se usa. No entanto, a crise
eleitoral é apenas um aspecto de uma crise mais geral que nela se revela, mas
que nela não se esgota.
2. Referi-me ao que
“está a acontecer”, porque tudo ainda está nas suas primeiras fases e o
desastre eleitoral de 1 de Outubro vai desencadear um processo cujo termo é
ainda impossível prever. Ou não. Pode haver uma ou outra afirmação cosmética, e
tudo continuar na mesma, seja com Passos Coelho ou com um seu seguidor e
discípulo, ou pode haver alguma mudança, que, mesmo sendo pouca, se for na
direcção certa, pode começar a virar uma página negra da história partidária.
Não vai ser fácil, exactamente porque não é apenas um problema de mudar de
líder, mas sim de mudar de grupo dirigente, principalmente em Lisboa e Porto e,
mais importante do que tudo isso, mudar de política. Nos últimos anos, só houve
dois ou três momentos de mudança no bom sentido, todos abortados por várias
pressões internas. Um foi na direcção de Marcelo Rebelo de Sousa, o movimento
de refiliação conduzido por Rui Rio contra o caciquismo e as fraudes no registo
de militantes; outro, a crítica política solitária de Manuela Ferreira Leite ao
caminho de Sócrates para a bancarrota. Em ambos os casos, foram sujeitos a
violentos ataques dentro do partido vindos dos mesmos que foram responsáveis
pelo caminho que nos deu agora o resultado de 1 de Outubro, de Menezes a
Passos.
3. As componentes da crise do PSD são
várias e comunicam entre si. Há um problema ideológico e um problema político,
de que resulta um problema de posicionamento e função na sociedade portuguesa.
A isto associa-se um outro conjunto de questões que tem que ver com a
oligarquização do partido, fenómeno que não é exclusivo do PSD, pois dá-se
também do PS. O ascenso do populismo resulta num acantonamento dos partidos e
numa perda da sua autoridade em democracia. Apenas o PS conseguiu reverter
alguns aspectos (mas só alguns) da sua crise com o processo de eleição aberta
que deu a vitória a Costa sobre Seguro, e com a inovação política da
“geringonça”.
4. O problema ideológico do PSD é simples
de expor: o PPD, depois o PSD, foi fundado de uma forma sui generis, à portuguesa,
combinando três tradições políticas: o liberalismo político, o personalismo
de origem cristã e a social-democracia. Pretendia ser um partido defensor das
liberdades e da democracia, um partido laico que incorporava uma visão do homem
como “pessoa”, mais do que como cidadão, e pretendia que o Estado tivesse no
seu coração a ideia de que a sua função era, entre outras, a de garantir a solidariedade
social a favor dos que mais precisavam, distributivo e actuante em termos da
justiça social. Era anticomunista, mas não era anti-socialista, não era
conservador, nem economicamente liberal, era a favor do mundo do trabalho e da
dignidade do trabalho, na tradição da doutrina social da Igreja, defensor de um
sistema fiscal fortemente distributivo e colocava-se entre o centro-direita e o
centro-esquerda. Estava mais à esquerda, oscilava para o centro e para a
direita, mas nunca, jamais, em tempo algum, se definiu como partido de direita.
Até agora.
5. O PSD ou é
isto ou não é o PSD, é outra coisa. Os seus grandes sucessos políticos
vieram da aplicação deste programa que lhe dava o lugar do partido reformista
na sociedade portuguesa. Foi assim com a AD, momento fundamental da alternativa
de governação democrática, para equilibrar o sistema político e económico dos
anos do PREC, foi assim com Cavaco Silva como primeiro-ministro. O esquecimento
colectivo já deixou para trás momentos simbólicos das governações de Sá
Carneiro e Cavaco Silva, da distribuição de terras ao Plano de Erradicação das
Barracas, já para não falar de posicionamentos que eram simbólicos e não eram
apenas abencerragens da época, da JSD dos primeiros anos com o seu jornal “pelo
socialismo”, da tentativa de entrada na Internacional Socialista, da exigência
do PSD de retirarem o nome de “liberal” do grupo europeu a que pertenceu e
colocar o de “reformista”, etc., etc.
6. O que aconteceu nos anos do
“ajustamento” sob a direcção de Passos Coelho não foi uma “adaptação” da linha
política do passado à situação dos últimos anos, nem às “exigências” da troika (que hoje sabemos
foram em grande parte propostas do PSD divulgadas como sendo da troika), mas uma mudança
qualitativa. Essa mudança pretendia tornar o PSD um partido neoliberal, tendo
como modelo Singapura, considerando que a “economia” eram as empresas e os
trabalhadores um “custo” que devia ser domado, apontando como alvo para a
austeridade a classe média e deixando os pobres sofrer com o custo dos
despedimentos e numa redoma assistencial. A ideia foi parar o elevador social
que desde o 25 de Abril existia, mesmo que imperfeitamente na sociedade
portuguesa, com o crescimento dos serviços públicos e do Estado social e a
criação de uma “classe média” ligada ao Estado, a favor da ideia de que com o
agravamento da desigualdade social se criava um pólo de desenvolvimento em
cima, que arrastaria os de baixo, desde que estes aceitassem baixos salários e
a perda de regalias sociais. O PSD tornou-se o arauto fiel da troika e do Eurogrupo usando
as “regras europeias” como mecanismo de poder que nunca levou a votos, nem em
2015, onde fez muitas das propostas que depois veio a atacar no PS.
7. Era um projecto de engenharia
social, completamente alheio ao programa social-democrata do PSD, que ruiu
quando o PS conseguiu conciliar um certo desenvolvimento económico com a
“reversão” de medidas. O PS não fez nenhuma revolução, mas o PSD ajudou a
valorizá-lo com a história do “Diabo” e com uma nostalgia absurda dos bons
velhos tempos da troika.
8. Estas mudanças qualitativas nunca
foram assumidas nos documentos oficiais do PSD. Nos últimos congressos, os
dirigentes, a começar por Passos Coelho, recuaram nos congressos com juras de
“social-democracia” e algumas tentativas programáticas que tentavam incorporar
a nova linha “liberal”, ficaram pelo caminho como se não tivessem paternidade.
Criou-se assim uma espécie de esquizofrenia política, que não ocultava no
entanto o caminho de posicionamento do PSD para uma direita que deixaria
horrorizados os fundadores do partido. Este caminho abandonou o centro político
ao PS e era só uma questão de tempo até as sondagens e os resultados eleitorais
começarem a revelar a usura do PSD reformista do passado a favor de um partido
que se sentia bem numa frente de direita com o CDS e cuja linguagem e posições
políticas o isolam cada dia que passa.
9. Em 1 de Outubro, o PSD perdeu nas
eleições locais e na eleição nacional que foram os resultados de Lisboa e Porto. (Continua)
3º Texto: Xeque-mate à direita
João Miguel Tavares
Público, 3/10/17
Fico fascinado com os meus
amigos de direita que se esfalfam a fazer contas e continhas para demonstrar
que a derrota do PSD não foi assim tão grande, que pior do que o PSD
foi o PCP, que António Costa vai ter graves problemas em manter a
estabilidade da “geringonça”, que pior do que PSD e PCP é a implantação
ridícula do Bloco a nível autárquico, que Teresa Leal Coelho e Assunção
Cristas tiveram juntas muito mais votos do que PSD e CDS coligados em 2013.
Que, que, que…
Isto é patético.
Se um homem for atropelado por um autocarro, há duas atitudes possíveis. Uma, é
constatar que ele foi atropelado por um autocarro. A outra, é assinalar que
ainda consegue abrir um olho e mexer um pé. Eu sou dos que prefiro constatar a
existência do atropelamento, até por respeito ao atropelado. Aliás, é
por respeito que desejo vê-lo fora da liderança do PSD. Se Passos Coelho
sair agora, ele poderá voltar dentro de alguns anos, quando o ciclo económico
mudar e todos nós concluirmos que aquilo que a esquerda andou a fazer não chega
para nos safar de nova crise. Se Passos Coelho não sair agora, duvido que algum
dia regresse. Ele irá arrastar-se até às legislativas de 2019, onde desembocará
esgotado, maltratado e traído, para receber em troca, com altíssima
probabilidade, uma derrota humilhante. Dificilmente voltará a reerguer-se.
No final de 2015, a
direita cometeu um duplo erro: não acreditou na “geringonça” e acreditou em
António Costa. O contrário é que estava certo: acreditar na solidez da
“geringonça” e não acreditar no programa de António Costa. Assim que as
pessoas perceberam que as contas se endireitavam sem a direita, Passos Coelho
ficou sem espaço de manobra. Há quem pense que a história do diabo foi um
enorme erro, e eu sou um deles. Mas com diabo ou sem ele, Passos nunca teria
qualquer hipótese de bater António Costa a partir do momento em que este
conteve os delírios da esquerda, pôs o país a crescer e o desemprego a
diminuir, e devolveu dinheiro a funcionários públicos e reformados. Os
portugueses não são estúpidos – eles sabem que a página de austeridade não foi
virada. Mas preferem esta à outra.
Dir-me-ão: todos os
problemas estruturais da economia portuguesa continuam intocados e o actual
governo não tem margem de manobra para mudar nada. É um facto. Só que,
neste momento, o governo não precisa de mudar. A política é como a comédia –
o timing é tudo. António Costa teve o mérito e a sorte de
acertar no timing perfeito para governar – Europa a crescer,
turismo a disparar, povo assustado com a troika, empresários acordados
pela troika, esquerda unida pelo ódio às “políticas de direita”, enfim,
uma conjugação astral digna de Euromilhões –, e Portugal está a confundir
acerto no timing com acerto nas políticas. Contudo, estar convicto
disto adianta muito pouco. Aquilo que eu vejo, tal como aquilo que Passos
Coelho vê, não é o que a maior parte dos portugueses está a ver.
António Costa fez
xeque-mate à direita, por muitos e bons anos. E quando assim é, os colunistas
como eu podem continuar a escrever colunas, mas os políticos com ambição de
poder têm de dar lugar a outros. Aquilo que lá vem, como há semanas alertei,
pode bem ser a revelhação do PSD, em vez da sua renovação. É, aliás, o mais
provável, porque assim que a vaca começa a engordar deixa de haver liberais em
Portugal. Imaginar o PSD liderado por um António Costa cor-de-laranja é
bastante triste. Mas os votos não enganam: é isso mesmo que o país quer.
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